As ideias transformam-se em forças quando as massas as assumem
por Miguel Urbano Rodrigues
O povo é o agente das grandes rupturas históricas. Mas para que
ele se assuma como sujeito é imprescindível um nível de
consciência politica hoje insuficiente em Portugal. Não estamos no
limiar de uma situação pré-revolucionária; longe
disso. Os tempos são sombrios e no horizonte próximo
esboçam-se novas agressões ao povo por um governo de contornos
fascizantes. Mas, paralelamente, a resistência popular crescerá em
torrente. Uma certeza: as massas derrotarão nas ruas e nos locais de
trabalho o projeto da ditadura da burguesia.
Tenho escrito repetidamente que Portugal vive sob uma ditadura da burguesia de
fachada democrática.
A afirmação tem suscitado reparos de camaradas. Alegam que a
situação é muito diferente da existente na época do
fascismo, com a crise a evoluir num quadro institucional garantido por uma
constituição democrática.
Creio útil esclarecer algumas questões fundamentais.
A minha afirmação não estabelece um paralelo entre o
regime instaurado por Salazar e o atual.
A relação de forças é hoje muito diferente da
anterior ao 25 de Abril. Não existe a figura de um ditador e o governo
PSD/CDS não é homogéneo, sequer ideologicamente. Há
ministros que se distanciam da mentalidade dos homens de confiança de
Salazar e Caetano. Mesmo no triângulo Passos-Gaspar-Relvas as
contradições são inocultáveis.
Os três cultivam o discurso do "possível". Não
podem expressar-se como os ministros de Salazar.
O fascismo contou durante décadas com o apoio incondicional das
Forças Armadas. O Poder Judicial era então um dócil
instrumento do governo. A repressão nas suas múltiplas frentes
é hoje inviável à moda antiga.
O mal-estar nas Forças Armadas é transparente. Mas o governo
não pode recorrer ao Exercito para reprimir maciçamente os
protestos populares. O descontentamento dos militares exclui porem a
hipótese de um golpe de estado. O funcionamento das engrenagens da
União Europeia não é compatível com
cuartelazos.
O grande capital recorre hoje a outros meios para impor a sua
estratégia de dominação.
O controlo do sistema mediático substituiu a censura como meio eficaz de
proteção e difusão subliminar da ideologia do Poder.
Mas a impossibilidade de Passos & Portas se expressarem e governarem como
desejariam não altera o seu pensamento político. Sob uma
fraseologia pseudo-democrática é identificável uma
mentalidade aparentada com a de Salazar e sua gente.
O executivo repito não é homogéneo. Mas
alguns ministros e deputados da coligação escondem mal afinidades
ideológicas com a ordem social do fascismo. Dela se sentem mais
próximos do que do neoliberalismo ortodoxo de Friedrich Hayek.
O malogro inocultável da "estratégia de austeridade"
obrigou o governo a reconhecer finalmente que não atingiu os objetivos
fixados. A recessão será pelo menos o dobro da prevista no
Orçamento. Passos & Gaspar imploram agora que lhes seja concedido mais
um ano para a redução do défice do Orçamento. A
troika, em mais uma visita a Portugal, certamente lhes atenderá o apelo.
E, negando o que afirmavam semanas atrás, falam pela primeira vez da
necessidade de crescimento económico para combater o desemprego
galopante (já superior a 17%).
Os "produtores de opinião", empenhados em evitar a subida da
maré da indignação popular, adotaram também um
estilo diferente, acompanhando a mudança da oratória oficial.
Persistem na crítica superficial a medidas do governo, mas insistem que
não há alternativa para a política de submissão ao
diktat do capital. Admitem a urgência da renegociação dos
prazos impostos pelo pacto assinado com a troika, mas concluem que a
redução de 4000 milhões de euros nas despesas da
Saúde, da Educação e da Segurança Social é
para eles uma fatalidade inevitável.
O mais influente desses intelectuais orgânicos da burguesia, Marcelo
Rebelo de Sousa, descobriu subitamente uma estranha metamorfose no
primeiro-ministro. Com surpresa identifica nele um político dialogante,
aberto à crítica. Fala de um "novo" Passos.
Outro bombeiro do capital, José Gomes Ferreira, repete,
incansável, que não há alternativa para a ofensiva que
Gaspar prepara contra a Área Social.
Muitos intelectuais progressistas, sem disso tomarem consciência,
refletem na sua intervenção politica os efeitos do discurso de
uma burguesia cada vez mais arrogante no esforço para branquear o
fascismo, reescrevendo a História.
A campanha para apresentar a ditadura de Salazar como um regime
autoritário quase benigno colocou na moda a expressão
"Estado Novo". É de lamentar que alguns historiadores
marxistas temam já empregar a palavra fascismo.
Cabe relembrar o que Thomas Mann escreveu em 1951: "se nada mais me
levasse a respeitar a Revolução Russa, seria a sua
inabalável oposição ao fascismo".
AS VAIAS A RELVAS E SEUS PARES
A solidariedade com a direita inconfessada mas concreta de dirigentes
políticos do PS e da chusma de comentadores e analistas da TV ficou
transparente nas reações aos protestos populares dos
últimos dias.
Tudo principiou com as vaias a Miguel Relvas, quando o ministro de Estado foi
repetidamente vaiado no Norte e depois impedido de falar no ISCTE por
estudantes que cantaram ali o Grândola Vila Morena.
