por Miguel Urbano Rodrigues
O Seminário "Los Partidos y una Nueva Sociedad", promovido
anualmente no México pelo Partido do Trabalho daquele país,
tornou-se na América Latina (e não só) uma referencia para
os cientistas políticos e intelectuais progressistas preocupados com o
debate de ideias num momento em que a humanidade enfrenta uma crise de
civilização.
Não é propriamente a Agenda que faz dele um acontecimento
político e ideológico diferente de outros. É sobretudo a
atmosfera.
O X Seminário, este ano, nos dias 17,18 e 19 de Março, confirmou
a tradição.
O que diferencia, afinal, este evento de outros na aparência similares?
Numa roda de participantes em que se discutiu o assunto houve consenso no
tocante a cinco peculiaridades que, somadas, contribuem para a
"excepcionalidade" do Seminário da PT.
I- Com poucas excepções não têm passado por ali
grandes nomes do pensamento de esquerda. Não é um evento de
"estrelas".
II- É um Seminário aberto, muito contraditório. O PT
adoptou o "Venceremos" como hino e canta-se a Internacional. Mas
entre os participantes figuram personalidades que, afirmando ser
revolucionárias, assumem por vezes posições
incompatíveis com um ideário de esquerda.
III- Comparecem tradicionalmente delegações dos Partidos
Comunistas da China, da Rússia, do Vietnam, da Coreia Popular, do Laos,
de Cuba e de muitos partidos comunistas da América Latina.
IV- Não há Declaração Final, mas as
Resoluções aprovadas expressam no conjunto uma firme
condenação do imperialismo e uma solidariedade internacionalista
calorosa com as lutas dos partidos, movimentos e povos que se batem pela
liberdade e pelo socialismo contra o sistema de poder dos EUA, o colonialismo e
o racismo.
V- É um dos raríssimos Encontros Internacionais onde são
lidas e aclamadas comunicações enviadas pelas Forças
Armadas Revolucionarias da Colômbia-Exército do Povo,
organização perseguida e caluniada em todo o mundo capitalista.
CONTRADIÇÕES
O X Seminário funcionou como um vasto painel que reflectiu a imagem
contraditória que a América Latina oferece nestas semanas,
agitada por um vendaval de esperança.
Um dirigente do PT, Gonzalo Yañez, sintetizou, na abertura, a euforia
existente ao afirmar que diferentemente de anos anteriores não se
procede ao inventário de derrotas, mas à reflexão sobre
uma cadeia de grandes vitórias da esquerda latino-americana.
Muitas das intervenções deixaram entretanto transparente, ao
longo dos três dias do evento, que um ponderável sector da
intelligentsia
política do Continente elimina fronteiras entre povos, governos e
estratégias de poder. Em generalizações simplistas e
inaceitáveis acentua-se a tendência para transformar uma
vitória eleitoral numa situação que abre automaticamente
as portas a uma transformação radical da sociedade rumo ao
socialismo. E a confusão assume tais proporções que
alguns oradores identificaram na vitória de Bachelet, no Chile, um
triunfo da esquerda continental. A intervenção do chileno
Júlio Uga, do Partido Comunista daquele país foi útil e
oportuna ao esclarecer que o governo da presidenta eleita dará
continuidade à política neoliberal dos anteriores executivos da
Concertación.
A euforia nascida da mobilização das massas contra a
globalização neoliberal e de um muito positivo aumento da
combatividade dos trabalhadores não significa obviamente que a
América Latina se encontre no limiar de uma época
pré-revolucionaria.
As políticas desenvolvidas pelos governos de Lula, de Kirchner e de
Tabare Vasquez confirmam que a eleição de presidentes com forte
apoio popular, com programas moderadamente anti-imperialistas e de
condenação do neoliberalismo, não impediu a
realização de políticas incompatíveis com os
compromissos assumidos perante o povo.
A confusão é inseparável do que significa hoje a
"Esquerda" para os latino americanos progressistas.
Se na Europa um partido como o PS, de Soares, Sampaio e Sócrates, tem
desenvolvido sistematicamente políticas de direita, fácil
é imaginar as ilusões que o discurso "socialista" gera
na América Latina.
O facto de o México se encontrar em campanha eleitoral não
contribuiu para facilitar uma reflexão serena sobre o que é hoje
a Esquerda nos países a Sul do rio Bravo. Dois dos candidatos à
Presidência, Roberto Madrazo, do PRI, e Felipe Calderon, do PAN, defendem
programas de cumplicidade óbvia com o imperialismo, embora o primeiro se
apresente como representante de um partido de origem
"revolucionária". Mas o terceiro, Lopez Obrador, do Partido
da Revolução Democrática (PRD) irrompe na campanha como um
social-democrata de esquerda, que não é. Seria uma ingenuidade
acreditar que Obrador que leva grande vantagem nas sondagens
assumirá, se eleito, os objectivos e ideais anti-imperialistas do
general Lázaro Cardenas, pai do fundador do PRD, Cuhautemoc Cardenas.
