A vitória eleitoral do Hamas:
um voto pela clareza
A vitória do Hamas nas eleições legislativas da Autoridade
Palestina levou toda a gente a perguntar: "e agora?" A resposta, e
se o resultado deveria ser encarado como algo bom ou mau, depende muito de quem
faz a pergunta.
Embora o êxito do Hamas tenha sido fortemente perseguido, a escala da
vitória foi geralmente considerada como um "choque".
Vários factores explicam a ascensão dramática do Hamas,
incluindo a desilusão e o desgosto com a corrupção, o
cinismo e a falta de estratégia da facção do Fatah que
dominou o movimento palestino durante décadas e que se considerava, de
forma arrogante, como o líder natural e indisputável.
O resultado desta eleição não é inteiramente
surpreendente, entretanto, e fora prenunciado pelos acontecimentos recentes.
Tomemos por exemplo a cidade de Qalqilya, no norte do West Bank. Cercado por
pelos colonatos israelenses e agora completamente rodeada por uma muralha de
betão, os 50 mil residentes da cidade são prisioneiros num gueto
gigante controlado pelos israelenses. Durante anos o concelho da cidade de
Qalgilya foi controlado pelo Fatah, mas após a conclusão da
muralha os eleitores, nas eleições municipais dos últimos
anos, passaram a eleger só vereadores do Hamas. O efeito Qalqilya agora
generalizou-se por todos os territórios ocupados, com o Hamas a ganhar
confirmadamente todas os cargos electivos. Assim, o êxito do Hamas
é uma manifestação da determinação do
palestinos de resistirem aos esforços de Israel para
forçá-los à rendição, assim como uma
rejeição do Fatah. Isto reduz o conflito aos seus elementos
fundamentais: há ocupação, e há resistência.
Para os palestinos sob ocupação, ainda não está
claro o que significará a vitória do Hamas. Agora é comum
falar-se de um "governo" palestino a ser formado fora dos resultados
eleitorais, como se a Palestina já fosse um estado soberano e
independente. Mas se o primeiro dever de um governo é proteger as
vidas, a liberdade e a propriedade do seu povo, então a Autoridade
Palestina nunca mereceu ser chamada um governo. Desde o seu início ele
não foi capaz de proteger os palestinos dos ataques diários e
letais do exército israelense no coração das suas cidades
e campos de refugiados, ou de impedir um único dunum (1000 m
2
) de terra ser agarrado para colonatos, nem de salvar um único arbusto
das mais de um milhão de árvores arrancadas por Israel nos
últimos dez anos. Ao invés disso, na concepção de
Israel, a Autoridade Palestina era suposta esmagar a resistência
palestina a fim de tornar os territórios ocupados seguros para a
continuada colonização israelense. O Hamas certamente não
permitirá que isto continue, mas se será capaz de transformar a
Autoridade num braço da luta contra Israel não é de modo
algum certo. O Hamas, que observou uma trégua unilateral com Israel
durante um ano, assinalou que quer continuá-la se houver
"reciprocidade" de Israel. O movimento evidentemente acredita que
pode fazer uma tal oferta a partir de uma posição de força
e tacticamente vantajoso para si deixar incerteza sobre quando e como
retomará a resistência armada em plena escala.
Elementos dos serviços de segurança da Autoridade Palestina
dirigida por personalidades do Fatah podem estar relutantes em colocar-se sob o
controle de uma autoridade dirigida pelo Hamas, o que poderia conduzir ao
colapso do que resta da estrutura da Autoridade, ou mesmo da sua
fragmentação em milícias pessoais. Israel e os Estados
Unidos, que se recusaram a aceitar o resultado da eleição, podem
ver algum interesse em encorajar um tal conflito interno. Israel provavelmente
vai usar a vitória do Hamas como um novo pretexto para endurecer a
repressão e acelerar sua imposição unilateral de muralhas
e colonatos no West Bank destinados a anexar o máximo de terra com o
mínimo de palestinos. Tais desenvolvimentos aumentam os riscos de uma
escalada dramática da violência israelense-palestina.
