Três factores específicos na conflitualidade da América
Latina
Droga, indigenismo, ALCA
por Miguel Urbano Rodrigues
[*]
A América Latina é uma diversidade. Entre os países que
a constituem existem abismos culturais e económicos. O denominador
comum entre eles é a dependência de um sistema de poder
imperial e a herança resultante de terem sido com
excepção do Haiti colonizados pela Espanha e Portugal
cujos idiomas são hoje ali falados por mais de 500 milhões de
pessoas.
Foram diferentes as estratégias dos colonizadores. Mas com poucas
excepções ficaram assinaladas por políticas de
genocídio. Os de Tenochtitlan, no México, e o posterior à
conquista do Tahuantinsuyo, no Peru, deixaram memória pela sua
amplitude. No Brasil milhões de índios foram também
vitimas da colonização.
Essas chacinas, prolongadas, deixaram marcas profundas no imaginário
dos povos mestiços contemporâneos, filhos de culturas
antagónicas.
ALCA
Na maioria dos países latino-americanos assume amplitude o movimento
de repúdio à Área de Livre Comércio das
América (ALCA).
Os governos, com poucas excepções, aceitaram o projecto dos EUA,
mas os povos rejeitam-no.
O nome, concebido em Washington, nas versões em espanhol e inglês,
é propositadamente enganador. A chamada Associação de
Livre Comércio das América não foi concebida para ser uma
aliança entre iguais, mas sim um projecto recolonizador.
A grave crise que a América Latina atravessa coincide com a escalada
agressiva dos EUA em busca da hegemonia planetária. Essa escalada
é acompanhada de uma campanha mediática na qual a exigência
de combate ao terrorismo serve de pretexto e justificação para
uma política assinalada por agressões militares na Ásia
que visam o controle de recursos naturais de povos do Terceiro Mundo, sobretudo
o petróleo e o gás.
Um dos objectivos da ALCA é a redução do colossal
défice comercial dos EUA que no ano passado excedeu os 350 mil
milhões de dólares. Outro, paralelo, é a
apropriação das riquezas da América Latina, uma
região que produz 40% do oxigénio do planeta, dispõe de um
terço da água doce renovável da Terra e dos maiores
recursos em biodiversidade.
A herança da dependência latino-americana, agravada pelas
políticas neoliberais impostas pelo Consenso de Washington, transparece
numa divida externa superior a 800 mil milhões de dólares, em
permanente aumento.
A subida da maré do descontentamento aparece assim como fenómeno
natural.
Segundo o projecto inicial, a ALCA deveria estar operativa em Janeiro deste
ano. Mas o projecto fracassou em consequência da oposição
do Brasil, da Venezuela e da Argentina. Em Março do ano passado as
negociações foram suspensas e não voltaram a ser
retomadas. Washington não designou sequer o sucessor de Robert
Zoellink, que representou os EUA no diálogo com os 34 países do
Hemisfério.
Perante o malogro do projecto, o governo Bush elaborou uma estratégia
alternativa. Trata de assinar com diferentes países Tratados de Livre
comércio bilaterais, ou seja uma ALCA em pequena escala.
Significativamente os governos que já assinaram tratados desse tipo
são aqueles cuja relação de dependência é
mais ostensiva: o do Chile e os dos países da América Central.
Na fila estão os da Colômbia, do Peru e do Equador.
A resistência da Venezuela era esperada. Mas a do Brasil um dos
países que mais sofreria com a integração sob hegemonia
norte-americana incomodou particularmente Bush. Sem o gigante
brasileiro, a ALCA seria inviável.
Os governos dos países que assinaram Tratados Bilaterais afirmam que
eles lhes asseguram uma melhor participação no processo de
globalização. Consideram que os benefícios do livre
comércio são maiores do que os inconvenientes do mesmo.
Identificam nos TLC uma oportunidade para o crescimento económico.
O exemplo do México contraria essa argumentação.
Do balanço apresentado pelo Prof. Alberto Anaya no IX Seminário
Internacional "Los Partidos y una Nueva Sociedad" (4 a 6 de
Março pp, na capital mexicana) conclui-se que o Tratado de Livre
Comercio da América do Norte (TLCAN) contribuiu no México para
gerar
Maior concentração de rendimento
Mais pobreza
O desastre no campo. O pais que era, por exemplo, auto-suficiente em milho
importa agora 6 milhões de toneladas daquele cereal.
