O enigma aparente do crescimento
À primeira vista parece ser um enigma. A Índia tem registado,
segundo estatísticas oficiais, uma das mais altas taxas de crescimento
do PIB entre todos os países do mundo, até ao ponto que
epítetos como "super-potência económica
emergente" e "um motor global do crescimento" têm sido
usados desembaraçadamente para descreve o feito da Índia.
Comentadores burgueses manifestam muito orgulho com o facto de que a
Índia está em vias de ultrapassar até mesmo a China em
termos de taxa de crescimento. O FMI agora fala da Índia a liderar o
mundo no crescimento do PIB em 2019. E ainda que se possam levantar
questões acerca dos números exactos, dificilmente se pode negar
que, em termos convencionais do PIB, embora não em termos de
produção material, a taxa de crescimento da Índia tem sido
muito maior no período pós-liberalização do que
antes.
No entanto, precisamente durante o período em que o crescimento do PIB
da Índia foi impulsionado, houve um aumento da fome e da pobreza
absoluta (a qual é definida em termos de fome). A absorção
per capita de cereais na Índia de hoje é nitidamente mais baixa
do que na véspera da liberalização económica.
Também é mais baixa do que a média da África, a
qual tem sido proverbialmente subnutrida por bastante tempo, e do que a
média do que a ONU chama de os países menos
desenvolvidos.
Não surpreendentemente, a pobreza a qual é oficialmente
definida como a incapacidade de ter acesso a 2200 calorias por pessoa por dia
na Índia rural e 2100 calorias por pessoa por dia na Índia urbana
tem estado em ascensão. A percentagem da população
rural abaixo desta referência calórica era de 58% em 1993-94, ela
subiu para 68% em 2011-12 (ambos os períodos fizeram parte da
"grande pesquisa por amostra" da National Sample Survey
Organisation). As percentagens correspondentes da população na
Índia urbana abaixo do nível de referência de 2100 calorias
foram de 57% e 65%, respectivamente. A conclusão inescapável
é que o aumento da taxa de crescimento do PIB foi acompanhado por um
aumento da fome. A pergunta levanta-se naturalmente: como se explica este
aparente enigma?
Vamos primeiro descartar algumas explicações fáceis. Uma
delas declara que quando o seu rendimento aumenta a pessoa consome menos de
cereais e mais de outras coisas, de modo que o declínio na
absorção per capita de cereais ao invés de mostrar uma
pioria económica mostra exactamente o oposto, nomeadamente uma melhoria
no padrão de vida. Este argumento está errado porque, embora
não haja dúvida de que as pessoas consomem menos cereais
directamente quando a sua situação se melhora, elas
invariavelmente consomem mais cereais directa indirectamente, estes
últimos na forma de alimentos processados e produtos animais dentro dos
quais os cereais entram como um input. Uma vez que os números
mencionados acima informam a absorção per capita total (isto
é, directa e indirecta), explicar o enigma aparente deste modo
simplesmente não funcionará.
Uma segunda explicação fácil aponta para a maior
proporção de despesa agora gasta pelas famílias em
educação, saúde e outros serviços, para argumentar
que os gostos têm mudado, que o povo actualmente prefere gastar mais em
tais serviços em comparação com os cereais. Esta
explicação poderia ter algum se não houvesse ocorrido
qualquer privatização destes serviços essenciais no
período em discussão. Com a privatização,
entretanto, houve um aumento pronunciado nos preços destes
serviços (os quais não são tidos em conta no padrão
dos índices de preços no consumidor pois eles assumem que o lote
de bens do período base, incluindo serviços fornecidos
publicamente, também estariam disponíveis no período
posterior). Por causa disto, agora para o acesso ao mesmo nível destes
serviços o povo tem de pagar mais, muitas vezes restringindo sua
absorção de cereais.
Incidentes de famílias camponesas tendo de vender a terra a preço
vil, ou incorrer em dívida, só para atender as contas exorbitantes de
hospitais privados onde forçosamente levam parentes aflitos numa
situação de facilidades públicas minguantes de cuidados de
saúde, são demasiado bem conhecidos para serem repetidos aqui. E
em tais casos elas são forçadas a restringir seu consumo de
cereais. Portanto, as maiores exigências da educação e
cuidados de saúde sobre orçamentos familiares longe de mostrarem
mudanças de gostos a dados preços, as quais poderiam ser
interpretadas como não constituindo uma pioria económica, sugerem
um quadro totalmente diferente, nomeadamente um aumento forçado da fome
e da pobreza, efectivado através de um aumento de preços de
serviços essenciais. Isto mais uma vez levanta a questão: por que
tal crescimento da fome e da pobreza acompanha a aceleração do
crescimento do PIB? Por que este enigma aparente?
Contudo, de facto não há enigma. Um enigma surgiria só se
alguém esperasse que uma taxa de crescimento mais alta por si mesmo
reduzisse a pobreza. Mas assim fazer constitui pensamento enviesado. A pobreza,
apesar de medida em termos materiais como calorias ou ingestão de
cereais, é o resultado de um relacionamento social. Que impacto o
crescimento do PIB tem sobre a pobreza depende do relacionamento social dentro
do qual ocorre o crescimento do PIB. E o relacionamento social dentro do qual
cresce o PIB ocorre sob o capitalismo neoliberal de um modo tal que há
um aumento na fome e na pobreza mesmo quando o crescimento se acelera.
