Uma era de transição
Os EUA, a China, o Pico Petrolífero e a morte do
neoliberalismo
Até recentemente a economia capitalista global desfrutou um
período de relativa tranquilidade e crescimento a um ritmo relativamente
rápido após a crise económica global de 2001-02. Durante
este período de expansão económica tem havido
vários importantes desenvolvimentos económicos e
políticos. Primeiro, os Estados Unidos a potência
económica declinante mas ainda a principal força condutora da
economia capitalista global foram caracterizados por crescentes
desequilíbrios internos e externos. A economia estado-unidense
experimentou um período de dívida financiada,
"expansão" conduzida pelo consumo com salários e
emprego estagnados, e tem estado a incorrer grandes e crescentes défices
em conta corrente (o défice em conta corrente é uma medida ampla
do défice comercial). Segundo, a China tornou-se um actor principal na
economia capitalista global e tem estado a desempenhar um papel cada vez mais
importante na sustentação do crescimento económico global.
Terceiro, a acumulação capitalista global está a impor
uma pressão crescente sobre os recursos naturais e o ambiente do mundo.
Há uma evidência cada vez mais convincente de que a
produção petrolífera global atingirá o seu pico e
começará a declinar dentro de poucos anos. Quarto, a aventura
imperialista estado-unidense no Médio Oriente sofreu derrotas
devastadoras e tem havido resistência crescente ao neoliberalismo e ao
imperialismo americano por todo o mundo.
Quando a bolha habitacional dos EUA explode e o domínio do dólar
sobre o sistema financeiro global torna-se cada vez mais precário, a
economia estado-unidense está agora a ir para a recessão e a
economia capitalista global está a entrar num novo período de
instabilidade e estagnação. Nos próximos anos veremos
provavelmente um grande realinhamento das várias forças politicas
e económicas globais e isto estabelecerá o palco para uma nova
ascensão da luta de classe global.
Neoliberalismo e desequilíbrios globais
A partir da década de 1980, o neoliberalismo tornou-se a ideologia
económica dominante do capitalismo global. Sob as políticas e
instituições neoliberais (tais como monetarismo,
privatização, desregulamentação,
"reforma" do mercado de trabalho e liberalização
comercial e financeira), as desigualdades no rendimento e na
distribuição de riqueza altearam-se e, em muitas partes do mundo,
o povo sofreu declínios devastadores nos padrões de vida. Quando
o capital financeiro fluía entre países em busca de ganhos
especulativos, uma economia nacional após outra eram destruídas.
Sob a pressão de capitalistas financeiros e dos seus representantes
institucionais (tais como o FMI, o Banco Mundial e o Departamento do Tesouro
dos EUA), muitos governos ficaram comprometidos com as chamadas
políticas fiscal e monetária "responsáveis", o
que muitas vezes conduziu a consequências económicas e sociais
desastrosas.
Na década de 1990, as contradições do neoliberalismo
levaram a crises financeiras cada vez mais violentas. De 1995 a 2002, a
economia global foi abalada sucessivamente pelas crises que se desenvolveram no
México, países do Sudeste Asiático, Rússia,
Argentina e Turquia. A economia japonesa lutou com deflação e
estagnação a seguir à explosão da bolha de activos
em 1990. Havia um sério perigo de que toda a economia capitalista
global pudesse cair num círculo vicioso de rupturas financeiras e
afundamento na depressão. Neste contexto, os défices em conta
corrente dos EUA desempenharam um indispensável papel estabilizador.
Nos anos 1990, os Estados Unidos experimentaram a maior bolha no mercado de
acções da história. Apesar da estagnação
dos salários reais e dos rendimentos familiares, o consumo
doméstico expandiu-se rapidamente quando a dívida habitacional
escalou. Na recessão de 2001, temendo que os Estados Unidos pudessem
cair numa estagnação persistente, estilo japonês, o Federal
Reserve cortou drasticamente a política de taxas de juro e manteve a
taxa de juro real abaixo de zero durante vários anos. Em
consequência, o mercado de acções permaneceu altamente
super-valorizado de acordos com os padrões históricos e a oferta
excessiva de moeda e capital a crédito por sua vez alimentaram uma
grande bolha habitacional.
Alimentada por uma bolha de activos após outra, a economia dos EUA foi
capaz de manter uma expansão relativamente rápida da procura
interna. Quando o resto do mundo sofre de insuficiente procura interna, as
importações americanas de bens e serviços tenderam a
crescer mais rapidamente do que as exportações. Em
consequência, os Estados Unidos tem estado a incorrer em grandes e
crescentes défices em conta corrente, os quais em 2006 atingiram mais de
800 mil milhões dólares, ou 6 por cento do PIB.