A falência de milhares de pequenas e médias empresas
O aumento do desemprego e do subemprego
A redução do salário real
A contracção do mercado interno
A multiplicação dos emigrantes para os EUA (a média anual
era de 100 mil antes do TLCAN e em 2004 atingiu 450 mil).
O Prof. Arturo Huerta, da Universidade Autónoma do México, um
dos economistas mais prestigiados do Continente, sublinha num ensaio que os
TLC permitem aos EUA "ampliar os acordos preferenciais e a
flexibilização para a entrada dos seus produtos e o investimento
e obter o controle de sectores estratégicos que são do seu
interesse, assim como salvaguardar os interesses das suas empresas
transnacionais. Tudo isso actua em prejuízo dos países
signatários dos referidos acordos. Com esses acordos bilaterais
diminui a participação e o controle que os Estados nacionais
exercem sobre a actividade económica, de modo a conseguir a abertura de
novos sectores estratégicos e de alta rentabilidade ao capital
internacional».
[1]
Nos TLC que os EUA impôs sublinha "não se
contemplam políticas de compensação e de apoio a
infra-estruturas em benefício dos menos desenvolvidos, tal como as
estabelecidas na União Europeia, onde os países mais fortes
aprovaram políticas compensatórias de apoio aos mais
débeis".
Não obstante o nível de informação dos povos sobre
as consequências da ALCA ser muito baixo, a contestação ao
projecto repito aumentou de ano para ano.
As conferencias e seminários anti-ALCA e outras iniciativas de protesto
promovidas em diferentes países contribuíram para que o debate
chegasse a amplas camadas da população em todo o Continente.
O balanço negativo para o Canadá e o México do Tratado
de Livre Comercio da América do Norte NAFTA em inglês
permite avaliar o que acontecerá na América do Sul se a
ALCA for adiante.
No Canadá o domínio exercido sobre a economia do país
pelas grandes transnacionais dos EUA levou à falência milhares de
pequenas e médias empresas.
No México os efeitos são devastadores. Um punhado de
transnacionais dos EUA é responsável por 25% das
exportações do país. A propaganda do governo de Fox
explora o facto de as exportações superarem actualmente 160 mil
milhões de dólares por ano, mas oculta que somente uma
percentagem mínima da riqueza produzida fica no país. A
balança comercial continua a ser deficitária. É
significativo que as remessas dos emigrantes sejam a principal fonte de divisas
do pais, ultrapassando o turismo e o petróleo. A NAFTA contribuiu para
que o desemprego tenha aumentado quase 10% desde o inicio da
administração Fox. Actualmente, dos 105 milhões de
mexicanos, mais de 60% vivem na pobreza, com uma alta percentagem de
indigentes. A dívida externa ultrapassa os 150 mil milhões de
dólares e a banca passou a ser quase totalmente estrangeira.
O México é um mostruário do que aconteceria na
América Latina se o projecto concebido em 1991 pelo pai do actual
presidente dos EUA se concretizasse.
A oposição da Venezuela Bolivariana assumiu, aliás,
facetas de desafio porque Chavez propõe como alternativa uma
integração que excluiria os EUA. A sua ideia da ALBA da
qual Cuba seria membro é utópica, mas traz a certeza de
que a oposição de Caracas à ALCA se radicalizou.
É significativo que a agenda das conferencias e seminários
convocados para aprofundar o debate sobre a ALCA se tenha ampliado de ano
para ano. Com o tempo transformaram-se em oportunidade para a
transmissão e assimilação de um saber diversificado. Com
a participação de personalidades eminentes da
intelligentsia
do Continente, incluindo estadunidenses e canadianos, aparecem como
fóruns onde se discutem questões que transcendem a ALCA como
cito a Divida externa a, a Militarização, o
Ambiente, Cultura e Identidade, a Economia, a Agricultura, a
Informação, os Trabalhadores imigrantes, as Mulheres, os
Estudantes, os Camponeses, os Aborígenes, a Religião, os
Parlamentos, os Direitos Humanos, as Lutas Sindicais, a Educação.
O nível da contestação e as formas de a expressar variam
muito de país para país, mas no âmbito da Aliança
Continental, criada para combater a ALCA, desenvolveram-se nos últimos
anos acções de massas comuns que se inserem num programa
hemisférico.
Aquilo que há quatro anos parecia impossível tornou-se uma
realidade: a luta contra a ALCA mobilizou milhões de latino-americanos
da Guatemala à Argentina.
