por Miguel Urbano Rodrigues
Em 1981, a oferta inesperada de um livro da biblioteca de um hotel do Vogtland,
na RDA, estimulou o meu interesse por um período decisivo da
História da Alemanha.
Era o primeiro tomo da Histoire de l 'Allemagne Contemporaine, de Gilbert Badia.
[1]
Desconhecia então que o autor era um talentoso historiador comunista que
havia residido na Alemanha de 36 a 38, quando Hitler, firmemente instalado no
poder, preparava, ante a passividade da França e da Inglaterra, a
tragédia que foi a II Guerra Mundial.
O interesse despertado pelo livro de Badia foi tao grande que em diferentes
passagens por Paris tentei sem êxito adquirir o II tomo.
Reli agora com enorme prazer e proveito o I tomo.
PRÓLOGO MAL CONHECIDO
Na primavera de 1917 a maioria do povo alemão acusava o desgaste da
guerra. O sonho da vitória rápida e fácil findara no
Marne. Em 1916 na batalha de Verdun, outra derrota alemã, o
exército imperial perdera 250.000 homens.
O bloqueio inglês funcionava e as autoridades impunham um racionamento
severo dos produtos alimentares. No último ano a colheita da batata fora
péssima e as do trigo e do centeio medíocres.
A Revolução de Fevereiro na Rússia contribuiu para que o
sentimento de resignação dos operários e camponeses
evoluísse para um desejo cada vez mais generalizado de paz.
A entrada dos EUA na guerra, em 1917, reforçou a convicção
de que a vitória alemã era impossível. A guerra submarina
sem restrições não atingira também o objetivo.
A primeira manifestação expressiva do descontentamento popular
ocorreu em abril desse ano quando 250.000 metalúrgicos entraram em greve
em 300 empresas. A amplitude do movimento surpreendeu o governo. Os
trabalhadores exigiam "pão, liberdade e paz".
Na Marinha de guerra, imobilizada em Kiel e noutras bases navais, o desejo de
paz era transparente. No dia 6 de junho os marinheiros do Prinz Luitpold
entraram em greve da fome e os do Friedrich der Grosse exigiram a melhora do
rancho. A agitação estendeu-se a outros navios. 400 tripulantes
do Prinz Regent promoveram em terra um comício.
A reação do almirantado foi brutal. Cinco marinheiros foram
executados e dezenas condenados a pesadas penas de prisão. Mas a
agitação na Marinha prosseguiu e acentuou-se após a
vitória da Revolução de Outubro.
Em janeiro de 1918 explodiu uma vaga de greves em Berlim, Kiel, Hamburgo,
Leipzig, Colónia, Breslau, Munique, Nuremberga e outras cidades.
O SPD, o Partido Social Democrata que fora marxista e
revolucionário na época de Marx¬ já era
então revisionista sob a direção de Kautsky, Bernstein e
Hilferding atuou como cúmplice dos militares, e os dirigentes
sindicais esforçaram-se por desmobilizar os grevistas.
Hindemburgo e Ludendorff, apoiados pela burguesia industrial e pelo capital
financeiro, exigiram uma repressão violenta. O Kaiser Guilherme II, por
eles tutelado e totalmente desprestigiado, pouco mais era já do que uma
figura decorativa.
O mal-estar aumentou quando foram divulgadas as cláusulas de
Brest-Litowsk em março de 1918. Contrariando a aspiração a
uma "paz sem anexações", a Alemanha anexava uma parte
da Polónia e dos países bálticos e ocupava a Ucrânia.
A REVOLUÇÃO DE NOVEMBRO
Ludendorff acreditava que a transferência de tropas da Rússia para
a frente ocidental garantiria a vitória da Alemanha. Mas as suas
ofensivas da primavera e do verão fracassaram. Em Outubro a derrota
militar da Alemanha era já uma certeza.
A MARINHA DESENCADEIA A REVOLUÇÃO
No dia 3 de Novembro generalizou-se a rebelião da Marinha.
No dia seguinte, Kiel estava nas mãos dos marinheiros amotinados. O
exército recusou intervir. Nos navios de guerra e nas fábricas
formaram-se Conselhos de Operários e militares, inspirados pelos
sovietes russos, desfraldando a bandeira vermelha da revolução.
No dia 10 de Novembro em toda a Alemanha o poder real estava nas mãos
dos Conselhos.
Mas escreve Gilbert Badia "esses revolucionários
são pacíficos. Os 14 pontos que submetem ao governador da
praça constituem um programa anódino: exigiram, a
libertação dos presos, a liberdade de imprensa, a mesma
alimentação dos oficiais e a anulação da ordem de
saída da esquadra para o alto mar".
Gustav Noske, então um obscuro deputado social-democrata, viria a
desempenhar um papel decisivo na contrarrevolução. Conseguiu ser
eleito presidente do Conselho dos Operários e Marinheiros de Kiel, e
nomeou-se a si mesmo governador da cidade. Mais tarde revelou que procedera
assim para conter a rebelião.
