por Miguel Urbano Rodrigues
Está em curso uma das mais ambiciosas operações de
propaganda que o actual governo já levou a cabo. Quanto mais desastrosa
é a situação do país, mais esta gente vem acenar
com uma recuperação que ninguém vê. António
Borges tem a desfaçatez de falar em "fim da austeridade". Essa
"austeridade", que é o nome propagandístico da
implacável política de saque que o governo leva a cabo, só
terá fim quando esta política e as troikas que a apoiam forem
efectivamente derrotadas.
Portugal oferece nestas semanas a estrangeiros recém-desembarcados a
imagem de um país onde o absurdo e o irracional marcam o quotidiano,
empurrando o povo para uma catástrofe social sem precedentes.
Os jornais e a televisão tornam públicas diariamente
notícias que comprovam o agravamento de uma crise medonha. O desemprego
aumenta a cada dia, atingindo já mais de um milhão de
trabalhadores; as falências de empresas sucedem-se em cadeia; escolas,
centros de saúde, serviços hospitalares, farmácias,
restaurantes fecham as portas; centenas de famílias são
desalojadas das casas onde residiam por não pagarem à banca as
prestações do contrato; o custo das propinas força
milhares de estudantes a abandonarem as universidades; a produção
industrial e a agrícola diminuem; a fome alastra nas cidades e aldeias
do País; mais de 40 mil portugueses emigraram no ano passado.
O Banco de Portugal informa que a quebra do PIB no ano corrente será
quase o dobro da prevista no Orçamento do Estado; as receitas fiscais
diminuem apesar do aumento dos impostos; as exportações
também caem.
O panorama é assustador. Mas o chefe do Governo, o seu ministro das
Finanças e demais membros do gabinete, proclamam monotonamente que a
estratégia da coligação bicéfala é um
êxito absoluto. E anunciam, eufóricos, que 2014 será um ano
magnífico.
A agressão semântica complementa a social e económica. A
política de saque imposta em nome da troika é qualificada de
"austeridade". A desvergonha é tamanha que os governantes,
ignorando gigantescos protestos populares e greves em série, elogiam os
trabalhadores pelo estoicismo com que suportam os
"sacrifícios", isto é, o roubo.
Enquanto se espera que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre a
inconstitucionalidade de medidas constantes do Orçamento de Estado, o
país tomou conhecimento de um relatório do FMI encomendado
pelo governo que considera insuficiente a "austeridade" em
curso e sugere como indispensável um pacote que destruiria o que resta
do Serviço Nacional de Saúde e da Segurança Social e
golpearia mortalmente a Educação. Propõe nomeadamente o
despedimento de 150 mil trabalhadores da Função Publica e de uns
50 mil professores.
Reagindo ao coro de indignação nacional, o primeiro-ministro
derramou elogios sobre esse documento, anunciador de uma
intensificação da ofensiva contra o povo.
O PSD promoveu uma conferência "aberta à sociedade
civil" para debater a "Reforma do Estado". Mas, a
comunicação social não foi autorizada a acompanhar os
debates.
Passos, Portas e ministros dirigem-se ao mundo e aos portugueses como
personagens de Jarry e Ionesco em palco de teatro de absurdo.
O governo tudo leva à prática à revelia dos
cidadãos e desconhecendo a existência de uma
oposição. Mas o vice-presidente do PSD, Sr. Jorge Moreira da
Silva, compareceu na SIC Noticias para afirmar que, devoto da democracia, o
Executivo tem elevado o nível da participação popular e
nada decide sem consulta ao povo.
A Comunicação Social, controlada hegemonicamente pelo grande
capital, demonstra incapacidade para cumprir a sua função. Nos
serviços noticiosos, políticos do sistema, membros do governo e
medidas por ele impostas são alvo de críticas, por vezes severas.
Mas as direções dos media permanecem vigilantes. Uma
contradição antagónica favorece o objetivo
prioritário: anestesiar a consciência social, impedir a ruptura
dos mecanismos da alienação.
Os formadores de opinião, em programas de grande audiência,
atacam o acessório, insurgem-se contra medidas, sugerem mudanças,
defendem uma remodelação do governo, criticam, ocasionalmente com
dureza, Passos, Portas e outros. Mas convergem em coro afinado na
conclusão de que a "austeridade" é necessária,
que o memorando com a troika, assinado por Sócrates e aprovado com
entusiasmo por Passos & Portas, deve ser respeitado. Coincidem na
opinião de que, afinal, a origem do mal está no estado Moloch, o
monstro que deve ser desmontado, reconstruído. A linguagem dos
comentadores não é a de Passos nem a do seu guru Gaspar. Eles criticam o governo com
hipocrisia mas reconhecem, dolorosamente, que
cortar milhares de milhões de euros nos gastos sociais é uma
exigência indeclinável da História, uma necessidade imposta
pela lógica da sobrevivência. Pouco falta para aderirem à
tese de Passos sobre a "Refundação do Estado".
Entre outros formadores de opinião que criticam o acessório mas
são solidários com o governo no fundamental, cito Marcelo Rebelo
de Sousa, Miguel Sousa Tavares, José Manuel Fernandes, José Gomes
Ferreira. Pacheco Pereira, o mais inteligente, é talvez o único
comentador que, na hoste dos politólogos da burguesia, demonstra lucidez
na crítica à escória humana que desgoverna Portugal.
Neste contexto com matizes de surrealismo, o discurso do primeiro-ministro e o
do seu guru Gaspar vão merecer, no futuro, assim o espero, estudo
acurado de psicólogos e psiquiatras.
Ambos, muito diferentes, merecem o qualificativo de avis rara.
Passos é uma inflorescência. Pouco dotado intelectualmente,
ignorante, mas desconhecedor da sua incompatibilidade com a cultura, tenaz,
mesmo firme na defesa do absurdo acredita, admito, nos benefícios
do seu projeto de destruição do país. As suas falas,
arrogantes, sincopadas, são cada vez mais um amontoado de palavras sem
nexo. Com frequência dá o dito por não dito. Recentemente
aconselhou os jovens a emigrarem. Na semana passada, em Paris, desmentiu-se,
afirmando que nunca sugeriu tal coisa.
O melífluo Gaspar, aritmeticamente sabedor, mas irracional na
aplicação das leis da economia, é um discípulo
atento do austríaco
Friedrich Hayek
e do americano
Milton Friedman
. Politicamente pouco inteligente, as suas arengas em defesa de decisões
catastróficas, a sua teimosa insistência em mascarar de rotundos
êxitos fracassos transparentes, a sua habilidade em exercer o comando do
governo nos bastidores trazem-me à memória personagens desamadas
do teatro de Molière e Shakespeare e do nosso Gil Vicente.
É compreensível que poucos estrangeiros consigam entender o
Portugal do ano 2013.
Um dia, sem data previsível no calendário, a farsa
dramática em palco findará, antes que, espero, desemboque em
tragédia.
Será o povo nas ruas, na fidelidade a grandes rupturas da nossa
história, serão as massas trabalhadoras a alavanca do fim do
pesadelo.
Vila Nova de Gaia, 24/Janeiro/2013
O original encontra-se em
http://www.odiario.info/?p=2751
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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