INDIGENISMO
O Continente Americano foi a área da Terra mais tragicamente marcada
pelo massacre dos povos que o habitavam quando os europeus ali chegaram em
força a partir do final do século XV.
El alguns casos, como no México e nos Andes centrais, as
matanças assumiram as proporções de genocídios.
Não existem estatísticas confiáveis, mas admite-se que
a população de 10 a 12 milhões de ameríndios
distribuída pela Mesoamerica quando Cortez conquistou e destruiu
Tenochtitlan estaria reduzida a menos de dois milhões no inicio do
século XVII. As doenças trazidas pelos europeus, as chacinas e o
trabalho escravo foram as causas principais dessa tragédia. Nos
territórios do antigo Incario que ocupava uma área que ia
do sul da actual Colômbia ao Bio Bio no centro do Chile a
população seria sensivelmente igual quando Pizarro iniciou a
conquista. E as proporções do genocídio similares.
Darci Ribeiro admite no seu livro "O Povo Brasileiro" que no Brasil
o total de aborígenes não seria, quando Pedro Álvares
Cabral ali chegou em 1500, inferior a 10 milhões. Exagera porque, na
ausência de grandes civilizações precolombianas, as tribos
existentes, em grande parte nómadas, não estavam em
condições de produzir alimentos para uma população
tão numerosa. Mas as matanças de indígenas, sobretudo
nos séculos XVII e XVIII, foram também devastadoras.
Nos actuais territórios dos EUA e do Canadá o genocídio
é melhor conhecido. Estimativas de historiadores e demógrafos
avaliam em dois milhões o total de índios que habitavam esses
territórios. No final do século XIX restaria um
décimo.
A vastidão argentina era quase desabitada, mas os índios foram
dizimados sobretudo durante a ditadura de Rosas.
O Chile foi uma das regiões onde os povos indígenas opuseram
maior resistência aos invasores europeus e seus descendentes.
Historiadores chilenos sustentam que os araucanos hoje conhecidos como
mapuches mataram mais soldados espanhóis ao longo de três
séculos do que todos os demais povos indígenas da América
Latina somados. Os mapuches aproximadamente um milhão num pais
cuja população atinge 15 milhões continuam, alias,
a lutar com tenacidade pelas suas terras ancestrais e contra a
desflorestação.
Entretanto foi somente a partir da segunda metade do século XX que o
indigenismo como fenómeno social adquiriu expressão e
força.
José Carlos Mariategui, um dos mais notáveis pensadores
políticos do Continente, procedeu a uma autêntica radiografia da
realidade social do seu pais na obra hoje clássica "Siete Ensayos
de Interpretacion de la Realidad Peruana".
[2]
Mas os movimentos indigenistas não dispunham então de
condições mínimas para intervir activamente na
história dos seus países.
Na própria literatura passariam muitos anos antes que José Maria
Arguedas, outro peruano genial, oferecesse nos seus romances ele foi o
criador do realismo mágico a visão e o sentir dos actuais
comuneros
das altiplanuras andinas.
Não cabe num trabalho como este esboçar sequer o panorama dos
movimentos indigenistas contemporâneos na América Latina.
Chamarei assim somente a atenção para alguns aspectos da luta
dos povos indígenas da Região por direitos que desde a
Conquista lhe foram, pela violência, negados nas terras que eram suas.
Em primeiro lugar lembrarei aqui que o quechua e o aymará, as duas
línguas principais do Incário são hoje os idiomas em que
milhões de índios dessas etnias são alfabetizados em
escolas do Peru, e da Bolívia. Quando, há mais de 35 anos,
visitei pela primeira vez a capital boliviana, La Paz, quase 70% da
população local tinha ainda como idioma materno o aymará.
Uma concepção sectária do nacionalismo desenvolveu-se
ultimamente naquele país entre as comunidades aymarás. O seu
líder, Felipe Quispe, assumiu inclusive uma posição
separatista, preconizando a criação de uma Republica
Aymará.
Essa etnia habita as áreas próximas do lago Titicaca, na
Bolívia e no Peru. No total são menos de dois milhões.