Tudo indica que não resistirá à pressão dos EUA
para desmantelar a Pemex e privatizar o essencial do sector energético.
O facto de o Partido del Trabajo participar da Aliança "Para El
Bien de Todos", que sustenta a candidatura de Obrador, não
contribui para facilitar a compreensão do processo mexicano porque o
Partido organizador do Seminário se define como irredutivelmente
anti-imperialista, identificando-se com o pensamento de Marx e Lenine,
não hesitando em apontar o socialismo como única alternativa a um
capitalismo senil.
Para os leitores portugueses avaliarem a complexidade deste X Seminário
creio oportuno referir que Alberto Anaya, o dirigente mais carismático
do PT, prestigiado professor universitário de Economia, apresentou ao
Seminário, com outros camaradas do PT Alfonso Rios Vasquez,
Arturo Lopez Cândido e José Roa Rosas - uma
comunicação intitulada "Los Problemas de la
Construcción del Socialismo", que, transcendendo o âmbito
académico, tem a estrutura e o tom de um documento militante. Nesse
ensaio, de grande qualidade, Anaya, procede a uma síntese
histórica das ideias centrais de Marx, do socialismo de Lenine, de Mao
Tse e Deng Xiaoping, prosseguindo com um enunciado de elementos teóricos
e práticos da questão fundamental da transição do
capitalismo ao socialismo, para concluir com um balanço do socialismo
real e uma proposta dos eixos essenciais da reformulação actual
do projecto socialista.
A PRESENÇA DA CHINA
As intervenções da delegação chinesa
integrada por um vice-ministro, pelo embaixador no México e membros do
Comité Central do Partido Comunista suscitaram o debate mais
interessante do Seminário.
Na resposta a perguntas formuladas, os representantes do grande país
aproveitarem a oportunidade para abordar temas que suscitam polémica no
Ocidente.
Não será por acaso que nas grandes universidades dos EUA e da
Europa destacados cientistas políticos escolhem a China para tema de
teses em que se esforçam por apresentá-la como um país em
rápida evolução para o capitalismo. Alguns lamentam o
rumo que atribuem à China, mas curiosamente esses autores são
quase todos anticomunistas convictos.
Essa contradição parece inseparável do medo nascido da
certeza de que o século XXI será um século chinês e
que os interesses do gigante asiático são incompatíveis
com a estratégia de dominação mundial do imperialismo
norte-americano.
Contestando as campanhas que apresentam a China como uma sociedade em
transição para o capitalismo, os delegados chineses, chamaram a
atenção para o facto de o Estado não se apresentar ali
como representativo de qualquer modelo socialista. No Ocidente promove-se
deliberadamente uma falsa imagem da China, simulando ignorar que o país
se encontra no início de uma longa caminhada. A etapa primária
de acumulação, a actual, não é apresentada pelo
Partido como expressiva da futura sociedade, mas somente como uma fase da
transformação rumo ao socialismo.
Iluminando os tremendos desafios enfrentados, os delegados chineses lembraram
que em 1949, após a vitória da Revolução, a renda
per capita não excedia no país 27 dólares. Com 22 % da
população mundial, a China dispõe apenas de 7% da terra
cultivável e de 6% da água existente no planeta. O atraso global
do país e a insuficiência de recursos naturais não
impediriam que sob a direcção do Partido, superadas complexas
crises internas, a China se transformasse nos últimos anos numa
sociedade que apresenta as maiores taxas de crescimento do planeta. Erradicou
a fome, é já o maior produtor mundial de cereais e como
potência industrial ocupa o primeiro lugar em múltiplos sectores
produtivos.
A China, sublinharam, não esconde a existência de problemas
sociais graves. Aproximadamente 800 dos 1300 milhões vivem em zonas
rurais onde o progresso é muito mais lento e as carências
transparentes. O esforço para a redistribuição da riqueza
produzida é uma preocupação prioritária, mas o
Partido e o Governo têm consciência assim foi afirmado
de que graves insuficiências nos sectores da
educação e da saúde são ainda um obstáculo
ao desenvolvimento harmonioso da sociedade.
Longe de se mostrarem chocados com as perguntas criticas, os delegados de
Beijing agradeceram a franqueza que caracterizou o debate, mas afirmaram com
muita firmeza que o Partido Comunista controla o processo de
transformação social, indefectivelmente fiel aos
princípios do marxismo-leninismo.