Os défices estado-unidenses em conta corrente geram directamente procura
efectiva para o resto da economia mundial, permitindo a muitas economias,
incluindo as economias asiáticas e exportadores de petróleo e
commodities, perseguirem o crescimento económico conduzido pelas
exportações. Mas talvez, mais importante, os défices
americanos em conta corrente representam gastos em excesso do rendimento que
deve ser financiado pela tomada de empréstimos do resto do mundo. Os
défices americanos portanto criam activos para o resto do mundo.
Os bancos centrais das economias asiáticas e os exportadores de
petróleo tornaram-se os maiores financiadores dos défice em conta
corrente dos EUA. De 1996 a 2006, o total de reservas em divisas estrangeiras
de países de baixo e médio rendimento escalou de 527 mil
milhões de dólares para 2,7 milhões de milhões de
dólares e sua participação no PIB mundial mais do que
triplicou: de 1,7 por cento para 5,6 por cento. A ascensão de reservas
de divisas estrangeiras reduziu o risco de fugas de capital maciças e
crises financeiras, permitindo a estes países terem algum espaço
para prosseguirem políticas macroeconómicas expansionistas. A
China, em particular, desempenhou um papel crucial no financiamento dos
défices em conta corrente americanos e acumulou as maiores reservas de
divisas estrangeiros actualmente montando a cerca de 1,6 milhão de
milhões de dólares.
O gráfico 1 apresenta as taxas de crescimento económico mundial
de 1961 a 2006, com o PIB mundial medido em US dólares constantes de
2000. Na "era dourada" da década de 1960, a economia global
expandiu-se rapidamente com taxas de crescimento anual a flutuarem entre 4 e 7
por cento. A partir da década de 1970, a economia global tem estado a
lutar com crescimento vagaroso com taxas a flutuarem sobretudo entre 2 e 4 por
cento. Durante quatro períodos, 1974-75, 1980-82, 1991-93 e 2001-02, a
economia global esteve em crises profundas (embora não haja
definição oficial, considera-se geralmente que a economia global
está em recessão quando a taxa de crescimento económico do
mundo cai abaixo dos 2,5 por cento ao ano). A partir de 2003, a economia
global tem desfrutado de uma certa estabilidade relativa e cresceu a cerca de 4
por cento ao ano. Contudo, com a economia do EUA a entrar agora em
recessão, esta estabilidade relativa de vida curta está prestes a
chegar ao fim.
A expansão económica dos EUA desde 2001
A Tabela 1 apresenta indicadores económicos seleccionados da economia
dos EUA. A sua recuperação económica após a
recessão de 2001 foi muito fraca. Desde então, a taxa de
crescimento médio anual tem sido de apenas 2,4 por cento, a ser
comparada com os 4 por cento na década de 1960 e os 3,3 por cento nas de
1980 e 1990. Tanto o emprego como os salários reais dos trabalhadores
tem estado estagnados. Medido em dólares de 1982, o salário real
horário médio dos trabalhadores do sector privado dos EUA em 2006
era de 8,2 dólares, cerca de 80 por cento mais baixo do que em 1972. A
partir de 2000, o rendimento familiar mediano tem estado em queda.
Contudo, os lucros corporativos tem escalado. Os lucros corporativos em
proporção do PIB aumentaram de 5,8 por cento em 2001 para 9,8 por
cento em 2006. O preço das acções em
relação aos rácios de rendimentos permanece excessivamente
elevado, sugerindo que a bolha do mercado de acções ainda
não foi plenamente desinchada. O boom do mercado de
acções no fim da década de 1990 conduziu ao
sobre-investimente generalizado. No principio dos anos 2000, as taxas de
utilização da capacidade industrial estavam nos mais baixos em
todas as décadas do período pós Segunda Guerra Mundial.
Com excesso de capacidade de produção substancial, o investimento
privado tem sido lento apesar da melhoria dramática na lucratividade
corporativa.
O crescimento económico estado-unidense desde 2001 tem sido conduzido
pela expansão do consumo familiar, o qual agora representa mais de 70
por cento do PIB. Como a maioria das famílias sofre de rendimento em
queda ou estagnados, a expansão do consumo foi financiada pelo
crescimento explosivo da dívida habitacional. A dívida
habitacional dos EUA ascendeu de cerca de 90 por cento do rendimento pessoal
disponível para 103 por cento em 2000, e para 140 por cento em 2006. Em
2007, os serviços de dívida habitacional (juros e pagamentos do
principal em dívida) ascenderam para 14 por cento do rendimento
disponível, o mais alto já registado. Nesse meio tempo, a taxa
de poupança familiar (o rácio da poupança familiar em
relação ao rendimento disponível) caiu da média
histórica de aproximadamente 10 por cento para, agora, virtualmente zero.
