As finanças contra o povo na era da pandemia
A actual pandemia trouxe à tona, com clareza excepcional, a
contradição fundamental subjacente ao capitalismo
contemporâneo, nomeadamente a contradição entre os
interesses da finança e os do povo. Na verdade, esta
contradição, que caracteriza a era da globalização
como um todo, agora chegou a um ponto crítico.
Isto está a tornar-se claramente visível, país após
país. Tome-se o caso da Índia. Milhões subitamente
passaram ao desemprego e centenas de milhares de trabalhadores migrantes que
regressam penosamente de lugares longínquos, onde estavam empregados e
agora já não estão, encontram-se em quarentena com pouco
ou nenhum dinheiro. A principal necessidade do momento é que o Governo
providencie socorro a estes trabalhadores; e o Governo pode fazê-lo
imediatamente pelo aumento do défice orçamental.
Mas ele abstém-se de fazê-lo porque um grande défice
orçamental não agrada ao capital financeiro móvel global.
O ministro das Finanças sai-se, portanto, com um pacote de medidas que
é irrisório, onde a despesa total prometida como ajuda às
famílias em dificuldades, ignorando as medidas re-empacotadas, reduz-se
a meras 920 mil milhões de rupias [11 111 mil milhões de
euros] (consistindo em 340 mil milhões de
transferências monetárias, 450 mil milhões de
transferências através do sistema público de
distribuição e 130 mil milhões de transferências sob
a forma de cilindros de gás). Isto corresponde a cerca de 0,5 por cento
do PIB do país, o que é uma soma trivial no contexto do que
geralmente é considerado a pior tragédia a atingir o país
após a independência!
Mas considere-se o estado da economia. O Governo dispõe de colossais 58
milhões de toneladas de stocks de cereais (77 milhões de
toneladas se incluirmos os cereais disponíveis mas ainda não
prontos para distribuição imediata); a colheita de rabis
[NT]
promete ser boa; a indústria desde há muito tem sido
constrangida pela procura com muita capacidade não utilizada (de facto,
o país estava a deslizar para uma recessão industrial antes de
ser atingido pela pandemia); e as reservas de divisas estrangeiras estão
num nível recorde de 500 mil milhões de dólares. Um
défice orçamental mais elevado nestas circunstâncias
não pode ter quaisquer efeitos nocivos para a economia; mas o povo
está a sofrer por vontade do capital financeiro.
O temor oficial é que, se o défice orçamental aumentar
mais, então as agências de classificação de
crédito rebaixariam o status da Índia, o que minaria a
"confiança dos investidores" e dispararia uma fuga de capital.
Isto provocaria uma nova queda no valor da rupia, a qual pode tornar-se
cumulativa.
Em tudo isto, contudo, perde-se um ponto simples: se este desenlace realmente
se concretizar, então não deveria haver qualquer
hesitação em impor restrições às
saídas de capital. Mesmo um governo Hindutva não deveria hesitar
em aplicar tais restrições, se necessário, numa altura
como esta.
Mas tamanho é o estrangulamento do capital financeiro que a
própria ideia de controles de capitais, mesmo numa pandemia, não
entra na cabeça do governo. Portanto qualquer possibilidade de controles
de capitais é simplesmente descartada à partida, de modo que,
mesmo antes de se concretizarem quaisquer consequências terríveis
de uma ampliação do défice orçamental, a simples
ideia de isto acontecer assusta o governo, levando-o a sacrificar os interesses
do povo para satisfazer os caprichos das finanças.
A pusilanimidade do governo para com as finanças globais também
está a atar as mãos dos governos dos estados. Eles têm de
arcar com o fardo considerável da despesa provocada pela pandemia. E
dada a enorme centralização de recursos que se tem verificado
ultimamente, em que eles não podem sequer alterar taxas de
tributação de mercadorias sem a permissão do Conselho GST
no qual o governo central está representado e tem uma voz dominante,
eles basicamente têm de depender de transferências do governo
central.
Mesmo os seus limites de contratação de empréstimos
são controlados pelo centro. Portanto se o centro está carente de
fundos, então assim estão os estados. Se o centro está
incapacitado pelos ditames das finanças, então assim estão
os estados. A pusilanimidade do centro, por outras palavras, restringe a
despesa pública futura, para a melhoria das desgraças do povo
durante a pandemia.
