Por que lutavam eles na defesa de Madrid em 1936?
por Miguel Urbano Rodrigues
18 de Fevereiro de 1936 é a data do início da
sublevação fascista em Espanha, do início da guerra civil.
Recordá-la nos dias de hoje é também relembrar que as
potências ocidentais que assumiram a posição de
"não intervenção" (hoje empenhadas em
agressões imperialistas em vários continentes) agiram como
aliados objectivos da intervenção directa dos fascistas
alemães e italianos. É, por outro lado, lembrar a heróica
solidariedade combatente das Brigadas Internacionais. Recordar esses
revolucionários maravilhosos é um dever numa época em que
o fascismo levanta a cabeça na Europa, nos EUA, na América
Latina. Nas planuras e montanhas da Espanha eles souberam lutar e morrer em
defesa da Humanidade, de valores e ideais que conferem significado à
vida.
Em passagem recente por Madrid, um impulso de saudosismo levou-me até
à Cidade Universitária. Perdi-me em amplas avenidas entre
edifícios modernos de diferentes Faculdades e Institutos rodeados de
aprazíveis espaços verdes.
Tive a sensação de chegar a um lugar desconhecido. E não
era. A ilusão do "novo" nascia da ação do homem;
a Cidade Universitária fora reconstruída durante a ditadura.
Caminhara por ali em 1947 durante a minha primeira visita a Espanha. O panorama
era na época outro. Eu levava na mão o livro de um francês
que descrevia com minúcias a defesa de Madrid no Outono de 1936.
Eu era então um jovem sem formação política,
modelado por uma educação burguesa. Mas o choque da leitura fora
tao forte que me atraiu ao cenário da batalha. Guardava na
memória imagens e emoções das semanas em que republicanos
espanhóis apareciam no monte onde eu, adolescente, residia em Moura com
os meus pais. Minha mãe era uma senhora muito conservadora, mas tinha
pena daquela gente que atravessava a fronteira e deixava-os dormir uma ou duas
noites num palheiro. Eles fugiam da coluna franquista de Yague que, subindo de
Sevilha, de rumo a Badajoz e Madrid, cometia massacres medonhos por onde
passava.
Transcorridas mais de seis décadas, era difícil imaginar na
serenidade quase bucólica da Cidade Universitária que ali se
travara às portas de Madrid uma batalha cujo desfecho prolongou o
conflito espanhol até às vésperas da II Guerra Mundial.
Comparei no livro as imagens que distanciavam a Cidade Universitária que
eu conhecera da inicial e esta da atual.
Em 1947, a reconstrução apenas principiara. Eram ainda
identificáveis ruinas de edifícios destruídos durante os
combates.
O livro do escritor francês, cujo nome não recordo, era factual.
Evocava os acontecimentos quase cronologicamente a partir do golpe de estado de
36,iniciado por Franco em Marrocos e Mola no Norte.
Recordo que o relato deixou na memória sementes tão fortes que
durante o meu longo exílio brasileiro escrevi um conto cuja personagem
lutara na frente de Madrid pelos republicanos.
Mas somente muitos anos depois, já comunista, e tendo lido obras
fundamentais sobre aquela guerra trágica e romântica compreendi o
significado profundo da épica defesa de Madrid.
No inverno da vida, evocar o que ali se passou nas margens do Mazanares,
encaminhou-me para uma reflexão muito diferente da que na juventude me
conduzira à Cidade Universitária em reconstrução.
Nessa primeira visita eu esforçara -me por ir ao encontro da Historia
através da leitura dos combates em que se enfrentaram forças
antagónicas. Tentava imaginar o choque das tropas do general Varela e do
coronel Yague com os milicianos e as colunas anarquistas que assumiram a defesa
da capital, sob o comando de Miaja e Rojo, enquanto se formava o
exército popular da Republica.
Sentado num talude, contemplando ruínas na ladeira que descia para o
Mazanares, tinha o dedo num mapa que localizava as antigas faculdades
destruídas quando alguém me tocou no ombro.
Era uma mulher de uns 70 anos. Perguntou:
"Que livro é esse?"
Disse-lhe que era o livro de um escritor estrangeiro sobre a defesa de Madrid
quando chegaram ali os mouros.