Quanto à maioria dos palestinos, que vivem como refugiados e exilados na
diáspora, eles têm sido progressivamente excluídos e
marginalizados dos esforços para resolver o conflito. Enquanto os EUA e
os seus aliados, com assistência da ONU, foram a extremos
extraordinários a fim de permitir aos iraquianos "fora do
país" participarem nas eleições do país, estas
mesmas potências não mostraram qualquer interesse em dar uma voz
aos refugiados palestinos. O Fatah, que muitos refugiados palestinos suspeitam
que liquidaria os seus direitos numa paz tratada com Israel, obviamente
não tem incentivo para exigir tal participação.
Está para ser visto se o Hamas, nascido em Gaza onde 90 por cento da
população é refugiada, será capaz de articular uma
agenda que atenda às preocupações da diáspora.
Para a "comunidade internacional" principalmente o
"Quarteto" constituído pelos Estados Unidos, União
Europeia, Rússia e o secretário-geral da ONU Kofi Annan, o
resultado da eleição é muito embaraçoso. Eles, e a
camarilha de bem financiadas ONGs e
think tanks
que gera a maior parte dos logros intelectuais, construíram a sua
abordagem com base na noção de que a "reforma"
palestina ao invés de ser um fim para a ocupação
israelense é um meio para a resolução do conflito.
Enquanto nominalmente comprometem-se numa solução dois-estados,
estas potências arrastaram a Autoridade Palestina liderada pelo Fatah a
um jogo infindável em que os palestinos têm de saltar
através de obstáculos para provar o seu merecimento aos direitos
básicos, ao passo que a mesma pressão não tem sido
aplicada a Israel para findar o confisco de terras e a expansão dos
colonatos. Esta indústria do processo de paz escolheu abençoar a
retirada táctica de Israel de 8000 colonos de Gaza no verão
passado, enquanto ignorava o número muito maior de colonos que Israel
continuava a plantar ao longo de todo o West Bank, tornando efectivamente
inalcançável uma solução dois-estados.
A finalidade principal deste jogo não é trazer uma paz duradoura
e justa e sim simplesmente isentar os jogadores da acusação de
que nada estão a fazer para resolver um conflito que permanece um foco
permanente de preocupação regional e mundial. Um esforço
verdadeiro de paz exige confrontar Israel e torná-lo responsável,
algo que nenhum dos membros do Quarteto tem a vontade política de fazer.
Não há dúvida de que o Fatah foi inteiramente
cúmplice neste jogo, pelo que tornou-se um prisioneiro e um parceiro
indispensável. Por que outra razão teriam os Estados Unidos
tentado tão desesperadamente sustentar o Fatah nos últimos meses,
com o dispêndio de milhões de dólares em projectos
destinados a comprar votos, e por que outra razão teria a UE
ameaçado cortar a ajuda se os palestinos votassem pelo Hamas? A maior
parte dos palestinos podia ver claramente que após anos de
negociações e milhares de milhões de dólares de
ajuda externa estavam mais pobres e menos livres do que nunca pois mais da sua
terra fora apresada. Não é de admirar que esta espécie de
suborno e chantagem não tivessem poder sobre eles e que provavelmente
tenha tido o efeito oposto, aumentando o apoio ao Hamas.
A vitória do Hamas puxa o tapete sob o projecto de tentar desviar a
culpa pelo conflito da colonização israelenses para as patologias
internas palestinas. Contudo, a indústria do processo de paz não
desistirá facilmente, e agora pressionará o Hamas a actuar
"responsavelmente" e a "moderar" as suas
posições o que significa, com efeito, abandonar todas as
formas de resistência e assumir o dócil e cúmplice papel
desempenhado até agora pelo Fatah.
O pedido instantâneo dos EUA para que o Hamas "reconheça
Israel" é como reverter o calendário 25 anos atrás,
quando o mesmo pedido foi o pretexto para ignorar e excluir a OLP das
negociações de paz. Mas como observou o Hamas, toda a
submissão da OLP a estes pedidos não conduziu a qualquer
relaxamento das garras de Israel ou a qualquer diminuição do
apoio dos EUA a Israel. É improvável que o Hamas faça o
que pedem os EUA e, mesmo que o fizesse, isto provavelmente apenas daria
ascenso a novos grupos de resistência respondendo à pioria das
condições no terreno geradas pela ocupação.
26/Janeiro/2006
[*]
Co-fundador de
The Electronic Intifada.
O original encontra-se em
http://electronicintifada.net/v2/article4425.shtml
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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