O agravamento da crise mundial
por Miguel Urbano Rodrigues
[*]
A crise mundial agravou-se desde que nos reunimos neste Seminário no ano
passado.
A situação existente é muito contraditória.
Enquanto o imperialismo insiste numa estratégia de
dominação planetária assinalada por guerras genocidas e
saque dos recursos naturais de nações do Terceiro Mundo, a luta
dos povos contra a globalização neoliberal amplia-se
paralelamente, sobretudo na América Latina.
Em Janeiro pp. os Fóruns Sociais de Bamako e de Caracas tornaram
transparente a repulsa da humanidade pelo monstruoso sistema de poder que a
ameaça.
Na capital da Venezuela, Hugo Chavez pronunciou, à margem do
Fórum, um discurso patético no qual radicalizou o combate ao
imperialismo ao lançar o brado "Socialismo ou morte!".
Afirmando que o capitalismo não tem reforma possível, o dirigente
venezuelano definiu a estratégia agressiva dos EUA como monstruosa e
cruel, configurando uma ameaça à humanidade.
O relatório elaborado pela CIA sobre a situação
previsível do mundo no ano 2020 confirma que Washington
persistirá na sua estratégia de dominação
planetária. Segundo a Administração Bush, a
globalização neoliberal, definida como "projecto
Davos", é um êxito, o leadership exclusivo dos EUA não
será posto em causa e, no seu combate ao chamado terrorismo, as
"guerras preventivas" atingirão os objectivos fixados.
Esse panorama é desmentido pela realidade. A análise da crise
estrutural do capitalismo conduz a uma conclusão muito diferente.
O sistema, na sua fórmula liberal globalizada, como afirma Samir Amin,
"não é viável porque o caos que gera, longe de ser
"controlável" pelos meios imaginados pelas classes dominantes,
somente pode agravar-se rapidamente e em proporções
dramáticas. O fracasso militar e político no Iraque, a
rejeição crescente ao "projecto europeu" pelos povos a
que se dirige, as explosões de violência (como as que agitaram em
Novembro os subúrbios das cidades francesas) e outros fenómenos
agora diários são disso prova. As coisas são assim, mas
não tiro daí a conclusão de que uma saída
aceitável 'será uma certeza'. O mundo de amanhã
mesmo no horizonte próximo de 2020 provavelmente será
diferente do actual, mas não necessariamente melhor. Poderá ser
mesmo pior".
[1]
Samir Amin não é um pessimista. É um intelectual
revolucionário consciente da complexidade de uma crise cujo desfecho,
positivo ou não, dependerá em ultima análise da luta dos
povos contra a engrenagem que os tritura.
São muito favoráveis nesta época assustadora as
condições objectivas para a dinamização desse
combate e a transformação da consciência social num actor
social colectivo capaz de gerar um novo internacionalismo.
O imperialismo, apesar do seu enorme poder, acumula derrotas.
No Iraque e no Afeganistão está atolado em guerras perdidas. Na
Palestina a vitória eleitoral do Hamas anuncia dificuldades crescentes
para o grande aliado de Washington na Região.
Não é de excluir que o desespero empurre a extrema-direita
estadunidense para uma agressão ao Irão (a perspectiva de uma
bolsa do petróleo em euros alarma Wall Street) que poderia assumir a
forma de um bombardeamento às instalações nucleares
daquele pais. Mas uma acção criminosa desse tipo não teria
significado militar e intensificaria os sentimentos contra os anglo-americanos no mundo
islâmico.
Um relatório sobre o exército, encomendado pelo Pentágono
a Andrew Krepinevitch, um oficial na reserva, acaba de desencadear uma
polémica em que intervieram o secretário da US Army, Francis
Harvey e o próprio Donald Rumsfeld. O autor desse trabalho afirma que o
exército esta á beira da ruptura em consequência do seu
fracasso no Iraque. O recrutamento caiu para um nível muito baixo e a
carência de efectivos impediu a passagem a reservistas de soldados que,
contra a sua vontade, já cumpriram duas e três missões no
Médio Oriente. A desmoralização das tropas de combate
nessa área é considerada alarmante.
Embora lentamente, a oposição interna à guerra aumenta e
os movimentos sociais que exigem a retirada do Iraque ganham a cada semana
novas adesões.
Paralelamente, a dependência dos EUA como nação
parasitária que consome muito mais do que produz aprofunda-se. Os
gigantescos défices comercial e do orçamento não podem ser
mantidos indefinidamente. O dólar, doente, vacila como moeda mundial.