No Equador, onde as comunidades quechuas são majoritárias, os
movimentos indigenistas assumiram um papel decisivo na
insurreição popular que derrubou um Presidente da Republica em
l998. Agrupados na Confederação Nacional de Indígenas do
Equador (CONAIE) esses movimentos foram a alavanca política da
eleição para Presidente do coronel Lúcio Gutierrez, que
havia sido o líder da marcha revolucionária sobre Quito. A
traição de alguns dirigentes e a inexperiência de outros
permitiram, entretanto, uma rápida alteração da
correlação de forças. Eleito Presidente, após
cumprir um tempo de prisão, Lúcio Gutierrez, incluiu no seu
primeiro gabinete ministros índios indicados pela CONAIE, incluindo a
titular dos Negócios Estrangeiros. Mas a lua de mel teve curta
duração. Lúcio Gutierrez arquivou os compromissos com a
CONAIE, reprimiu os movimentos indígenas e passou a ser um dos mais
fieis aliados dos EUA no Continente.
O Pachacutik, partido cujos membros são originários das
comunidades aborígenes, é entretanto hoje um dos principais
partidos equatorianos. As intervenções dos seus dirigentes
impressionam pela qualidade nos fóruns internacionais em que comparecem.
No Peru, o Presidente Alejandro Toledo é de origem índia. Mas,
chegado ao poder, rompeu todos os compromissos assumidos com as massas
indígenas. Educado nos EUA, é um neoliberal ortodoxo.
A Bolívia é no momento cenário de um processo que pelas
suas características não tem precedentes. A luta para defender
camponeses, na maioria indígenas, vítimas da brutal
repressão do governo de Sanchez Lozada na sua campanha para a
destruição de plantações de coca esteve na origem
de um movimento MAS, cujo líder, Evo Morales, de origem aymará,
adquiriu prestigio internacional.
Incapaz de criar culturas alternativas para substituir as
plantações erradicadas, o governo de Lozada lançou na
miséria milhares de famílias, criando condições
favoráveis às mobilizações dos
cocaleros.
Numa ascensão vertiginosa, Evo Morales, com um discurso populista,
somente não conquistou a Presidência da Republica porque a
direita tradicional apoiou a reeleição pelo Congresso de Sanchez
de Losada.
No desenvolvimento de crises em cadeia, o presidente, após
matanças sangrentas, foi forçado a renunciar no contexto de uma
insurreição popular em que os indígenas aymarás,
os mineiros e os
cocaleros
cercaram La Paz, isolando a cidade.
O papel desempenhado por Evo Morales então e posteriormente, durante o
actual governo de Mesa, não foi claro, mas a liderança que exerce
sobre uma importante parcela das massas indígenas é uma
realidade. O facto de liderar um movimento que defende os produtores de coca
criou-lhe uma péssima imagem nos EUA. Condoleeza Rice, a actual chefe
do Departamento de Estado, identifica nele um truculento revolucionário.
Essa opinião não é compartilhada pela maioria dos
marxistas bolivianos.
O MAS não é ideologicamente um movimento socialista, mas Evo
já foi convidado por Fidel a falar em Havana no Primeiro de Maio
perante um milhão de pessoas.
Outro país onde a herança indígena tem um grande peso
é o Paraguai. Nele o guaraní idioma também falado
no oriente boliviano e por aborígenes brasileiros é no
pais língua oficial ao lado do castelhano.
Um acontecimento de repercussão mundial viria no inicio dos anos 90
colocar o indigenismo no centro das atenções: a
rebelião de Chiapas. Na realidade o chamado Exercito Zapatista de
Libertação Nacional é uma guerrilha virtual, praticamente
sem armas e que somente no inicio travou combates com as forças armadas
mexicanas.
A ressonância do movimento resultou em grande parte do prestígio e
do talento do seu mais destacado dirigente, o sub-comandante Marcos, um
intelectual brilhante, ex. professor universitário, cujo discurso
humanista, antineoliberal, chegou a milhões de pessoas através da
Internet. A selva lacandona, em Chiapas, tornou-se um lugar de romagem,
atraindo escritores e políticos de todo o mundo, entre os quais
José Saramago.
Transcorridos 15 anos, a situação dos índios do
México não se alterou sensivelmente e o novo Código
indígena não lhes confere mais direitos do que o anterior, mas o
fascínio exercido por Marcos sobre os intelectuais e a juventude
não tem sido afectado pelo caracter polémico das suas teses sobre
o Poder e o Estado, contestadas por intelectuais marxistas e por muitos
partidos revolucionários.
Marcos é incontestavelmente um extraordinário fenómeno
mediático. Mas ele próprio afirma ser um rebelde, não um
revolucionário.
