Entre não marxistas há sempre uma tendência a ignorar a
especificidade das percepções de Marx no âmago da economia
política e reduzi-las, ao invés, a ideias semelhantes mas
anteriores que podem ser encontradas em Adam Smith ou David Ricardo. O
economista Paul Samuelson exprimiu esta tendência da maneira mais
flagrante, se não deliberadamente provocatória, quando se referiu
a Marx como um "pós ricardiano menor".
O problema com esta tendência é que ela perde o salto que Marx deu
sobre os seus antecessores e portanto interpretou-o muito mal. O caso
clássico de tal má interpretação é a teoria
de valor de Marx, a qual é erradamente tomada como não diferente
daquela de David Ricardo (um erro que conforma a caracterização de
Marx feita por Samuelson). Um erro análogo é cometido
também
quanto à visão de Marx da alienação.
Adam Smith, seria de recordar, enfatizou o significado profundo da
divisão do trabalho tanto na sociedade como um todo como também
dentro da fábrica. Em relação a esta última, ele
deu o famoso exemplo da fábrica de alfinetes onde o trabalho de
manufacturar alfinetes era segmentado em numerosas actividades separadas e
diferentes trabalhadores eram assinalados a estas diferentes actividades, o que
resultava num enorme aumento da produtividade por trabalhador. Smith havia
sustentado que tal aumento de produtividade e o rácio no qual o total da
força de trabalho era dividido em "trabalhadores improdutivos"
(tais como servidores domésticos) e "trabalhadores produtivos"
(os quais produziam valor excedente) como os dois factores chave que
determinavam o aumento da riqueza das nações.
Mas tendo enfatizado o papel da divisão do trabalho como causa do
progresso económico, no sentido de aumentar a "riqueza das
nações", Smith avançou para destacar o facto de que
tal especialização tendia a causar a
"mutilação mental" dos trabalhadores, uma vez que cada
um deles estava restrito a desempenhar uma única tarefa repetitiva. Vale
a pena aqui citar Smith na íntegra:
"O homem cuja vida inteira é gasta no desempenho de umas poucas
operações simples, das quais os efeitos são talvez sempre
os mesmos, ou muito aproximadamente os mesmos, não tem oportunidade de
exercer o seu entendimento ou de exercitar o seu poder inventivo na descoberta
de expedientes para remover dificuldades que nunca ocorrem. Ele naturalmente
perde, consequentemente, o hábito de tal esforço e torna-se
geralmente tão estúpido e ignorante quanto é
possível tornar-se uma criatura humana. O torpor da sua mente torna-o
não só incapaz de desfrutar ou participar de qualquer
conversação racional, nem de conceber qualquer sentimento
generoso, nobre ou delicado e, consequentemente, de formar qualquer julgamento
justo referentes mesmo a muitos dos deveres comuns da vida privada... Mas em
toda sociedade aperfeiçoado e civilizada isto é o estado no qual
os trabalhadores pobres, isto é, o grande conjunto do povo,
deve necessariamente cair, a menos que o governo faça alguns
esforços para impedi-lo".
Se bem que esta visão de Smith sem dúvida apreenda um aspecto
importante da produção capitalista, um aspecto acerca do qual
muitos marxistas também escreveram e que de modo impressionante foi
captado no filme
Tempos Modernos
de Charlie Chaplin, ela é frequentemente mantida como sendo a
precursora da teoria da "alienação" de Marx e como
contendo a sua ideia central. Esta última afirmação no
entanto é errónea e enganosa, não obstante a
perspicácia contida nas observações do próprio
Smith.
Smith queria que os "governos" nas "sociedades civilizadas"
impedissem este torpor da mente que sobrevém aos pobres trabalhadores,
como complemento necessário ao progresso económico da
nação. Comunistas pré-marxistas como Proudhon
[NR]
também trataram das consequências adversas da divisão do
trabalho e exprimiram-se sobre como ultrapassar este torpor. Marx resumiu a
visão de Proudhon sobre isto, em
A pobreza da filosofia,
com as seguintes palavras;
"O sr. Proudhon ... propõe ao trabalhador que faça
não só um doze avos do alfinete, mas sucessivamente todas as doze
partes dele. O trabalhador viria então a conhecer e compreender o
alfinete. Isto é a síntese do trabalho do sr. Proudhon... ele
não pode pensar em nada melhor do que em levar-nos de volta ao
artesão ou, no máximo, ao mestre-artífice da Idade
Média".
Portanto a alienação, como Smith ou mesmo Proudhon a viam,
não exige a transcendência do capitalismo para ser ultrapassada
(isto apesar do facto de que o próprio Proudhon era comunista [NR]). O
entendimento de Marx da alienação, embora não negando a
percepção que Smith e, a seguir a ele, Proudhon, haviam
avançado, era no entanto completamente diferente disto; e a
ultrapassagem exigia uma transcendência do capitalismo.
A ULTRAPASSAGEM DA ALIENAÇÃO NECESSITA DA TRANSCENDÊNCIA DO
CAPITALISMO
Em Smith, eram apenas os trabalhadores que eram alienados desta maneira. Mas
em Marx, a alienação era uma característica universal do
sistema, afectando todos, não apenas os trabalhadores mas também
os capitalistas. E a universalidade da alienação caracterizando o
sistema significa que ela não podia ser ultrapassada dentro do
próprio sistema; ela necessariamente exigia a sua transcendência.
