A subversão de conceitos
Considere duas declarações: "A pequena
produção está a ser esmagada pela intrusão do
capital" e "A pequena produção está a ser
esmagada pela intrusão de corporações
multinacionais". Muitos considerariam as duas declarações
mais ou menos idênticas, sendo a segunda apenas uma forma mais
específica de exprimir a primeira. Mas eles estão errados:
há um mundo de diferença entre estas duas
declarações.
O capital, como uma relação social, tem certas tendências
imanentes. Estas actuam por si próprias através das
acções de agentes económicos, cada um dos quais é
obrigado a actuar de modos particulares pela lógica do sistema. Por
exemplo: o facto de capitalistas acumularem não é porque eles
necessariamente pretendam fazer isso, mas porque a lógica do sistema
obriga-os a assim fazer. Capitalistas, em suma, não são agentes
livres, livres para fazerem qualquer coisa que pretendam, mas são eles
próprios coagidos pela lógica do sistema. Eles também
são seres alienados sob o capitalismo, simplesmente a executar um
roteiro ditado pelo sistema. Karl Marx chegou a referir-se ao capitalista como
"capital personificado".
As corporações multinacinais não são entidades
diferentes, quanto a isto, do capitalista individual. Elas não
são sinónimas do capital mas sim agentes através de cujas
acções, ditadas pela lógica do sistema, as
tendências imanentes do capital actuam por si mesmas. Tratá-las
como sinónimo do "capital" é apagar toda esta
concepção de capital com suas tendências imanentes,
eliminar todo este discurso acerca da lógica do sistema e da sua
"espontaneidade" e operar efectivamente com uma teoria muito
diferente.
Profundas implicações políticas
Mas esta mudança de "tema" de um "assunto
conceptual", nomeadamente o capital, para um "assunto
tangível", nomeadamente corporações multinacionais,
não é apenas uma mudança teórica. Ela tem profundas
implicações políticas. O capital com suas tendências
imanentes tem de ser transcendido como categoria social, através de um
derrube do capitalismo, se estas tendências imanentes tais como a
centralização do capital, a tendência contínua para
mercantilizar todas as esferas da vida social, a destruição da
pequena produção, a tendência para produzir riqueza num
pólo e pobreza em outro tiverem de ser afastadas. Reconhecer o
capital como "tema" conceptual da dinâmica social portanto
implica necessariamente uma agenda de revolução social como
condição para a liberdade humana. Mas limitar a nossa
atenção às corporações multinacionais como
as impulsionadoras, ou o "tema", da dinâmica social dá a
impressão de que eles podem ser restringidas, controladas, domadas,
persuadidas e forçadas a actuar de modos benevolentes
("responsabilidade social corporativa") para melhorar o resultado e a
direcção destas dinâmicas. Desta perspectiva, o que se
segue é uma agenda de reforma, uma agenda liberal progressista.
Portanto, uma mudança do "tema conceptual" para um "tema
tangível" não é apenas uma mutação
teórica; é também uma mutação de agenda, de
uma agenda socialista para uma agenda liberal progressista.
Naturalmente, no discurso habitual do dia-a-dia, nós não ficamos
a falar acerca de "capital" mas falamos ao invés de
corporações multinacionais, de bancos multinacionais, mesmo de
estabelecimentos industriais individuais como os Tatas, os Birlas e os Ambanis
como as entidades contra as quais as lutas dos trabalhadores são
travadas. Isto é como tem de ser, uma vez que "temas
conceptuais" são alvos polemicamente difíceis, ao passo que
"temas tangíveis" são mais palpáveis e portanto
fáceis de compreender. E, mesmo na prática, a luta do dia-a-dia,
tal como a actuação de um sindicato, é sempre contra uma
entidade particular tangível, contra uma
"personificação do capital", como dizia Marx, ao
invés de ser directamente contra a entidade conceptual chamada
"capital" (pois isso ocorre com uma lucidez de compreensão
só em períodos de luta de classe revolucionária). Mas a
questão aqui é diferente, nomeadamente que uma
substituição de um "tema conceptual" por um "tema
tangível" por conveniência política ou devido à
particularidade do contexto da luta (tal como uma acção sindical
numa fábrica de propriedade de Ambani) nunca deve implicar uma
substituição no âmago da teoria.
Qualquer substituição teórica assim, ou qualquer
tendência para permanecer mais ou menos confinado a "assuntos
tangíveis" ainda que reconhecendo formalmente o "assunto
conceptual" (o qual implicitamente equivale a uma tal
substituição teórica" é com efeito substituir
uma agenda socialista por uma agenda liberal progressista. Há certamente
liberais progressistas que não são socialistas e que,
inteiramente consistentes com suas crenças políticas, não
reconhecem "assuntos conceptuais". Eles rejeitam
declarações como a "pequenas produção esta a
ser esmagada pela intrusão do capital", mencionada no
princípio, como elevando algo místico chamado "capital"
ao status de um "sujeito". Mas para um socialista, substituir no
âmago da teoria um "assunto conceptual" por um "assunto
tangível" equivale a abandonar a raison d'être da sua
crença socialista.