A DROGA MITOS E REALIDADE
O narcotráfico assumiu nas ultimas décadas as
proporções de flagelo mundial. Não é um
fenómeno latino americano. Os seus tentáculos cobrem hoje todo
o planeta. A produção de cocaína e de heroina e a sua
exportação foram estimuladas pela procura externa. Os
cartéis colombianos, os mais famosos, surgiram e cresceram estimulados
pelas mafias importadoras da droga que tinham e continuam a ter seu polo
nos países consumidores, sobretudo nos Estados Unidos.
As engrenagens montadas na América Latina não diferem
aliás muito das que funcionam para o trafico da heroina, montado a
partir das plantações de papoulas no Afeganistão e em
alguns países do Sudeste Asiático.
A desinformação sobre o narcotráfico é tão
ampla que a maioria da humanidade desconhece a rede de cumplicidades
existente entre governos e serviços de inteligência de
países que afirmam combater o narcotráfico e as mafias que o
controlam.
Durante os anos 80 é um exemplo os EUA apoiaram com armas
e dinheiro a Hesbe Islami, organização fundamentalista que
combatia a revolução afegã. Ronald Reagan definiu
então Gulbudin Hekmatyar, o seu líder, como um "combatente
da liberdade". Ora, Gulbudin dirigia então o negócio da
heroina. Ao longo da fronteira nordeste do Afeganistão tive a
oportunidade de contemplar numa visita aquele país as imensas
plantações de papoulas a partir das quais eram produzidos o
ópio e a heroina que inundavam os mercados mundiais da droga.
Actualmente o Afeganistão, ocupado por tropas americanas e europeias,
produz muito mais heroina do que na época dos talibãs. A
comunicação social estadunidense tem reconhecido essa realidade.
Sobre o tema a prestigiada revista estadunidense
Monthly Review
publicou um interessante trabalho.
O relatório anual do governo dos EUA sobre o combate às drogas
apresenta um panorama distorcido do problema. É dada uma grande
ênfase aos esforços da Drug Enforcement Agency (DEA) nas campanhas
que visam a erradicação das plantações de
narcóticos e o trafico de heroina e cocaína. Capítulos
inteiros são dedicados à critica aos governos, sobretudo da
América Latina, acusados de colaboração insuficiente na
luta contra o flagelo.
Mas o fundamental é omitido nesses relatórios. Em primeiro
lugar não informam que a destruição de
plantações de coca mediante produtos químicos como o
gliosato proibido nos EUA e na Europa tem envenenado rios e
terras da bacia amazónica e lançado na miséria milhares
de camponeses. O glifosato é um herbicida que mata qualquer coisa com
folhas. Segundo Sean Donahue, "disseminado por aviões de
fumigação, torna-se uma arma indiscriminada que aniquila as
culturas de alimentos e danifica severamente a selva. Ha evidências de
que promove o crescimento de cogumelos tóxicos. O seu efeito persiste
na água onde pode envenenar peixes, aves e anfíbios. Nos seres
humanos provoca erupções, problemas respiratórios,
náuseas e cegueira temporária(...) Há evidencias
comprovativas de que a fumigação foi utilizada como
estratégia para expulsar pessoas das suas terras, cobiçadas pelas
empresas petrolíferas no sul da Colômbia.
[3]
Entretanto, a produção de cocaína, na Colômbia e
também no Peru, tem aumentado em vez de diminuir. Os grandes
plantadores não foram afectados.
Em segundo lugar, o Departamento de Estado omite que o combate à droga
se apresenta na prática intimamente ligado ao desenvolvimento da
estratégia global dos EUA na Região. No caso da Colômbia,
o Congresso aprovou recentemente a transferência de verbas do Plano
Colômbia teoricamente concebido para promover o desenvolvimento
económico e social e erradicar o narcotráfico para o
combate aos movimentos guerrilheiros.
As ligações entre a DEA e os serviços de
inteligência são inocultáveis, como ficou comprovado com a
captura pelas Forças Armadas Revolucionarias da Colômbia (FARC)
de três agentes da CIA que viajavam num avião derrubado pela
guerrilha há dois anos na região amazónica colombiana.
A documentação existente a maioria de fontes
estadunidenses sobre os objectivos políticos das campanhas de
desinformação relacionadas com o narcotráfico, é
hoje torrencial.
Perante tamanha abundância, sugiro a consulta ao sítio web
"The Narco News Bulletin", respeitado pelo rigor e qualidade da
sua informação.
