Ilusão cruel
O suspiro de alívio resultante do cessar-fogo em Gaza proclamado
através do mundo pelo irmão muçulmano que preside ao
Egipto, com o ámen da senhora Clinton e o habitual encolher de ombros do
primeiro ministro de Israel, é uma ilusão com pés de
mentira e cenário de manobras estratégicas cada vez mais
complexas e, por via disso, de consequências seguramente mais
imprevisíveis.
Uma ilusão que é cruel para os que voltarão a ser as
principais vítimas quando ela tragicamente se desfizer os
habitantes de Gaza e os palestinianos em geral.
Calaram-se temporariamente as armas mas o que aconteceu para além da
pompa e circunstância do anúncio? Israel prometeu que não
bombardeia Gaza, que não comete mais execuções extra
judiciais de dirigentes do Hamas e que irá ampliar a disponibilidade de
movimentos dos cidadãos do território; o Hamas compromete-se a
não lançar mísseis contra o território israelita.
Ambos os lados garantem que continuam com os dedos no gatilho, o
primeiro-ministro israelita ameaça que se houver quebra da trégua
a resposta será mais violenta ainda, mas o problema de fundo subsiste: o
criminoso e asfixiante bloqueio à Faixa de Gaza, que até o
conservadoríssimo primeiro-ministro britânico Cameron qualifica
como prisão a céu aberto.
O que aconteceu como reflexo de mais este episódio de uma guerra sem
termo, além da liquidação de 185 habitantes de Gaza,
famílias inteiras, algumas dezenas de crianças e da
destruição de mais edifícios num território em
escombros?
Aconteceu que o novo poder da Irmandade Muçulmana no Egipto se tornou
figura de pleno direito da chamada comunidade internacional,
respeitável mediador como foi durante décadas o agora proscrito
Mubarak, e que para tal recebeu o diploma do regime norte-americano, que
é quem tem, como se sabe, a última palavra nestas coisas.
Bem
talvez essa palavra já seja a penúltima porque Benjamin
Netanyahu continua a dispor de todas as facilidades para dizer sobretudo
fazer mais qualquer coisa.
A passagem do poder islamita no Egipto neste teste interessava a muita gente.
Principalmente à administração norte-americana, que
mantém na prática o status quo em relação ao
segundo maior aliado na região e logo numa altura em que o ramo
sírio da Irmandade Muçulmana recebeu, ainda que de maneira
disfarçada, a chefia da coligação anti-Assad fabricada no
Qatar para chegar a Damasco. Interessa, e muito, a Israel, que vê
sufragados os acordos de paz de Camp David pelos islamitas
egípcios e fica com o inimigo Hamas sujeito a influências de dois
islamismos antagónicos Egipto e Irão e de costas
cada vez mais voltadas para o governo palestiniano de Ramallah.
Com este episódio em Gaza aconteceu também que a iniciativa do
presidente palestiniano Mahmud Abbas de pedir de novo o reconhecimento da
Palestina na ONU ficou soterrada nas ruínas geradas pelos
acontecimentos. Tal iniciativa passará a ser lida à luz de uma
torrente de novos e velhos dados que servirão de alibi determinante para
os que não querem aceitar essa declaração e que
são também os que decidem em derradeira instância.
Quando o cessar-fogo for quebrado, o que acontecerá inevitavelmente
porque a continuação do bloqueio o garante, o megafone
mediático mundial encarregar-se-á de ditar quem foi, ilibando o
mediador egípcio e permitindo a Benjamin Netanyahu, se disso necessitar
para fins eleitorais, o recomeço dos bombardeamentos, das
execuções e também a invasão terrestre, que
continua a estar operacional.
Para a comunidade internacional, de consciência tranquila
devido aos denodados esforços diplomáticos feitos, a
segurança, a dignidade e a liberdade dos cidadãos de Gaza, o
direito legítimo dos palestinianos a terem o seu Estado podem e devem
continuar adiados, como sempre. Nada mais natural porque eles são os
culpados de tudo o que lhes acontece, não é isso que dita a
inquestionável verdade oficial?
22/Novembro/2012
[*]
Jornalista
O original encontra-se em
http://www.odiario.info/?p=2685
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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