O consumo financiado pela dívida era claramente insustentável.
Nem a dívida das famílias nem o fardo do serviço da
dívida podiam subir indefinidamente em relação ao
rendimento familiar. Com a explosão da bolha habitacional, as
famílias terão de aumentar as suas taxas de poupança e
reduzir seu fardo de dívida. Se a taxa de poupança familiar
retornassem ao seu nível médio histórico, isto conduziria
a uma enorme redução dos gastos familiares. Com a maioria dos
lares estado-unidenses a sofrerem de rendimentos reais em queda ou em
estagnação, é difícil ver como o consumo possa
crescer rapidamente nos próximos anos. Se o consumo estagna,
então, dado o peso esmagador do consumo na economia estado-unidense,
é altamente provável que caiu numa recessão profunda
seguida por uma estagnação persistente.
Será que o Federal Reserve será capaz de vir em resgate e criar
mais uma bolha maciça de activos? Aterrorizado pela
perturbação dos mercados globais de acções, o
Federal Reserve já cortou drasticamente nas taxas de juro. Contudo, com
o mercado de acções e o mercado habitacional bastante
super-valorizados, é difícil que alguém possa identificar
uma outra grande bolha de activos a criar. Além disso, com o
nível de endividamento familiar tão elevado e a taxa de
poupança familiar já tão baixa, taxas de juro baixas pouco
podem fazer para estimular o consumo familiar.
Mais realisticamente, com o consumo familiar a estagnar ou contrair-se, o
governo dos EUA podia tentar compensar a desvantagem com mais gastos
públicos e um aumento no défice fiscal. Se as taxas de
poupança familiares ascendessem em direcção à sua
média histórica, então Washington terá de incorrer
num défice fiscal muito grande, da ordem dos 6 por cento do PIB ou mais.
Dado o actual ambiente político nos Estados Unidos, é duvidoso
que uma política fiscal efectiva de uma magnitude suficientemente grande
possa ser desenvolvida e executada.
Se a actual ou, mais provavelmente, a próxima
administração atrever-se a utilizar políticas
expansionistas muito agressivas para revitalizar a economia, então os
Estados Unidos provavelmente continuarão a incorrer em défices em
conta corrente muito grandes. Com um défice em conta corrente de 6 por
cento do PIB, teoricamente, a dívida externa líquida dos EUA
podia continuar a ascender para 120 por cento do PIB.
[1]
Isto seria claramente impossível. Muito antes de este limite
teórico ser atingido, tornar-se-ia cada vez mais difícil para os
Estados Unidos financiarem seus défices em conta corrente. O actual
declínio relativamente ordenado do dólar transformar-se-ia num
crash. O dólar perderia seu status como divisa de reserva principal do
mundo e os Estados Unidos experimentariam a sua própria terapia de
choque.
De um modo ou de outro, os Estados Unidos não serão capazes de
incorrer em grandes e crescentes défices em conta corrente durante muito
mais tempo. Dado o papel crucial dos défices em conta correntes
estado-unidenses na estabilização da economia capitalista global,
se a economia dos EUA cair em estagnação persistente e o seu
défice em conta corrente tiver de ser corrigido, levanta-se a
questão: Qual das outras grandes economias pode substituir os Estados
Unidos para conduzir a expansão da economia capitalista global?
A China e o capitalismo global
O gráfico 2 compara a contribuição para o crescimento
económico mundial da grandes economias do mundo (medidas pelo
rácio entre o crescimento económico nacional e o crescimento
económico global). A contribuição dos EUA caiu de cerca
de 40 por cento no fim da década de 1990 para aproximadamente 30 por
cento hoje, e a contribuição da Eurozona caiu de cerca de 20 por
cento para cerca de 10 por cento. Em comparação, a
contribuição da China ascendeu para cerca de 15 por cento e o
grupo "BRIC" (Brasil, Rússia, Índia e China em
conjunto) agora gera mais de 20 opor cento do crescimento económico do
mundo.
Como à Eurozona falta impulso de crescimento e o Brasil, Rússia e
Índia permanecem relativamente pequenos para desempenhar papeis
decisivos na economia global, a China parece ser o único candidato
plausível para substituir os Estados Unidos e tornar-se a principal
força condutora da economia capitalista global. Poderá a China
conduzir o capitalismo global a um outro período de estabilidade e
crescimento rápido?