Neste contexto a amplitude da contestação na América
Latina às políticas neoliberais impostas por Washington adquiriu
uma amplitude que faz do Continente uma frente de combate de enorme
importância.
Essa realidade implica grandes responsabilidades para as forças
empenhadas na luta contra o imperialismo.
Nos Fóruns Sociais de Bamako e de Caracas foi transparente o aumento da
combatividade dos participantes. Mas essas iniciativas, muito positivas,
reflectem as contradições e limitações dos
movimentos sociais. Espaços de debate imprescindíveis mobilizam
contra o neoliberalismo e o seu projecto democratas com
concepções muito diferentes do mundo e da vida. Duas grandes
correntes se confrontam, porem, quando de trata de passar da palavra à
acção. Para uns, o capitalismo é reformável e pode
ser humanizado. Para outros terá de desaparecer da Terra porque
ameaça a própria sobrevivência da humanidade.
A América Latina é presentemente um laboratório social
onde se confrontam essas concepções e as estratégias que
delas resultam na passagem da teoria à acção.
Na Venezuela no Brasil, na Argentina, no Uruguai, no Equador, na
Bolívia foi possível nos últimos anos eleger
personalidades que se propunham alterar o sistema de dominação
vigente, ou seja o neoliberalismo imposto pelo chamado Consenso de Washington.
A prática demonstrou porém que não basta eleger com forte
apoio popular presidentes com programas moderadamente progressistas para que a
sociedade se transforme. No Equador, Lúcio Gutierrez traiu
imediatamente. No Brasil na Argentina, no Uruguai os governos de Lula, Kirchner
e Tabaré desviaram-se dos compromissos assumidos, multiplicando
concessões ao sistema que no fundamental satisfazem Washington. Emergem
como reformadores do capitalismo. Mas todos eles governam, apoiados por
sectores da população que confiam ainda no cumprimento em futuro
próximo das promessas feitas.
O caso da Bolívia é ainda mais complexo. A vitória de Evo
Morales, esmagadora, produziu um efeito de tsunami político. O facto de
dirigentes revolucionários como Fidel Castro e Hugo Chavez manifestarem
a sua confiança no novo presidente contribuiu para a auréola de
prestígio que passou a envolvê-lo. Pessoalmente julgo útil
não confundir a grande vitória do povo boliviano com a pessoa de
Evo Morales. Nada até agora na sua trajectória justifica a
tendência para identificar nele um revolucionário providencial.
Qualquer paralelo com Fidel ou Chavez é absurdo. Admito que o rumo do
processo boliviano dependerá sobretudo da capacidade das massas para se
afirmarem como sujeito, distanciando-se, porem de radicalismos infantis,
tradicionais na Bolívia. O discurso de posse de Evo Morales,
decepcionante, a composição do seu gabinete e algumas das
medidas tomadas nas primeiras semanas de governo contribuíram para
confirmar essa convicção.
Creio ser útil uma referência especial à Venezuela. A
revolução bolivariana mobiliza hoje solidariedades em todo o
mundo. A fulgurante ascensão do líder venezuelano semeou a
confusão em Washington, precisamente porque o fenómeno Chavez
transcende o quadro regional. Pela coragem e imaginação postas
na defesa de grandes causas da humanidade conquistou o respeito e
admiração dos povos da América Latina, projectando-se como
revolucionário de prestigio mundial. Presidente de um país rico
em petróleo mas cujo povo vegetava na miséria, surge como um
revolucionário puro, por vezes ingénuo e até imprudente,
cuja autenticidade surpreende e emociona. O seu desafio surpreendeu porque
propõe a transformação radical da sociedade no respeito
estrito das instituições.
Dificilmente se encontra precedente para um processo de mudança social
como o venezuelano, desafiador da lógica aparente da história.
Lenine dizia que não há revolução vitoriosa sem um
partido revolucionário preparado para a conduzir. E na longa
duração da história os factos confirmam a sua
afirmação. Entretanto, na Venezuela desenvolve-se há sete
anos um processo que desafia a tradição. Começou com a
eleição de um militar cristão e a derrota esmagadora dos
partidos do sistema e sobreviveu a um golpe de estado apoiado pelo imperialismo
e a uma série de conspirações posteriores.