Ela sorriu. A minha resposta abateu o muro da desconfiança. Sentou-se a
meu lado e falou durante muito tempo, enquanto eu a ouvia, calado.
Contou que trabalhava no Hospital Clínico, arrasado dias depois, tal
como a Casa de Velasquez, quando a vanguarda dos franquistas atacou no
início de Novembro de 36. O ímpeto da ofensiva foi tão
forte que os milicianos e os anarquistas da improvisada linha defensiva
recuaram em desordem. O Governo de Largo Caballero saíra da capital para
Valencia. Os civis do bairro pensaram que a guerra acabaria logo. Os
aviões italianos e alemães bombardeavam todos dias Madrid. Uma
companhia de mouros penetrou até à Plaza de Espanha. Mas de
repente tudo mudou.
Fendendo o ar pesado da tarde com a mão que apontava para lugares que
nomeava, onde a batalha fora mais intensa, a velha senhora, testemunha da
batalha, pronunciou palavras que não esqueci:
"No dia 18, chegaram os homens da XI Brigada Internacional.
Avançaram ao encontro do inimigo e obrigaram os mouros a recuar. Alguns,
os poucos que sabiam espanhol, cantavam um hino que começava assim:
País lejano nos ha visto nacer
De odio llena el alma hemos traído
Mas la pátria no la hemos aun perdido
Nuestra pátria está hoy en Madrid
E então, voltamos a acreditar. O povo de Madrid principiou a gritar nas
ruas o No Pasarán. E os franquistas não passaram!
No dia 23 de Novembro, os combates acabaram. Os nacionalistas enterraram-se em
trincheiras na Cidade Universitária e ali ficaram até ao fim da
guerra".
A mulher, assim como aparecera, inesperadamente, desapareceu. Despediu-se com
um seco "Adios, señor" e afastou-se.
Teria participado de alguma maneira ao lado dos defensores de Madrid? A
atmosfera em Espanha, naquela época, desaconselhava perguntas a uma
desconhecida.
A "NÃO INTERVENÇÃO"
Ao rever a atual Cidade Universitária, vivia no meu corpo envelhecido um
homem muito diferente do jovem que por ali passara na plenitude da ditadura de
Franco, empurrado pelo desejoso de compreender o que se passara nas margens do
Mazanares em dias decisivos de uma guerra que o perturbava desde a
adolescência.
Tinha lido milhares de páginas sobre o tema desde os quatro volumes da
"Guerra y Revolucion en España"
[1]
ao romance "A Casa de Eulália"
[2]
e muitas obras sobre os debates na Sociedade das Nações e no
Comité de Não Intervenção criado para evitar o
envolvimento das grandes potências no conflito.
Eu sabia que o Comité, instalado em Londres, não atingira o
objetivo proposto. Fora na prática um organismo de fachada. A Alemanha e
a Itália desrespeitaram desde o início as suas
resoluções, com a cumplicidade farisáica da Inglaterra e
da França. Quando Hitler e Mussolini decidiram apoiar militarmente a
sublevação de Franco e Mola, a Inglaterra, potencia naval
hegemónica, poderia ter impedido o desembarque de tanques, aviões
e de milhares de soldados italianos nos portos da Andaluzia. Mas limitou-se a
protestos hipócritas. A França de Leon Blum fechou a fronteira
com a Catalunha, impedindo a entrega ao governo do presidente Manuel
Azaña de armas que este havia comprado e pago.
Isso enquanto os aviões alemães da Legião Condor,
pilotados por nazis da futura Luftwaffe, bombardeava a população
civil de cidades da Republica. A destruição de Guernica é
recordada como exemplo e símbolo da barbárie fascista.
Foi somente em Outubro que cargueiros vindos da URSS, em resposta à
ostensiva intervenção das potências do Eixo, descarregaram
em Cartagena os primeiros caças Policarpo I-16. Conhecidos em Madrid por
"Chatos" e "Moscas", entraram em combate imediatamente,
derrubando numerosos Heinkel, Junkers e Fiat para surpresa dos estados-maiores
de Londres e Paris.
A passividade britânica e francesa estimulou a escalada do fascismo.