Como explicar o afundamento súbito e total de um regime que meses antes
parecia sólido e contar com o apoio da maioria da
população?
Na realidade ninguém inicialmente se levantou para o defender.
Badia sublinha, porém, a fragilidade dos Conselhos Populares. Quase tudo
era espontâneo. Não havia uma organização, um
partido a dirigir a revolução. Os Espartaquistas, liderados por
Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, tinham uma influência reduzida fora
das grandes cidades. Constituíam aliás uma pequena minoria na
USPD, o partido nascido de uma cisão do SPD.
A propaganda anti-bolchevique desempenhou um papel fundamental na derrota da
revolução. O medo do comunismo alarmou um povo profundamente
conservador. Foi uma arma poderosa que contribuiu para despertar a burguesia
alemã, humilhada pela derrota militar.
A MUDANÇA NA CORRELAÇÃO DE FORÇAS
Nos últimos meses da guerra a correlação de forças
alterara-se bruscamente.
Enquanto o prestígio da monarquia caía para um nível muito
baixo e o discurso dos militares perdia toda a credibilidade, o Partido Social
Democrata adquiria de repente um protagonismo enorme, preenchendo o
vácuo político posterior ao Armistício assinado em
Compiègne a 11 Novembro.
O SPD ao longo da guerra nunca criara problemas ao governo imperial.
Quando assumiu o governo, após a abdicação e fuga do
Kaiser Guilherme II, era o único partido que mantinha uma grande e
sólida organização. Dispunha de quadros experientes e
controlava os sindicatos.
"Num país escreve Badia em que os sentimentos de
ordem e disciplina assentam numa antiga tradição recebeu a
adesão da maioria dos funcionários, porque estava no poder, e de
uma parte das classes médias que não são necessariamente
conservadoras, mas que não eram insensíveis à propaganda
da burguesia que tendia há muito a identificar o socialismo com
desordens sangrentas".
Quando irrompeu a Revolução, o SPD foi para a grande burguesia o
partido indicado para formar o governo de transição.
O presidente do partido, Friedrich Ebert, foi naturalmente designado para
chefiar o poder executivo.
O SPD ainda tinha a confiança de grande parte do proletariado
alemão e a maioria dos Comissários do Povo eram membros do
partido. Mas eles funcionaram como quinta coluna no âmbito do movimento
revolucionário. Ebert não afastou generais, ministros, altos
funcionários.
Em Janeiro de 1919, nas primeiras eleições gerais, o SPD recebeu
11 milhões de votos, mais de um terço dos sufrágios
emitidos. Os Independentes da esquerda revolucionária somente obtiveram
2.300.000 votos (menos de 10%).
Ebert era um monárquico arrependido que odiava a revolução
e o socialismo. Embora durante breves semanas o poder real pertencesse aos
Conselhos de Operários e Soldados, ele tratou de o exercer no quadro das
instituições existentes que tinham subsistido quase integralmente.
Ebert aliou-se às forças reacionárias, nomeadamente ao
corpo de oficiais prussianos, núcleo do exército permitido pelo
Tratado de Versailles.
Como afirma Badia, "a tragédia alemã é a
história dessa escolha da social-democracia, da sua aliança com
as forças mais reacionárias do antigo regime".
Em 1924, Ebert confessou que se entendera com o marechal Hindemburgo "para
formar com a sua ajuda um governo capaz de restabelecer a ordem".
O choque decisivo começou em Berlim no início de janeiro de 1919.
Nos cinco meses seguintes os revolucionários alemães lutaram com
coragem mas foram esmagados gradualmente nos diferentes estados do país.
A República de Weimar foi fundada num banho de sangue.
Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht foram presos e assassinados em janeiro de
1919.
A República dos Conselhos da Baviera o rei fugira foi o
último bastião revolucionário a cair, em maio.
Na Alemanha os historiadores sérios reconheceram após o fim do
III Reich que cabe ao SPD grande parte da responsabilidade pela
criação das condições que permitiram o acesso de
Hitler ao Poder absoluto em 1933.
Ebert faleceu em 1924 na Presidência da República de Weimar.
A classe dominante alemã glorificou-o. O traidor da social-democracia
foi guindado a herói nacional.
Uma Fundação perpetua o seu nome. É útil recordar
que essa Fundação financiou generosamente o Partido Socialista
Português (criado aliás na Alemanha) por intermedio de
Mário Soares, que múltiplas vezes elogiou Friedrich Ebert como
"eminente democrata".
20/Maio/2016/Serpa
[1]
Gilbert Badia, L'Histoire de l'Allemagne Contemporaine, 1917-1933, tome
premier, 335 pg, Éditions Sociales, Paris 1964. Outras obras de
G. Badia podem ser encontradas
aqui
.
O original encontra-se em
http://www.odiario.info/?p=4021
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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