VENEZUELA, BOLÍVIA, CUBA
As intervenções cujos temas incidiam sobre a Venezuela, a
Bolívia e Cuba suscitaram muito interesse.
A Revolução Bolivariana entusiasma os povos do hemisfério.
As forças progressistas, do México à Argentina, acompanham
com esperança as transformações em curso na pátria
de Bolívar. Repete-se noutro contexto histórico o que aconteceu
com Cuba. Sob o governo de Hugo Chavez, a Venezuela, acossada pelo
imperialismo, aliado a uma burguesia envolvida em conspirações em
cadeia, demonstra que é possível resistir à mais poderosa
potência mundial e seguir um caminho próprio na
construção do futuro. O seu povo derrotou um golpe de estado
militar concebido e financiado pelos EUA, derrotou o
lock-out
petrolífero que quase paralisou o pais, venceu o referendo
revogatório cujo objectivo era o afastamento de Hugo Chavez.
A economia venezuelana é ainda uma economia cujos mecanismos são
no fundamental os do capitalismo. As exportações de
petróleo principal riqueza dirigem-se sobretudo para os
EUA. Mas o controlo dos recursos naturais foi transferido da burguesia para o
Estado. A dependência do líder carismático, excessiva,
é preocupante porque avança muito lentamente o projecto de
criação de uma organização revolucionaria que
responda às exigências do desafio da historia. O V Republica,
mais movimento do que partido, não está vocacionado para
desempenhar essa função.
Chavez radicalizou o discurso, responde com firmeza e coragem, por vezes com
veemência desnecessária, inerente à sua combatividade
explosiva, à insolência e perfídia das ameaças
imperiais. Condena já o capitalismo como sistema de opressão dos
povos condenado a desaparecer. Desfralda as bandeiras do socialismo, o que
contribui para redobrar a agressividade de Washington. Mas as incógnitas
colocadas pelo processo são muitas. O discurso revolucionário,
torrencial, não pode por si só resolve-las. A insistência
no "socialismo do século XXI" como resposta inovadora ao
capitalismo senil confunde mais do que ajuda.
No Seminário transpareceu nas intervenções da
delegação venezuelana a diversidade das mundividências dos
seus membros. As de Rafael Uzcategui foram quase excepção pela
coerência e procura do rigor ideológico.
O cubano Roberto Regalado, na apresentação do seu livro
«América Latina Entre Siglos» (Ocean Press, Melbourne, Nova
York, La Habana,
www.oceanbooks.com.au
) justificou o prestígio que
adquiriu como conhecedor profundo das lutas dos povos do Hemisfério e
das estratégias do imperialismo. A obra é uma síntese das
vivências e reflexões acumuladas por uma testemunha privilegiada.
Como intelectual comunista militante, Regalado tem ainda o mérito de
situar como pano de fundo de muitas dessas lutas a Revolução
Cubana como acontecimento de significado transcendental que inflectiu o rumo da
historia da América Latina, marcando a da humanidade.
As intervenções sobre o processo em desenvolvimento na
Bolívia foram também acompanhadas com muita
atenção, como se esperava, porque a eleição de Evo
Morales por maioria absoluta catapultou o povo de Tupaj Katari e Juan
José Torres para o primeiro plano da actualidade internacional. Ao
colocar na presidência um índio que afirma o seu propósito
de transformar radicalmente a sociedade, o milenário e heróico
povo boliviano aparece já ao imperialismo estadunidense como inimigo
potencial.
Num Seminário como o do PT é praticamente impossível citar
as muitas comunicações importantes, separando-as das desprovidas
de significado, que também foram muitas. Não tive sequer a
possibilidade de ouvir ou ler todas.
Acrescentarei entretanto que, por motivos diferentes, recordo as do mexicano
Arturo Huerta, um dos mais talentosos e lúcidos economistas da
América Latina, as de Marcos Domich e Renan Raffa,
secretários-gerais do Partido Comunista da Bolívia e do Partido
Comunista Peruano.
Uma europeia, a comunista italiana Marina Minicuci, lançou ao
plenário um desafio: a necessidade urgente de globalizar as luta a
resistência dos povos, o que exige uma coordenação
inexistente entre movimentos e partidos. Se esse trabalho não for
empreendido, «sem um esforço de organização
sublinhou tudo se esgota num intranscendente plano de
retórica».
A única intervenção de um brasileiro, dirigente do PT, um
trotskista-posadista, foi decepcionante. Chegou ao extremo de elogiar o envio
de tropas para o Haiti .
