Acerca da escassez de alimentos
A teoria económica ortodoxa foi durante muito tempo assombrada pela
perspectiva de que o crescimento da produção de cereais na
economia mundial não seria suficientemente elevado para sustentar o
crescimento da população mundial. Malthus foi um dos primeiros
expoentes deste temor. Keynes também subscreveu a visão de que se
os países pobres não assegurassem de alguma forma que o
crescimento da sua população fosse controlado, haveria uma
escassez de alimentos na economia mundial e a pobreza crescente seria um
sintoma disso.
Esta visão, é claro, era o produto de uma
disposição intelectual que via a pobreza como consequência
da procriação excessiva, ao invés de qualquer arranjo
social. Isto foi explicitamente declarado por Malthus. E a economia
política clássica, influenciada pela teoria malthusiana da
população, avançou o argumento de que os salários
dos trabalhadores permaneciam ligados a um nível de subsistência
devido à sua propensão a procriar rapidamente no momento em que
excedia o nível de subsistência. Marx, naturalmente, rejeitou esta
posição com desprezo. Ele considerou a teoria malthusiana da
população, na qual se baseava, como "uma calúnia
à raça humana".
O caso de Keynes é mais curioso. Agudamente consciente dos defeitos do
sistema capitalista (embora se esforçasse ao mesmo tempo para
preservá-lo de uma forma modificada), o corpo principal do seu trabalho
intelectual serviu para sugerir que o sofrimento dos trabalhadores sob o
capitalismo era patético porque o seu emprego, e portanto o seu
rendimento, era determinado pelas loucuras e caprichos de um punhado de
especuladores. A preocupação de Keynes acerca do crescimento
populacional ultrapassava a questão de a oferta de alimentos ser a causa
da pobreza e parece ímpar neste contexto. Mas deve-se lembrar que mesmo
Keynes, com toda a sua percepção do sistema capitalista, era
notavelmente limitado sobre a questão do imperialismo. Nunca lhe ocorreu
atribuir a pobreza do terceiro mundo à exploração
imperialista: ao contrário, ele era profundamente crítico
àqueles que faziam tal sugestão. Em consequência, a pobreza
do terceiro mundo, que estava ali para ser vista por toda a gente, tinha de ser
explicada por alguma causa interna destas sociedades. E uma taxa de crescimento
da população excessivamente alta era uma
"explicação" óbvia.
A visão de Keynes é reflectida por uma multidão de outros
economistas
mainstream,
os quais, relutantes até em reconhecer a categoria imperialismo, muito
menos qualquer efeito engendrador pobreza que este possa ter tido no terceiro
mundo, volta a recorrer a argumentos internos a estas sociedades para explicar
a privação económica dos seus povos. E o crescimento
populacional está à mão como uma explicação
conveniente.
Mas apesar de não haver objecções quanto a que sociedades
do terceiro mundo devam dar passos para controlar seu crescimento populacional
(o que é uma questão totalmente à parte), a visão
de que a sua pobreza é causada pelo crescimento populacional excessivo
é manifestamente absurda. Tomemos o mais simples dos índices de
pobreza, a saber, a privação nutricional. De facto na
Índia, e mesmo alhures, a própria definição oficial
de pobreza é em termos de privação nutricional. Na
Índia, por exemplo, qualquer um com acesso a menos de 2100 calorias por
dia em áreas urbanas e menos de 2200 calorias por dia em áreas
rurais é considerado "pobre"; e estas referências nunca
foram repudiadas, não importa que subterfúgios sejam de facto
utilizados para determinar a extensão de tal pobreza. A pergunta
é: será a pobreza assim definida um resultado da inadequada
produção de alimentos em relação à
população?
O notável é que o crescimento da produção mundial
de cereais tem estado mais ou menos a acompanhar o crescimento da
população mundial. A média anual mundial da
produção de cereais no triénio 1979-81, por exemplo,
quando dividida pela população do ano médio do
triénio, era de 355 quilogramas. O número correspondente para o
triénio 2015-17 foi de 350 quilogramas. Não obstante todas a
previsões sinistras, a produção de cereais tem portanto
acompanhado a população ao longo das últimas três
décadas e meia. Ao mesmo tempo, contudo, a quantidade de stocks de
cereais em relação à produção foi
notavelmente elevada em 2016; na realidade tem estado a subir ultimamente.
Apesar da crise capitalista e da recente desaceleração do
crescimento económico mundial, certamente tem havido uma taxa de
crescimento per capita positiva para o período de 35 anos como um todo.
Uma vez que a elasticidade-rendimento da procura por grãos alimentares
incluindo cereais é positiva para a economia mundial, dever-se-ia
esperar que, com a produção per capita de cereais permanecendo
mais ou menos inalterada, houvesse um excesso de procura no mercado
cerealífero, provocando um esgotamento dos stocks de cereais. O facto de
ter acontecido exactamente o oposto sugere que a procura mundial de cereais
realmente declinou ainda que a produção per capita de cereais
tenha permanecido quase inalterada.