A excepcionalidade venezuelana está na ausência de um grande
partido de massas revolucionário. O líder desempenhou um papel
decisivo na concepção e concretização das medidas
revolucionárias e na sua defesa.
Nessa dependência do dirigente carismático identificamos, contudo,
o lado frágil da revolução bolivariana. Como mobilizador
das massas oprimidas, Chavez substitui o partido revolucionário. Nem o
Movimento V Republica, nem os Círculos Bolivarianos, nem as chamadas
Missões puderam ate agora cumprir plenamente a função que
caberia ao partido revolucionário.
Na América Latina, onde os povos se rebelam contra o neoliberalismo,
este discípulo de Bolívar, desfraldando o estandarte da unidade
das nações, conquistou a confiança das massas ao
identificar-se com as suas aspirações e angústias.
Hostilizado desde o início pelo imperialismo, tem demonstrado pela
palavra e pela acção como antes somente Fidel o fez
que é possível, apoiado pelo povo, seguir com dignidade o
caminho da independência e do progresso, resistindo às
ameaças e conspirações do gigante norte-americano.
O confronto explosivo com o sistema imperial aparece porém no horizonte
como inevitável. A derrota infligida em Mar del Plata aos EUA, fechando
a porta à ALCA, a adesão da Venezuela ao Mercosul, a Telesur, os
projectos da ALBA e da Petrosur assinalam uma mudança na
relação de forças no Hemisfério intolerável
para Washington.
Reforçar a solidariedade com a Revolução Cubana e o
combate das FARC na Colômbia, continua a ser exigência da luta na
América Latina.
A resistência da Ilha heróica à guerra não declarada
que lhe move o imperialismo é uma epopeia da humanidade. Na
Colômbia, governada por um político fascizante, a guerrilha de
Manuel Marulanda é hoje um exército popular que se bate em 60
Frentes contra o mais poderoso exército da América Latina,
infligindo-lhe severas derrotas.
Um sentimento anti-imperialista muito forte torna hoje possível na
América Latina aquilo que na Europa Ocidental não o é.
No Velho Mundo a social-democracia aparece, ostensiva ou tacitamente, aliada a
forças conservadoras. Aderiu na prática ao neoliberalismo. O que
pretende é apenas administrar o capitalismo melhor do que a direita
tradicional.
A ausência de um projecto próprio europeu, a crise estrutural do
capitalismo e as contradições resultantes da aliança com
os EUA favorecem entretanto hoje o aumento de tensões sociais em toda a
área da União Europeia.
Mas não tenhamos ilusões. Na luta pelo desmascaramento de
ditaduras da burguesia de fachada democrática, ou seja os regimes
instalados na Europa antes do alargamento da UE para 25 países, as
forças progressistas devem estar conscientes de que não se abre
neste momento a qualquer partido marxista a possibilidade de chegar ao poder
através de eleições, a menos que renuncie aos
princípios e se submeta ao sistema mediante alianças
capituladoras, como aconteceu na França através da esquerda
plural.
A fidelidade ao objectivo exige, sublinho, a intervenção
parlamentar em defesa das reivindicações dos trabalhadores e a
critica permanente das políticas dos partidos no poder. Mas exige
também a denúncia firme da engrenagem do sistema e a recusa de
ilusões reformistas. Ou seja a rejeição de uma mentalidade
eleiçoeira. O capitalismo não é humanizável, tem
de desaparecer.
O desenvolvimento da história desmentiu nos últimos anos a tese
pessimista segundo a qual a era das revoluções tinha terminado
porque o neoliberalismo globalizado seria a ideologia definitiva.
Desde Seattle, e sobretudo após a agressão dos EUA ao Iraque,
gigantescas manifestações de protesto confirmaram a
rejeição pelos povos do projecto imperial de
dominação planetária.
István Meszaros, o eminente marxista húngaro, recorda-nos que a
chamada "crise do marxismo", após a implosão da URSS
levou muitos intelectuais progressistas a adoptarem uma posição
defensiva precisamente numa época em que deveriam empenhar-se numa
ofensiva socialista.
[2]
Lenine acreditava que a Revolução de Outubro na Rússia
desencadeasse "turbulentas revoltas políticas e económicas
na Europa e noutros continentes.
O desfecho da I Guerra Mundial não confirmou a previsão.