Nos últimos anos, as FARC colombianas foram apresentadas como a
"guerrilha do narcotráfico". Incluídas na lista das
organizações terroristas pelos EUA e pela União Europeia,
os seus representantes são hoje perseguidos pela Interpol em
dezenas de países.
Tive a oportunidade em Junho de 2001 de passar três semanas em
acampamentos amazónicos das FARC. Escrevi sobre essa experiência
uma serie de artigos publicados em Portugal, nos EUA e na América
Latina. Quero apenas afirmar aqui que regressei da selva colombiana com a
convicção enraizada de que os combatentes daquela
organização guerrilheira são revolucionários que
não somente não consomem drogas como estão empenhados no
desaparecimento do narcotráfico.
Foi o Exército colombiano com o apoio de sucessivos governos
quem criou como braço do estado para tarefas sujas as
organizações de paramilitares, essas sim estreitamente ligadas
aos cartéis da droga.
Cabe lembrar aqui, na Universidade de Coimbra, que o actual presidente da
Colômbia, Álvaro Uribe, que hoje se apresenta como paladino nas
campanhas contra a droga, foi, quando governador de Antioquia o polo
dos cartéis da cocaína quem promoveu e financiou o
paramilitarismo, sendo publicamente acusado de manter contactos
íntimos com o narcotráfico.
O tema, senhoras e senhores, é tão amplo que se torna
extremamente difícil uma abordagem global que o ilumine na sua
complexidade no breve tempo de que disponho.
Optando pelo pragmatismo, permito-me transcrever alguns parágrafos de
uma entrevista que fiz em Março de 2004 com o responsável
pelas Relações internacionais das FARC. Esse trabalho pode ser
consultado em
http://resistir.info/mur/entrevista_cmte_farc_port.html
.
O meu interlocutor, o comandante Rodrigo Granda, foi posteriormente sequestrado
em Caracas por polícias colombianos, em operação pirata
violadora da soberania venezuelana e encontra-se hoje encarcerado num
presídio de Bogotá, correndo o risco de extradição
para os EUA.
Em resposta a uma pergunta minha sobre as acusações que
apresentam as FARC comprometidas com os cartéis da droga, Granda
mais conhecido como o comandante Ricardo Gonzalez respondeu:
"Contra nós sempre houve campanhas de desprestigio. Quando
não existia o narcotráfico na Colômbia diziam que
éramos a quinta coluna do imperialismo soviético, que as FARC
eram financiadas pelos soviéticos e que somente por isso existiam.
Depois trataram-nos como bandoleiros ou simples delinquentes comuns.
Posteriormente sim, o senhor Stamb (ex-embaixador dos EUA em Bogotá e
colaborador do Pentágono) forjou o epíteto da narcoguerrilha, e
com frequência nos chamam também narcoterroristas ou simplesmente
terroristas. É uma campanha bem orquestrada e montada em momentos
escolhidos. Qualquer pessoa pode aperceber-se de que o negócio do
narcotráfico é um negócio eminentemente capitalista, que
na Colômbia, pelas condições específicas da
aplicação das políticas neoliberais arruinou o campo,
tirou da circulação um milhão e quinhentos mil hectares de
terras, antes dedicadas ao cultivo do café, arruinou também toda
a economia do sorgo, arruinou toda a economia de outro produto, o
algodão. Os camponeses começaram a cultivar marijuana ou a
plantar coca e isso foi em certa medida tolerado pelos governos colombianos.
Os narcotraficantes na década de 80 estavam metidos em todas as
camadas sociais do pais. O próprio Pablo Escobar, o rei da droga,
fez-se eleger para a Câmara dos Representantes nas listas do Partido
Liberal. E nos aviões dos narcotraficantes colombianos viajavam desde o
presidente já falecido Carlos Lleras Restrepo até aquilo que
vimos com o narcopresidente Ernesto Samper, que foi eleito com os dinheiros do
narcotráfico. Recordo um episódio expressivo da hipocrisia dessa
sociedade colombiana. Quando o papa João Paulo II visitou a
Colômbia, os cartéis da droga reuniram uns três
milhões de dólares para os oferecer a obras sociais do Vaticano.
Certamente o papa não soube donde procedia esse dinheiro, mas ele chegou
às mãos do chefe da Igreja Católica.
