Passos Coelho, personagem das contra-utopias

por Miguel Urbano Rodrigues

"Ao escutar-lhe o discurso de Rei Ubu, conclui que a oposição não deveria tomá-lo a sério nos debates.
Admito que seria mais útil confrontá-lo com a sua dimensão de personagem kafkiana."

. Acompanhei pela TV o debate na Assembleia da República convocado para (teoricamente) a informar da posição do governo na reunião do Conselho Europeu em Bruxelas.

O discurso de abertura de Passos Coelho não me surpreendeu. Inquietou-me.

Ele falou como boneco articulado, um robot estranhíssimo.

Esboçando um quadro idílico da reunião a que iria comparecer, esclareceu que nela, em atmosfera de fraternidade continental, se discutiria uma agenda cuja execução em Portugal abriria as portas ao emprego e ao desenvolvimento económico.

Esqueci que ele se dirigia ao Parlamento. A sua oratória transportou-me pelas estradas da imaginação a teatros franceses onde na juventude assistira a peças de Jarry e Ionesco. A fraseologia do Primeiro-ministro fez-me recordar diálogos incoerentes do Castelo e de América de Kafka. Passos desempenhava em São Bento, com solenidade, os papéis de personagens grotescas que se moviam num mundo absurdo, surreal.
Lembrei-me de que em Portugal o desemprego aumenta, que a economia se afunda, que a fome atinge já milhares de famílias. Tinha não a convicção mas a certeza de que o empobrecimento do país vai prosseguir.

Ao juntar palavras, com pompa discursiva, numa arenga desconexa, Passos fez-me também recordar discursos sem sentido de Cantinflas, mas sem o talento do actor mexicano.

Em inesperada associação de ideias, enquanto lhe respondiam, senti-me catapultado para a leitura de Nós, a contra-utopia de Evgueni Zamyatin. Nesse romance, o grande escritor soviético situa a vida num mundo imaginário, posterior à Nossa Era. O Estado Único, chefiado pelo Benfeitor, governa ali uma humanidade desfibrada, passiva, cujo quotidiano é regulamentado por tabelas aritméticas. Os nomes dos habitantes foram nele substituídos por letras e números e o amor foi banido como velharia de épocas de barbárie. As paredes das casas são transparentes para vigilância permanente, e as relações sexuais somente são permitidas em dias e horas fixas.

Desconhecido em Portugal, Nós, escrito em l920 (mas somente publicado pela primeira vez em 1929 em França) foi a fonte de inspiração das contra-utopias de Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo) e de George Orwell (1984).

Sou levado a crer que Passos se sentiria como peixe na água no país do Estado Único ideado por Zamyatin. Ali os números são muito mais importantes do que as pessoas. São eles que organizam o fluxo da vida; o povo, privado de direitos, é olhado como rebanho de ovelhas.

Conheci Passos em São Bento, quando ele, então líder da juventude de PSD, era um obscuro deputado que somente bolçava asneiras quando abria a boca no plenário. Hoje é o Primeiro-ministro.

Ao escutar-lhe o discurso de Rei Ubu, conclui que a oposição não deveria tomá-lo a sério nos debates. Admito que seria mais útil confrontá-lo com a sua dimensão de personagem kafkiana.

Como líder de um partido onde predominam os inimigos do povo, pôde chegar a Primeiro-ministro e arruinar e humilhar Portugal, reduzido ao status de semicolónia. Mas nem a solidariedade escandalosa do Presidente da Republica, nem os aplausos e votos das bancadas que avalizam a política tresloucada do seu governo conseguem apagar a evidência. Os portugueses sentem hoje aversão por ele e recebem-no com vaias onde quer que apareça.

Não tardará o dia em que o povo trabalhador, como sujeito da História, o varrerá do poder.

Vila Nova de Gaia, 23 de Outubro de 2013

O original encontra-se em http://www.odiario.info/?p=3067

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26/Out/13