Após o fracasso da revolução na Alemanha e a derrota do
Exército Vermelho às portas de Varsóvia, o dirigente
bolchevique concluiu que era imprescindível defender a
revolução russa custasse o que custasse. A impossibilidade em
prazo previsível da revolução mundial exigiu uma
dramática revisão estratégica. O refluxo, depois de
Versailles, do movimento revolucionário na Europa tornou
inevitável a opção por uma estratégia defensiva de
longa duração.
O mundo do capital sobreviveu também ao temporal do crash da Bolsa York.
A crise não era estrutural. A própria opção pelo
fascismo na Alemanha de Weimar inseriu-se numa crise cíclica do
capitalismo.
No contexto defensivo, os órgãos de combate socialistas que
actuavam no âmbito de instituições de fachada
democrática podiam ganhar lutas secundárias, através de
reformas impostas pela luta de massas, mas não vencer a guerra contra o
capital. A correlação de forças não o permitia.
Mészaros recorda que os dois pilares da classe trabalhadora no Ocidente,
os partidos progressistas e os sindicatos, se encontravam na prática
inseparavelmente ligados a um terceiro membro da montagem institucional geral,
o Parlamento, "mediante o qual se fecha o círculo sociedade
civil-estado
politico e se converte nesse 'círculo mágico' paralisante ao qual
não se pode escapar".
Não cabe aqui lembrar as diferenças, profundas, que separavam a
concepção que Lenine tinha da defesa do socialismo num só
estado, a Rússia revolucionaria defesa indissoluvelmente ligada
ao reforço da democracia socialista e à luta permanente contra as
tendências autoritárias e as teses de Staline sobre o tema.
O que me parece útil sublinhar neste Seminário Internacional
é a necessidade, num contexto de crise global da
civilização, de uma passagem da defensiva à ofensiva pelas
forças progressistas.
A maré da contestação ao sistema voltou a subir no ano
passado com o agravamento da crise do capitalismo globalizado.
Como termómetros de uma maior disponibilidade dos povos para as lutas
organizadas, muito difíceis, que se esboçam no horizonte, os
Fóruns Sociais Mundiais de Bamako e de Caracas foram esclarecedores.
Participei no primeiro, que teve por sede o Mali.
Daquele pobre e esquecido país africano saiu um
Apelo
que correu pelo mundo.
Lembramos que as experiências de cinco anos de convergências
mundiais das resistências ao neoliberalismo permitiram criar uma nova
consciência colectiva.
O
Apelo de Bamako
pretende ser "uma contribuição para a emergência de
um novo sujeito popular histórico".
Para que isso seja possível, isto é a passagem da
consciência social ao actor social activo, popular, plural e multipolar,
será preciso definir alternativas capazes de mobilizar em escala mundial
grandes forças sociais e políticas.
O capitalismo não cairá sem luta.
Quais os objectivos desse Apelo:
Mobilizar para
1- Construir o internacionalismo dos povos do Sul e do Norte face às
devastações engendradas pela ditadura dos mercados financeiros e
pela implantação globalizada e descontrolada das transnacionais;
2- Construir a solidariedade dos povos da Ásia, da África, da
Europa e das Américas face aos desafios do desenvolvimento no
século XXI;
3- Construir um consenso político-económico e cultural
alternativo á globalização neoliberal e militarizada e ao
hegemonismo dos Estados Unidos e seus aliados.
Metas essas muito belas e difíceis de atingir, porque construir um
mundo com alicerces na solidariedade dos seres humanos e dos povos é
tarefa somente realizável após um período
revolucionário, de contornos imprevisíveis, de muito sofrimento.
A afirmação de Marx de que a violência é a parteira
da história permanece válida. Perderíamos tempo tentando
imaginar que formas ela assumirá no confronto final com o capitalismo.
Mas a convicção de que outro mundo é possível e que
teremos de lutar muito por ele implica a necessidade de nos prepararmos para a
viragem iminente.
Companheiros, sendo o socialismo a única alternativa à
barbárie capitalista, a passagem da defensiva à ofensiva
é, repito, uma exigência premente. Somente a ofensiva nos pode
conduzir a uma vitória que garanta a continuação da
humanidade.
[1]
"Au dela de la mondialisation libérale: un monde meilleur
où pire", comunicação apresentada por Samir Amin no
Forum Social Mundial, Bamako, Janeiro de 2006.
(2) István Meszaros, "Para Alem do Capital",
capítulo XVIII
, Editorial Boitempo, São Paulo, Brasil, 2002.
[*]
Intervenção no X Seminário "Los partidos y una
nueva sociedad", México, Março/2006.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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