Contudo, a propensão nesse sentido é particularmente alta nestes
dias porque há um grande número de grupos activistas e ONGs, os
quais são militantes e bem intencionados mas não socialistas.
Eles estão empenhados bastante intensamente em lutas sobre
questões particulares que afectam o povo e com os quais a esquerda deve
fazer causa comum. Uma vez que os alvos destas lutas são "assuntos
tangíveis", o empenhamento contínuo em tais lutas ao lado
deles por parte da esquerda traz o risco de empurrar a teoria, e com ela todo
um conjunto de "assuntos conceptuais", para segundo plano. A
esquerda, estou a argumentar, deve precaver-se contra isto é permanecer
comprometida com o seu projecto socialista.
Um segundo conceito que está em perigo de ser analogamente subvertido
é "imperialismo". O termo "imperialismo" refere-se a
uma rede de relacionamentos, envolvendo os países capitalistas
avançados e os subdesenvolvidos. Estes relacionamentos mudam ao longo do
tempo, conduzidos não só pelas tendências imanentes do
capital como também pela resistência do povo. A
administração Reagan, ou a administração Bush ou a
administração Obama são "assuntos
tangíveis" através de cujas acções o
"assunto conceptual" a que chamamos "imperialismo" opera na
prática. Mas precisamente porque imperialismo não é
tangível enquanto todas estas entidades através das quais ele
opera o são, a tendência é substituir o termo
"imperialismo" por estas outras entidades, exactamente do modo como o
termo "capital" tende a ser substituído por expressões
como "corporações multinacionais", "bancos
multinacionais" e semelhantes.
Por vezes são utilizadas expressões como o "Império
americano", ou o "Império do mal", ou "Hegemonia
estado-unidense", ou apenas "Império" utilizada por Hardt
e Negri numa obra bem conhecida, ao invés de "imperialismo".
Se bem que estas expressões descrevam certos relacionamentos, ao
contrário de expressões como "administração
Obama" que simplesmente se referem a entidades particulares existentes,
elas também recusam-se a dar qualquer sugestão de
ligação com as tendências imanentes do capital. O problema
mais uma vez não é com a utilização destas
expressões per se mas com a substituição da
expressão "imperialismo" pelas mesmas, isto é, com o
apagamento da teoria a qual decorre de um entendimento das tendências
imanentes do capital e que, portanto, encara a transcendência do
capitalismo e, por implicação, destas tendências imanentes
do capital, como uma condição para a liberdade humana.
Aqui, mais uma vez, desde que a esquerda tem de trabalhar junto com muitos
grupos activistas que são militantes sobre questões particulares
relativas, por exemplo, à agressão dos EUA por todo o mundo, mas
que não são socialistas e para os quais estes "assuntos
conceptuais" como "imperialismo" decorrente das tendências
imanentes do capital têm pouco significado, ela enfrenta o perigo de uma
subversão dos seus conceitos e portanto de um deslizamento inconsciente
para uma posição intelectual de liberalismo progressista a partir
de um compromisso com o socialismo.
Isto não é desprezo por tais lutas ou pela necessidade para a
esquerda pela qual quero dizer todos aqueles que vêm a necessidade
de transcender o capitalismo de se juntar a liberais progressistas no
decorrer destas lutas. De facto, liberais progressistas muitas vez podem ser
mais militantes em lutas particulares do que a esquerda. A questão
é que, ao assim fazer, a esquerda nunca deve abandonar o seu
próprio entendimento teórico que se centra em torno de um
conjunto de "assuntos conceptuais".
Entendimento correcto
Ela deve aderir ao seu entendimento não apenas devido a alguma lealdade
à memória de Marx e Lenine, mas porque acontece que este
entendimento é correcto. O teste desta correcção jaz no
facto de que lutas específicas contra "assuntos
tangíveis", mesmo quando elas têm êxito, trazem apenas
vitórias temporárias as quais são negadas quando as
tendências imanentes do capital se afirmam. De facto, mesmo a mais
maciça "engenharia social" que foi imposta ao capitalismo
pelas lutas da classe trabalhadora na era do pós-guerra, a qual
testemunhou a "gestão da procura" keynesiana e mesmo anunciada
festivamente como a "Idade de ouro do capitalismo", foi revertida com
a emergência do capital financeiro internacional (um outro "assunto
conceptual") em consequência das tendências imanentes do
capital. Só quando, através de uma acumulação
recursiva de lutas específicas, um desafio revolucionário com
êxito for montado contra este universo de "assuntos
conceptuais" como um todo, é que a humanidade se moverá
finalmente para além destas lutas específicas. Até
então, contudo, a esquerda deve manter-se fiel ao seu entendimento
teórico baseado nestes "assuntos conceptuais" e portanto
precaver-se contra qualquer subversão dos seus conceitos.
04/Setembro/2016
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2016/0904_pd/subversion-concepts
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|