Deve-se esclarecer aqui que estamos a falar não do consumo directo de
cereal mas da procura de cereal para todas as utilizações,
incluindo o consumo indirecto (via alimentos processados e produtos animais que
exigem grãos alimentares). E a evidência estatística,
tomando uma secção transversal agrupada e dados de séries
temporais para países, mostra que a
procura total
per capita de cereais aumenta com o rendimento per capita real. Portanto, o
facto de que isto
não
aconteceu recentemente para a economia mundial indica que tem havido um
esmagamento da procura de cereais através de uma redução
directa do poder de compra real dos trabalhadores
dentro dos países,
os quais são forçados a economizar mesmo no consumo de cereais.
(O declínio real no consumo per capita mundial de cereais é mesmo
maior do que o sugerido acima porque agora uma maior proporção da
produção é desviada para a produção de
etanol em comparação com a situação anterior).
Ao contrário dos temores da teoria económica ortodoxa, a
razão para a fome persistente e mesmo crescente no mundo de hoje surge
não está do lado da oferta mas sim do lado da procura. Isso
acontece não porque haja escassez de produção em
relação à população mas porque há
escassez de procura relativa para esta produção. Uma vez que a
magnitude da procura depende da magnitude do poder de compra real e da sua
distribuição, a qual é
socialmente determinada,
não é a população excessiva mas a
organização social sob a qual vivemos hoje, a
organização do capitalismo neoliberal, que é
responsável pela fome persistente e crescente no nosso mundo. A causa
próxima da privação nutricional e portanto da pobreza no
mundo é a nossa ordem social, não a população
excessiva.
Dizer isto não significa, como já foi mencionado, que as
populações não deveriam ser controladas. Mas utilizar a
população excessiva como uma camuflagem para obscurecer o papel
da ordem social é totalmente errado e deve ser rejeitado.
Nossa discussão tão pouco significa que não devesse ser
tentado um aumento na produção per capita de grãos
alimentares. De facto, uma razão importante para a ausência de
poder de compra entre os trabalhadores é a baixa taxa de crescimento da
produção da agricultura, incluindo os grãos alimentares.
Se esta taxa de crescimento fosse acrescida então também haveria
maior poder de compra entre aqueles que procuram cereais alimentares, o que
reduziria a privação nutricional. Mas nossa discussão
sugere que mesmo que o poder de compra seja
de alguma forma
posto nas suas mãos,
ainda assim haveria uma redução na pobreza nutricional sem que
isto causasse necessariamente excesso de procura na economia mundial de
grãos alimentares. Se por exemplo cuidados de saúde baratos ou
gratuitos pudessem ser dispensados aos trabalhadores do mundo haveria
então poder de compra adicional nas suas mãos, o qual eles
usariam para maior consumo de grãos alimentares, superando com isso a
pobreza nutricional.
Como matéria de facto, o mesmo factor que mantém baixa a procura
por grãos alimentares também mantém baixa a
produção dos mesmos: a gama de medidas através das quais o
capitalismo neoliberal reduz o poder de compra dos trabalhadores também
inclui medidas dirigidas contra o campesinato que afectam adversamente a
produção. Ao eliminar todos os subsídios dados
anteriormente à agricultura, retirar esquemas de apoio aos
preços, privatizar serviços essenciais como
educação e cuidados de saúde tornando-os mais caros, que
são características comuns da agenda neoliberal, reduz-se a
lucratividade real da agricultura camponesa (isto é, ganhos em
relação ao custo de vida), empurrando o campesinato para um ciclo
vicioso de dívida, sofrimento e suicídios. A
produção também é afectada adversamente em
consequência.
Portanto a argumentação
mainstream
avançada por um conjunto de distintos escritores desde Malthus
até Keynes é errada por duas razões. Primeiro, a pobreza
existe mesmo quando não há escassez de produção de
cereais na economia mundial, de modo que o constrangimento próximo que
perpetua a fome não está do lado da oferta mas do lado da
procura. Segundo, mesmo o constrangimento ao aumento da produção
verifica-se não por causa de quaisquer "limites naturais" mas
sim por causa das políticas prosseguidas sob o regime do capitalismo
neoliberal.
Estas duas razões, por sua vez, estão relacionadas: medidas que
esmagam a procura por cereais também esmagam a produção de
cereais e vice-versa (com o esmagamento da procura sendo relativamente maior).
Estas medidas têm a ver com a organização social e
não com qualquer "população excessiva". O facto
de que escritores
mainstream
continuem a rufar o tambor da "população excessiva"
como causa da pobreza, especialmente no terceiro mundo, apenas sublinha a
natureza profundamente ideológica da teoria económica.
08/Abril/2018
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2018/0408_pd/prospect-food-shortage
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|