Hitler interpretou-a corretamente. A política da "Não
intervenção" funcionou na prática como um
prólogo da capitulação de Munique.
A GESTA DAS BRIGADAS
Dezenas de livros em muitos países evocam a epopeia das Brigadas
Internacionais, desde teses académicas a memórias e reportagens.
Até romances. O cinema também lhe dedicou atenção.
Questões polémicas são transversais nesse conjunto
heterogéneo de trabalhos. As contradições principiam nas
estatísticas. Não existem registos oficiais sobre o número
de participantes nas sete Brigadas formadas em Albacete, a cidade onde
funcionou o estado-maior da organização, sob o comando do
francês André Marty. As avaliações oscilam entre 35
mil e 50 mil.
As Brigadas foram criadas em Paris, por iniciativa da III Internacional. Mas
é falso que todos os seus integrantes fossem comunistas.
Alguns deles tornaram-se, anos depois, personalidades de renome mundial: o
alemão Willy Brandt, o jugoslavo Josip Tito, os italianos Pietro Neni e
Luigi Longo, o albanês Enver Hosha, o mexicano David Alfaro Siqueiros.
Milhares de voluntários estrangeiros combateram pela Republica sem
pertencerem às Brigadas. Entre outros o francês André
Malraux e o inglês Georges Orwell, ambos escritores famosos.
Existe consenso sobre o comportamento heróico das Brigadas nas
múltiplas frentes em que se bateram. A grande maioria dessa gente
não tinha formação militar. Mas eles deixaram como
coletivo revolucionário memória de combatentes exemplares.
Dois generais das Brigadas, o húngaro Lukács e o soviético
Kleber, adquiriram prestígio internacional pela sua capacidade como
estrategos nas batalhas em que intervieram.
Quando as Brigadas se retiraram de Espanha no final de 1938, sob a
pressão internacional, centenas dos seus membros, não podendo
regressar aos seus países, foram tratados como apátridas e
perseguidos, alguns internados em campos de concentração.
Mas a calúnia, a falsificação da História e a
propaganda fascista não podiam apagar a gesta desses homens. Hoje, em 15
cidades de três continentes erguem-se monumentos a ela dedicados.
Por que se bateram eles em Espanha?
Os nomes de algumas Brigadas encerram de certa maneira a resposta à
pergunta: Garibaldi, Dimitrov, Thaelman, Louise Michel, Lincoln, Viallant
Couturier, Henri Barbusse, Comuna de Paris.
Com opções ideológicas diferenciadas, eles combateram
irmanados pelo sentimento de solidariedade com o povo espanhol agredido pelo
fascismo.
Recordar esses revolucionários maravilhosos é um dever numa
época em que o fascismo levanta a cabeça na Europa, nos EUA, na
América Latina. Nas planuras e montanhas da Espanha eles souberam lutar
e morrer em defesa da Humanidade, de valores e ideais que conferem significado
à vida.
Nestes dias em que, encastelada no Poder, uma direita cavernícola,
fascizante, tenta em Portugal destruir o que resta da Revolução
de Abril e impõe ao povo uma autentica ditadura do capital, concretizada
em leis e decretos que trazem à memoria a era de Salazar é
também um dever combater essa escória humana, derrotar a sua
politica criminosa.
Não será como na Espanha de 36 pelas armas que os portugueses
poderão hoje enfrentar o monstruoso sistema que os oprime e lança
na miséria. Mas, inevitavelmente, o povo trabalhador, à medida
que se aprofunde nas massas a consciência de que a ditadura de fachada
democrática da classe dominante o conduz à ruína e a uma
servidão de novo tipo, voltará, como em grandes momentos da nossa
Historia, a assumir-se como sujeito no processo de transformação
da vida. Esse dia, sem data previsível, chegará pela força
da lógica da Historia.
18/Fevereiro/2013/Serpa
1."Guerra y Revolución en España", obra elaborada por
uma Comissão presidida por Dolores Ibarruri, Editorial Progreso,
Moscovo, 1967
2. Manuel Tiago (pseudónimo de Álvaro Cunhal), "A Casa de
Eulália", Ed. Avante, Lisboa 1997.
O original encontra-se em
http://www.odiario.info/?p=2776
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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