Passos Coelho na Assembleia da Republica e os ministros da Economia, da Defesa,
da Administração Publica, da Agricultura e alguns
secretários de Estado também escutaram a canção que
assinalou o início da Revolução de Abril. Esses protestos
populares assumiram tal frequência e amplitude que os membros do governo
alteram os horários e saem pelas traseiras dos edifícios
públicos onde são recebidos com cartazes de repúdio pela
política da coligação reacionária. Mais de uma vez
a PSP e a GNR identificaram os manifestantes como se fosse crime entoar nas
ruas Grândola Vila Morena.
Por si só o argumento de que vaiar Passos e sua gente configura atentado
à liberdade de expressão é definidor da
opção politica das personalidades que que criticam essas
manifestações.
A cumplicidade com o Poder de influentes comentadores das mesas redondas
é tão transparente que alguns, em gesto de humor negro, afirmam
que a imagem pública de Relvas melhorou desde o boicote e as vaias do
ISCTE.
AS MASSAS COMO SUJEITO NA HISTÓRIA
É chocante que António José Seguro, António Costa,
Vitorino e outros destacados dirigentes socialistas tenham condenado esses
episódios recorrendo a uma linguagem acaciana.
Tal atitude é esclarecedora do que se pode esperar do PS no
desenvolvimento da crise, agarrado como está ao memorando da troika como
lapa à rocha.
É muito significativo que na semana passada Francisco Assis tenha
defendido para a próxima legislatura um governo PS-PSD e elogiado Paulo
Portas.
Coloco a questão porque o regresso do PS ao Governo me aparece como
quase inevitabilidade após as próximas eleições
legislativas, provavelmente antecipadas.
Na lógica do funcionamento do sistema, vai ocorrer uma
deslocação de votos do PSD e do CDS para o PS para punir a equipa
Passos-Portas.
Tudo indica que vamos assistir a uma dramática repetição
das últimas farsas eleitorais.
Teoricamente, seria possível através do voto eleger uma
Assembleia empenhada em levar adiante uma política progressista. Mas
é uma ilusão romântica acreditar que isso vai acontecer. O
PS e o PSD, somados, obterão mais uma vez uma ampla maioria. As
engrenagens do sistema não conduzem a outra saída.
Porquê se a maré da indignação sobe torrencialmente,
se a grande maioria da população repudia hoje a política
do governo que levou o país à ruina e milhões de
famílias à miséria?
Para se compreender a contradição é necessário
tomar plena consciência de que o País está submetido
insisto a uma ditadura de classe encoberta por uma enganadora fachada
democrática.
A vigência de uma Constituição que garante liberdades e
direitos fundamentais - muitos deles desrespeitados - não impede que a
classe dominante exerça o poder discricionariamente, impedindo na
prática excepto na área das autarquias a
participação popular. Esta está reduzida ao voto, mas as
escolhas do eleitorado são condicionadas por mecanismos controlados pelo
capital. Os jornais e os audiovisuais encontram-se hegemonicamente nas suas
mãos. A tão falada liberdade de expressão esconde a
evidência: a liberdade dos proprietários dos media.
Outro factor impeditivo de uma vitória eleitoral de forças
progressistas é aquilo que Marx, com clareza meridiana, definiu como
"alienação".
A grande maioria dos cidadãos eleitores, incluindo uma parcela
ponderável dos trabalhadores, não transformou ainda a
consciência de classe em consciência política interveniente.
Sabe o que não quer, mas sente enorme dificuldade em atuar em defesa dos
seus interesses. O avolumar dos grandes protestos "espontâneos"
traduz bem essa realidade. Eles são positivos, mas insuficientes para
enfrentar o poder da classe dominante.
As condições objetivas para a passagem dos protestos de uma
juventude indignada à luta organizada contra o Poder são muito
favoráveis.
A contribuição para esse objetivo da CGTP nos últimos
meses, desde que Arménio Carlos assumiu a Coordenação da
central sindical, tem sido muito importante.
Creio que a releitura do "Que fazer" de Lenin é muito
útil nestas vésperas de grandes lutas sociais. Foi a sua grande
contribuição para a construção do partido
revolucionário de novo tipo. Mas o que lhe confere maior atualidade
é a reflexão criadora do papel da vanguarda como única
força capaz de mobilizar as massas organizadamente. Com fins bem
definidos na luta contra o Poder que as oprime.
Não pretendo obviamente estabelecer qualquer analogia entre a
situação existente na Rússia imperial antes da
Revolução de 1905 e a que vivemos hoje em Portugal. Mas os
ensinamentos de Lenin sobre o papel da vanguarda permanecem válidos.
Sem participação intensa do povo não há democracia
autêntica (palavra de que se usa e abusa em Portugal onde ela é
uma fachada).
O povo é o agente das grandes rupturas históricas. Mas para que
ele se assuma como sujeito é imprescindível um nível de
consciência politica hoje insuficiente em Portugal. Não estamos no
limiar de uma situação pré-revolucionária; longe
disso. Mas é cada vez ampla a convicção de que as coisas
não podem continuar como estão. Eric Hobsbawm enuncia uma
evidência ao afirmar que "as ideias não se transformam em
forças até se apoderarem das massas"
[1]
. E isso é muito difícil, lento. Uma tarefa da vanguarda (no caso
português o PCP) que exige muita paciência, quase magia, como
lembra o historiador britânico.
Os tempos são sombrios e no horizonte próximo esboçam-se
novas agressões ao povo por um governo de contornos fascizantes.
Mas paralelamente a resistência popular crescerá em torrente. Uma
certeza: as massas derrotarão nas ruas e nos locais de trabalho o
projeto da ditadura da burguesia.
Serpa e Vila Nova de Gaia, 23/Fevereiro/2013
[1]
Eric Hobsbawm, "Como Mudar o Mundo - Marx e o Marxismo, 1840-2011",
pág. 182, Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2011
O original encontra-se em
http://www.odiario.info/?p=2784
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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