A alienação era imanente na própria forma mercadoria. Uma
mercadoria é naturalmente um valor de uso e um valor de troca; mas ela
não é um valor de uso para o produtor. Enquanto para o comprador
ela é tanto um valor de troca, representando uma certa soma de dinheiro
como um valor de uso, com certas propriedades físicas e químicas
as quais satisfazem suas exigências, para o vendedor ela é
só um valor de troca, só uma certa soma de dinheiro. As
propriedades físicas e química da mercadoria são
inúteis para ele pessoalmente.
Isto é um ponto básico de diferença entre a economia
política marxiana e a economia política burguesa
"convencional"
("mainstream"),
uma vez que esta última é fundamentada sobre a
presunção de que a mercadoria que é trocada por dinheiro
entre o vendedor e o comprador constitui um valor de uso para ambos
(além naturalmente de ser um valor de troca para ambos). Mas se a
mercadoria é apenas um valor de troca, não um valor de uso, para
o produtor, então o produtor não pode simplesmente retirar-se do
mercado e consumir sua própria mercadoria. Venha o inferno ou a
tempestade ele deve vendê-la por uma certa soma de dinheiro; se
não puder vender então está condenado, a menos que tenha
algumas reservas de cash a que recorrer.
Uma vez que todos os vendedores sabem disto, construir tais reservas pela
ampliação do negócio a expensas de rivais torna-se
essencial para cada um. A competição, por outras palavras,
introduz uma luta darwiniana entre produtores de mercadorias; e isto
transmite-se ao capitalismo, o qual é nada mais que a
produção generalizada de mercadorias (onde o próprio
valor-trabalho tornou-se uma mercadoria). É a esta luta darwiniana que
está subjacente o impulso para a acumulação de capital e
para a introdução do progresso tecnológico.
O que isto significa é que não são apenas os trabalhadores
que têm de competir uns contra outros pelo emprego num mundo
caracterizado pelo desemprego (isto é, pela presença perene de um
exército de reserva do trabalho), mas os capitalistas também
têm de competir uns contra os outros. Em suma, todos os participantes
neste sistema têm de representar papeis particulares, quer gostem ou
não; pois se não o fizerem então dão-se por
vencidos. Cada um deles pode conservar a sua posição dentro do
sistema, não importa se essa posição implica ser um
explorador ou quem é explorado, só representando um certo papel,
actuando e comportando-se de uma maneira particular. Cada participante
individual no sistema aparece como tendo "arbítrio"
("agency")
no sentido de ser aparentemente livre para fazer o que preferir fazer; mas de
facto esta aparência é enganosa porque o modo da sua
acção é determinado pela sua posição dentro
do sistema e o papel deste impõe-se sobre ele ou ela. É digno de
nota que Marx chamou o capitalista de "capital personificado", isto
é, as tendências imanentes do sistema actuam elas próprias
entre outras através do "arbítrio" nominal dos
capitalistas (tal como efectivamente dos trabalhadores).
O capitalismo, por outras palavras, não é apenas um sistema
explorador; não é apenas um sistema anárquico onde a
resultante agregada das acções de indivíduos revela-se
diferente do que pretendiam; ele é também, além disso, um
sistema "espontâneo", onde o modo de influir sobre parte dos
próprios indivíduos não é determinada pela sua
vontade mas é-lhes imposta pela posição que ocupam dentro
do sistema.
A LÓGICA COERCIVA DO SISTEMA
A alienação sob o capitalismo está basicamente ligada a
isto, isto é, ao facto de que as acções dos
indivíduos não são baseadas na sua própria vontade
mas derivam da lógica coerciva do sistema. O capitalista acumula
não porque goste mas porque não tem outra opção
dentro da lógica do sistema se não quiser dar-se por vencido. Os
trabalhadores obedecem ordens porque se não o fizessem seriam despedidos
e postos à margem. O progresso tecnológico é introduzido
porque se um capitalista com acesso à nova tecnologia não a
introduzisse, então algum outro o faria; e o primeiro capitalista
ficaria fora da competição e seria descartado. É esta
coerção que é alienante, o facto de que o arbítrio
nominal não implique arbítrio autêntico, mas seja meramente
a mediação através do qual funcionaa lógica
imanente do
sistema.
Contudo é precisamente esta espontaneidade que é desafiada pelos
trabalhadores através de "combinações" que
impõem cada vez mais complexidade política (com a ajuda de teoria
trazida de "fora"). Tais combinações, por outras
palavras, constituem passos para ultrapassar a alienação imposta
pelo sistema sobre os trabalhadores. Mas as tendências imanentes do
mesmo (ex. a tendência rumo à centralização do
capital, sua formação em blocos cada vez maiores), actua sempre
para frustrar e reverter estes esforços em direcção
à ultrapassagem da alienação dentro do próprio
sistema.
O facto de que a globalização do capital, a qual é
expressão do mais alto nível de centralização
até hoje alcançado, tenha servido para minar os
movimentos sindicais por todo o mundo capitalista, e com isto o movimento
político de esquerda, só confirma esta afirmação.
Disto se segue que a ultrapassagem da alienação, como entendida
por Marx, não é possível dentro do próprio sistema;
ela só é possível através da sua
transcendência. Este facto apenas enfatiza a diferença
básica entre o entendimento smithiano e o entendimento marxiano da
alienação.
[NR]
Ao invés de "comunista pré-marxista" seria preferível classificá-lo como
socialista utópico.
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
.
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2014/0323_pd/smith-marx-and-alienation
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.