Pablo Escobar era um homem muito religioso; rezava à Virgem Maria antes
de colocar as bombas. Mas, enfim, como sabe, o narcotráfico contaminou
todas as estruturas da sociedade colombiana, desde o parlamento aos grandes
banqueiros e industriais, aos juízes e outros magistrados e à
alta oficialidade do exército colombiano... Inclusivamente,
aviões da força aérea colombiana levavam droga para os
EUA. O navio insígnia da Armada colombiana, o
"Glória", foi interceptado quando transportava cocaína.
Até no avião presidencial, quando o dr. Ernesto Samper Pizarro
ia visitar os EUA, encontraram cocaína. Mas obviamente esse
negócio é dos mais rentáveis do planeta. Está
quase no mesmo nível dos armamentos. Aqui o capital circula com muita
rapidez; analistas do problema calculam que estão em
circulação no mundo 550 mil milhões de dólares,
produto do narcotráfico. Nesses 550 mil milhões a parte da
América latina é somente de 20 000 milhões dos quais
chegaram à Colômbia 5 500 milhões segundo os mais
optimistas, embora se admita que a Colômbia produz 80% da cocaína
do planeta. Onde permanece esse dinheiro? Dentro do Império; o grande
negócio é dos próprios EUA. Durante os dois mandatos de
Clinton a economia dos EUA cresceu 6,11%. Porque, claro, os capitais
provenientes do narcotráfico irrigavam como torrente financeira a
economia norte americana. As FARC propuseram aos EUA e à ONU e a todos
os governos do mundo que estivessem interessados em dar combate ao
narcotráfico uma política clara de substituição de
culturas, de ataque em profundidade à questão. Nós
recebemos os ataques dos grandes cartéis da droga porque tivemos de os
enfrentar militarmente, porque a verdadeira aliança é a dos
narcotraficantes com os paramilitares, com os homens de alguns comandos
militares colombianos e toda a apodrecida casta política colombiana
enlameada pelo negócio. São eles realmente quem o dirige, pois
podem sair do país e entrar nele sem problemas. Nós não
podemos sequer mover-nos livremente no território nacional, porque nos
perseguem por todo o lado. Como sabe, desde a época da guerra fria,
todo o Caribe e o Pacífico e a Região Andina estão
infestados radares dos EUA. Nós dissemos aos gringos: deixem de ser
hipócritas; o problema é vosso e vocês tiram lucros dele.
Calcula-se que nos EUA, neste momento, haverá uns 25 milhões de
consumidores directos de droga. Se admitirmos que cada habitante consumidor
afecta quatro ou cinco pessoas, chega-se à conclusão de que 120 a
125 milhões estão envolvidos no problema. Para combater dentro
dos EUA o flagelo dos narcóticos, o governo para reduzir 1% do consumo
no interior do pais, curando viciados, promovendo campanhas nas universidades e
colégios e entre a população em geral gastaria cerca de
180 milhões de dólares. Se dentro dos EUA se fizesse a mesma
campanha, mas tendo como complemento o combate sério à entrada
de droga no pais, então, para se obter a mesma redução de
1%, a Administração federal gastaria 380 milhões de
dólares.
A hipocrisia é inocultável. Não combatem o problema nos
EUA, mas levam a guerra contra a droga à Bolívia, ao Peru, ao
Equador ou à Colômbia e então os custos para reduzir o
consumo na mesma percentagem de 1% elevam-se a 780 milhões de
dólares.
Por outras palavras, seria mais proveitoso para os EUA o combate no interior do
seu próprio território. Nos propusemos no I Encontro
Internacional sobre o combate a culturas chamadas ilícitas e ao
narcotráfico, propusemos à União Europeia repito
e ao presidente Pastraña substituir essas
plantações com base num estudo realizado num município
chamado Cartagena del Chairá onde existiam 7200 hectares de
plantações de coca. A ideia era instalar ali um grande
laboratório experimental, realizar um teste para provar que se pode
efectivamente combater o narcotráfico em profundidade. Mas, como disse,
logo se levantaram contra nós esses fantasmas que servem de pretexto
aos EUA para agredir militarmente a Colômbia e esconder o verdadeiro
objectivo do Plano Colômbia, que é um plano contrainsurreccional
para acabar com as FARC, para implantar o seu domínio no país,
agredir a Venezuela e, alem disso, apropriar-se da Região.