Um ausente, o prof Remy Herrera, do CNRS da França, enviou uma brilhante
e original comunicação intitulada "Crise Estrutural do
Capitalismo, Lutas Sociais, Alternativas".
AS RESOLUÇÕES APROVADAS
Não houve Declaração Final. Mas as
Resoluções aprovadas, muitas por aclamação, em
atmosfera de fraternidade, surgiram como o desfecho natural de um encontro
internacional compareceram delegações de 30 países
representando 62 organizações e partidos que foi de certa
maneira um mostruário, embora contraditório, do momento que se
vive na América Latina, caracterizado por uma ascensão torrencial
das lutas anti-imperialistas dos seus povos.
É, por ora, impossível prever os contornos das sociedades de
amanha, mas até em Washington a extrema direita neo-nazi, instalada no
Poder, tomou consciência de que o neoliberalismo suscita a repulsa
unânime dos povos e que para muitos milhões de latino americanos o
socialismo surge como a única alternativa à barbárie
capitalista.
Cito entre outras Resoluções as relativas a Porto Rico, à
Coreia Popular, ao Equador, ao Haiti, à Republica Dominicana, à
libertação de presos políticos, à luta das FARC-EP
e do ELN colombianos, ao Iraque, à luta da juventude e dos trabalhadores
da França, à Venezuela bolivariana, a Cuba, à China,
à Palestina, ao Brasil, à Argentina, à defesa da agua e
outros recursos naturais, à condenação das campanhas
anticomunistas, às migrações e ao racismo, etc.
Uma atmosfera de profunda emoção envolveu a homenagem a Schafik
Handal, o grande revolucionário salvadorenho recentemente falecido.
Fundador da Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional,
ex-comandante de uma guerrilha épica, Schafik, homem de pensamento e
acção, deixa-nos o exemplo inesquecível do comunista e
combatente exemplar que foi desde a juventude.
O X Seminário coincidiu com a realização na capital
mexicana do IV Fórum Mundial da Agua controlado por transnacionais que
pretendem privatizá-la a escala mundial.
Paralelamente houve outro Fórum, de combate ao projecto, promovido por
organizações progressistas. Ambos polarizaram durante dias a
atenção da comunicação social.
Os desfiles de protesto contra o Fórum oficial, de iniciativa dos
sindicatos, trouxeram às ruas do centro milhares de pessoas. Não
faltaram choques com a polícia.
Gigantesca megalópolis, a Cidade do México, coração
de uma área metropolitana com 20 milhões de habitantes, vive com
intensidade esses acontecimentos. Por todo o lado a água tornou-se tema
de debates apaixonados. Um motorista de táxi, em conversa comigo, subiu
cinco séculos no tempo para responsabilizar os espanhóis pelo
desaparecimento da maravilhosa laguna onde se erguia Tenochtitlan, a capital
azteca destruída por Hernan Cortés.
O Seminário foi tão absorvente e denso que me obrigou a
opções difíceis no aproveitamento dos dias livres.
Mas pude dedicar umas horas a revisitar o Museu de Antropologia, um lugar
mágico onde, em cada regresso, tento descer mais fundo na
compreensão da história profunda do México
pré-colombiano.
Voltei também a Teotihuacan, a cidade dos deuses, a das Pirâmides
do Sol e da Lua, prodígio de urbanismo, que fora abandonada há
seis séculos quando os espanhóis ali chegaram.
O México é para mim paixão permanente. Eu a senti pulsar
com força quando uma manhã, em Xoximilco, navegando numa canoa
pela rede de canais (193 quilómetros) daquele labirinto aquático,
meditava sobre as contradições da terra e do povo que nela vive.
Herdeiro de uma Historia trágica e bela, o México moderno sente
orgulho das civilizações assassinadas que revivem na
nação mestiça, filha de culturas antagónicas, mal
fundidas.
Esse pais do inimaginável, onde o absurdo nunca surpreende, levou
adiante no começo do século XX a primeira grande
revolução que teve por cenário a América Latina. A
memória de guerrilheiros como Emiliano Zapata e Pancho Villa, cujos
feitos lembram os de míticos heróis gregos, torna hoje mais
doloroso o presente. Choca o espectáculo oferecido por uma direita
cavernícola, encastelada no poder sob tutela dos EUA, cujo representante
é o presidente Fox, ex-director da Coca Cola.
Na despedida, ao contemplar do céu a maior cidade do mundo, aqueceu-me
a certeza de que o meu México fascinante permanece vivo e o seu povo
voltará a caminhar pelas grandes alamedas da Historia. Num mundo em que
o capitalismo terá desaparecido.
Serpa, 26/Março/2006
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