Exactamente o mesmo conflito, entre o interesse do povo e o da finança,
é visível claramente também na Europa. Muitos
países no Sul da Europa, nomeadamente a Espanha e a Itália,
têm sido duramente atingidos pela pandemia. Levantar recursos para
despesas públicas a fim de atender à crise ao nível de
cada país seria extremamente caro pois os
yields
sobre os títulos de cada país individual seriam elevados. Assim,
uma proposta tem sido fazer flutuar Eurobonds, os quais seriam o passivo de um
organismo pan-europeu e portanto implicaria
yields
mais baixos. É como se toda a Europa estivesse a contrair
empréstimos em prol da Itália, da Espanha e de outros
países necessitados ao invés destes países fazerem-no por
si mesmos.
Esta sugestão, feita em particular pela Itália, tem sido no
entanto recusada pela Alemanha e pela Holanda, porque o capital financeiro
alemão o qual domina a Eurozona opõe-se a uma
socialização dos riscos da contracção de
empréstimos por países individuais. O argumento é que se
um país precisa aumentar o seu défice orçamental,
então deve estar disposto a pagar o preço por ele. Angela Merkel,
como chefe do Governo alemão, articula a posição do
capital financeiro alemão, exactamente como havia feito durante a crise
grega, quando o pedido grego de reescalonamento da dívida foi
decididamente recusado pelo capital financeiro alemão.
Tem havido apelos internacionais de economistas e intelectuais para que Angela
Merkel demonstre piedade nesta questão. Mesmo o exemplo de um
século atrás, quando os termos duros para a Alemanha no Tratado
de Versalhes após a primeira guerra mundial aumentaram a profundidade da
recessão naquele país, dando origem à ascensão do
nazismo, foi sugerido no apelo. (Lenine, pode-se recordar, havia salientado
estes termos duros no seu discurso ao Segundo Congresso da Internacional
Comunista como evidência da maturação das
condições para uma revolução mundial). Mas o
capital financeiro permaneceu impassível a tais apelos.
Um grande número de países do terceiro mundo, que têm de
cumprir suas obrigações de reembolso das suas dívidas em
meio à pandemia, abordaram o Fundo Monetário Internacional para
empréstimos e também para conseguirem um reescalonamento da sua
dívida. Sendo magros os recursos próprios do FMI, ele não
está em posição de providenciar empréstimos
suficientes para acomodar os interesses tanto dos credores financeiros como dos
povos atingidos pela pandemia. E o reescalonamento de dívidas que o FMI
pode providenciar é improvável que seja suficiente para deixar
recursos adequados para socorrer trabalhadores pobres nestes países.
Assim, por todo o mundo, o conflito entre o capital financeiro e os interesses
dos povos atingidos pela pandemia está a tornar-se agudo e a mover-se
para o cenário central. Este conflito sempre foi camuflado na verborreia
acerca de "elevadas taxas de crescimento" (supostamente em
benefício de todos) e "criação de riqueza"
(supostamente para a "nação" como um todo, da qual
todos os seus cidadãos eram legatários). A ideia que se pretendia
apresentar era que os interesses das finanças coincidiam com os
interesses do país e do seu povo, que servir o primeiro
ipso facto
serviria o segundo.
Esta ideia estava de qualquer forma a desgastar-se devido à crise
económica mundial. Era evidente que nenhuma redução das
taxas de juro iria retirar a economia mundial da crise; o que era
necessário era um estímulo orçamental. Dadas as
objecções do capital financeiro a quaisquer estímulos
orçamentais (para o quais défices orçamentais teriam de
ser ampliados), nenhum Estado individual estava em posição, por
si só, de se empenhar num tal estímulo orçamental enquanto
permanecesse dentro do quadro da globalização financeira. Se o
fizesse, então haveria uma fuga das finanças das suas costas,
criando-lhe graves problemas.
Mas agora a vacuidade desta ideia da coincidência entre o interesse do
povo e o das finanças revela-se plenamente pela pandemia; já
não pode ser mais camuflada pela verborreia. Há uma
urgência gritante em levar ajuda ao povo, mas a barreira contra isso
é imposta pelos ditames das finanças. A
intensificação deste conflito nos próximos dias
soará como o dobre de finados da globalização financeira.
12/Abril/2020
[NT] Colheitas de rabis: Cereais semeados no Inverno e colhidos na Primavera (cevada, aveia,
trigo, etc). V.
en.wikipedia.org/wiki/Rabi_crop
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2020/0412_pd/finance-versus-people-era-pandemic.
Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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