O facto portanto não deveria causar nem um mínimo de surpresa.
Por outras palavras, o facto da pobreza crescente acompanhar a
aceleração do crescimento do PIB apenas sublinha a natureza do
relacionamento social, caracterizada pelo capitalismo neoliberal, dentro do
qual está a ocorrer o crescimento do PIB. Na verdade, pretender que o
crescimento mais elevado do PIB
per se
reduziria a pobreza é desviar a atenção da centralidade
do relacionamento social; é obscurecer o assunto. Segue-se que a
algazarra acerca da taxa de crescimento do PIB da Índia que ultimamente
atraiu a atenção do público mostra apenas a actual
hegemonia do discurso neoliberal no nosso país, o qual procura
precisamente obscurecer as questões.
Por que deveria o relacionamento social do capitalismo neoliberal no interior
do qual ocorre o crescimento implicar um aumento da fome e da pobreza mesmo
quando o crescimento acelera? A resposta jaz no facto de que o regime
neoliberal implica um ataque à pequena produção. Isto
não é uma ocorrência acidental. É endémico ao
regime neoliberal: um tal regime está associado à hegemonia do
capital financeiro globalizado, a qual necessariamente significa, num mundo de
Estados-nação, que a política do governo deve estar de
acordo com os caprichos da finança globalizada. E isto implica uma
retirada do governo do seu papel de proteger, apoiar e suster a pequena
produção, incluindo a agricultura camponesa, contra a
invasão do grande capital.
Isto implica uma retirada de subsídios do governo à agricultura
camponesa e, portanto, custos mais altos dos inputs; uma retirada dos suportes
aos preços, pelo menos para as culturas de rendimento, se não
(mesmo) para as culturas alimentares; uma exposição às
flutuações dos preços do mercado mundial; e assim por
diante, tudo isso minando a viabilidade deste sector. O facto de que entre os
censos de 1991 e 2011 o número de "cultivadores" diminuiu em
15 milhões (para não mencionar os mais de 300 mil
suicídios de camponeses nas últimas duas décadas e meia),
testemunha este facto. Muitos desses "cultivadores" ausentes teriam
se juntado às fileiras dos trabalhadores agrícolas; outros
provavelmente migraram para cidades em busca de emprego que não
está a expandir-se e, portanto, incharam as fileiras do exército
de trabalho de reserva, esmagando assim os ganhos per capita reais de toda a
população trabalhadora urbana (incluindo mesmo o pequeno segmento
de trabalhadores sindicalizados).
Temos portanto uma pioria do rendimento per capita real de toda a
população trabalhadora, tanto urbana quanto rural, como
consequência do esmagamento do sector da pequena produção,
a ponto de acumularem-se stocks não vendidos de cereais (os quais
são então exportados) e há aumento da fome. O fato de que
este esmagamento da pequena produção, ou a
acumulação primitiva de capital, é acompanhado por uma
aceleração do crescimento do PIB, não faz diferença
para o fenómeno da fome e da pobreza crescentes.
Pode-se pensar que um crescimento ainda mais alto do PIB do que aquele que
já temos pode, pelo aumento do emprego, reduzir a dimensão do
exército de reserva e dessa forma reduzir a pobreza. Isto, contudo,
não pode acontecer sob o capitalismo neoliberal. O esmagamento da
agricultura camponesa afecta tanto a oferta como a procura de cereais e a
acumulação de stocks de cereais não vendidos tem-se
verificado apesar de a produção de cereais per capita não
aumentar no período da liberalização.
Agora, suponha-se que o emprego aumente através de um novo aumento no
crescimento do PIB sob o regime neoliberal que a procura alimentar acrescida
causada por tal aumento esgote os stocks de cereais não vendidos.
Então, qualquer novo aumento no emprego causará
inflação dos preços dos alimentos, a qual para
contê-la o governo tomará medidas políticas para reduzir os
rendimentos dos trabalhadores (incluindo o emprego). Nesse caso, uma vez que a
produção per capita de cereais alimentares ainda não teria
aumentado em comparação com o ano base, não teria havido
redução da fome e da pobreza em comparação com o
ano base, apesar do crescimento acelerado do PIB.
Segue-se portanto que uma melhoria nos padrões de vida dos povo
trabalhador e, portanto, uma redução da fome e da pobreza, exige
entre outras coisas um aumento na produção per capita de cereais
e portanto uma revitalização da agricultura camponesa. Uma vez
que isto vai contra as tendências imanentes do capitalismo neoliberal,
uma redução da pobreza é impossível sob o mesmo,
não importa qual a taxa de crescimento do PIB pelo
contrário, é provável que haja um aumento da pobreza como
tem estado a acontecer.
Dito de modo diferente, só uma aceleração do crescimento
do PIB que se produzir através de uma revitalização da
agricultura camponesa e do sector da pequena produção em geral (e
sustentada ao longo do tempo através da sua transformação
em cooperativas e formas colectivas de propriedade) pode reduzir a pobreza
mas o crescimento sob um regime de capitalismo neoliberal não
é possível. Falar de crescimento do PIB como uma panaceia para a
pobreza sem qualquer referência ao relacionamento social em que tal
crescimento se verifica constitui absoluta pobreza de pensamento.
27/Janeiro/2019
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2019/0127_pd/apparent-enigma-growth
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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