Já antes falámos da Amazónia, a propósito da
cobiça despertada pelas suas riquezas. Lamentamos muito neste momento
tão difícil que amigos nossos continuem acreditando em
infâmias que visam a desacreditar a nossa organização
guerrilheira. Sempre condenámos o narcotráfico como crime contra
a humanidade. Sabemos dos males que causa sobretudo entre a juventude.
Nós, nas áreas onde estamos implantados condenamos com muito
rigor o consumo de estupefacientes.
Sendo maioritariamente camponesa, a guerrilha das FARC é uma guerrilha
sadia. Os camponeses da Colômbia, os próprios camponeses dos EUA,
como os de Portugal, da Argentina ou da Venezuela são gente sadia, que
nunca utilizou drogas. Quem as consome são estadunidenses, digo
milhões deles, o que demonstra o alto grau de desequilibro moral dessa
sociedade. O mesmo acontece na Europa. Na Colômbia, nós
não estamos envolvidos no negócio, mas a partir de
calúnias afirma-se que as FARC são um movimento
milionário, o que dá vontade de rir porque ninguém sabe
com que sede outro bebe. Nós somos uma guerrilha autárquica e
vimo-nos obrigados a autofinanciar todas as coisas. Há grandes
industriais patriotas que contribuem para as FARC, tal como
proprietários de grandes fazendas, que também nos ajudam. As
FARC mantêm na Colômbia negócios rentáveis que
facilitam o seu abastecimento. Obviamente, como é uma guerra que nos
foi imposta e são os ricos quem tem o dinheiro, os potentados que se
beneficiam do suor e das lágrimas do nosso povo, tivemos de recorrer por
vezes a retenção de pessoas, os chamados sequestros, mas
não esqueça que na última etapa, a partir de El
Caguán, as FARC promulgaram a Lei 002, mediante a qual qualquer
cidadão, nacional ou estrangeiro, cujos lucros excedam um milhão
de dólares tem de pagar às FARC 10%. Estamos cobrando esse
imposto e para o cobrar não pode ser com flores. Temos de agir porque
as FARC, quando promulgam uma lei é para ser cumprida. Neste momento,
cada vez mais industriais, mais banqueiros, mais transnacionais tocam
à porta das FARC 'para saber quanto têm que nos pagar' ".
A transcrição foi longa, mas creio que as palavras de Rodrigo
Granda serão mais úteis para iluminar o mundo podre do
narcotráfico na Colômbia do que a leitura de dezenas de artigos
sobre o tema.
Quero somente acrescentar que identifico nesse comandante das FARC um dos
revolucionários mais puros e autênticos que conheci na minha
já longa vida.
Encontrei-o pela ultima vez em Caracas, em Dezembro passado durante o Encontro
Mundial de Intelectuais em Defesa da Humanidade. Dois dias depois era
sequestrado em pleno dia a dois passos do Hotel Hilton, no centro daquela
capital.
Vou terminar esta comunicação sobre os três temas que
me propuseram, a ALCA, o indigenismo índio e o narcotráfico,
inseridos na conflitualidade da América Latina. Pela sua diversidade,
tenho consciência da inevitável superficialidade da abordagem
que tentei.
Senhoras e senhores, se de algum modo consegui estimular o vosso interesse
pela América Latina, pela sua história e pela
contribuição dos seus povos na luta global em defesa da
humanidade, ameaçada por uma crise de civilização,
sentirei que valeu a pena corresponder ao honroso convite do meu amigo, o
general e professor Pezarat Correia que me trouxe a esta Universidade.
Muito obrigado pela vossa atenção.
___________
Notas
1. "Los Tratados de Libre Comercio Impulsados por Estados Unidos de
América y la Profundizacion del Subdesarrollo", Arturo Huerta G.,
Universidad Nacional Autónoma de México, 2005.
2. "Sete Ensaios de Interpretação da Realidade
Peruana", José Carlos Mariategui, Editora Alfa Omega, S. Paulo
1975, trad. brasileira.
3. "The Narco News Bulletin", 25/Março/2005
http://www.narconews.com/es.html
[*]
Comunicação apresentada no Ponto 4 do seminário
"Geopolítica da paz e dos conflitos, Módulo C- Zonas de
tensão e conflito no sistema internacional contemporâneo", na
Universidade de Coimbra, em 22 de Abril de 2005.
Tema - Convergencia de três factores específicos e mais salientes
na
conflitualidade na América Latina: droga, indigenismo índio,
Área de Livre Comércio das Américas (ALCA)
Universidade de Coimbra, 22 de Abril de 2005
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|