Após o famoso "Passeio ao Sul" de Deng Xiaoping, em 1992, a
liderança do Partido Comunista Chinês ficou oficialmente
comprometida com o objectivo de uma "economia socialista de mercado",
a qual, no contexto chinês, não é senão um eufemismo
para capitalismo. Na década de 1990, a maior parte do Estado e das
empresas possuídas colectivamente na China foram privatizadas. Dezenas
de milhões de trabalhadores do Estado e do sector colectivo foram
despedidos. Os trabalhadores remanescentes do sector estatal perderam os seus
direitos socialistas tradicionais simbolizado pelo iron rice bowl
(um pacote de direitos económicos e sociais que incluía
segurança de emprego, cuidados médicos, infantários,
pensões e habitação subsidiada) e foram reduzidos a
trabalhadores assalariados explorados por capitalistas internos e estrangeiros.
Nas áreas rurais, com o desmantelamento das comunas populares, os
sistemas públicos de cuidados médicos e de educação
entraram em colapso. Mais de uma centena de milhão tornaram-se
trabalhadores migrantes, formando o maior exército de reserva do mundo
de trabalho barato.
A Tabela 2 compara a taxa salarial dos trabalhadores chineses com taxas
salariais em países seleccionados. Uma taxa salarial de trabalhador
médio na China é cerca de um vigésimo daquela nos Estados
Unidos, um sexto daquela na Coreia do Sul, um quarto daquela na Europa do Leste
e a metade daquela no México ou no Brasil. A taxa salarial média
chinesa agora parece ser mais alta do que aquela em países vizinhos do
Sudeste Asiático. Mas a taxa salarial média chinesa pode estar
superestimada pois as estatísticas oficiais de salários cobrem
apenas os trabalhadores no sector urbano formal e não incluem os
trabalhadores migrantes.
Uma força de trabalho grande, produtiva e barata permite aos
capitalistas chineses e aos capitalistas estrangeiros na China lucrarem com a
exploração intensa e maciça. Contudo, isto levanta a
questão de como o montante maciço de valor excedente
(surplus value)
produzido pelos trabalhadores chineses pode ser realizada através da
"procura efectiva". Com a maioria dos trabalhadores e camponeses
chineses pesadamente explorados, o consumo de massa tem estado a crescer, na
melhor das hipóteses, a um ritmo mais vagaroso do que a economia em
geral. Como o consumo de massa fica para trás, a economia chinesa tem
dependido cada vez mais do investimento e de exportações para
guiar a expansão da procura.
A Tabela 3 apresenta indicadores seleccionados da economia chinesa.
O rendimento do trabalho (a soma dos rendimentos salariais dos residentes
urbanos e dos rendimentos líquidos dos camponeses) em
proporção do PIB da China caiu de 51-52 por cento na
década de 1980 para 38 por cento no princípio dos anos 2000.
Analogamente, o consumo familiar em proporção do PIB caiu de
50-52 por cento na década de 1980 para 41 por cento no princípio
dos anos 2000. Em contraste, a proporção de investimento no PIB
ascendeu mais de 40 por cento e a proporção das
exportações cresceu mais de 30 por cento.
As exportações líquidas já davam uma
contribuição significativa para o crescimento económico da
China no fim da década de 1990 e princípio da de 2000. Desde
então, o excedente comercial da China experimentou um crescimento
explosivo. Em 2007, a China tinha um enorme excedente em conta corrente de
US$378 mil milhões, ou 12 por cento do PIB da China. Dentro de poucos
anos, espera-se que a China ultrapasse a Alemanha e se torne o maior exportador
do mundo.
Por quanto tempo poderá o actual modelo de crescimento da China ser
sustentado? Os Estados Unidos representam cerca de 20 por cento do mercado
exportação geral da China. Em 2007, a União Europeia como
um todo (incluindo a Eurozona, o Reino Unido e os novos Estados membros da
Europa do Leste) realmente substituíram os Estados Unidos e tornaram-se
o maior mercado único de exportações da China. Contudo,
para a China incorrer em grandes excedentes em conta corrente, algumas outras
economias tem de incorrer em grandes défices em conta corrente. A
balança de transacções correntes geral da Europa tem
estado num equilíbrio grosseiro. De uma perspectiva global, os
excedentes em conta corrente da China tem sido inteiramente absorvidos pelos
défices estado-unidenses em conta corrente. Se os Estados Unidos
não incorrerem mais em grandes defíces corrente, então, a
menos que a Europa comece a incorrer em grandes défices, será
muito difícil para China sustentar seus grandes excedentes comerciais.
O nível de investimento excessivamente elevado da China resulta numa
procura maciça de energia e matérias-primas. Em 2006 a China
consumiu um terço do aço mundial e um quarto do alumínio e
do cobre mundial. O consumo de petróleo da China foi de 7 por cento do
total mundial, mas a partir 2000 a China tem representado um terço da
procura de petróleo incremental total do mundo. A procura maciça
da China foi um factor importante por trás da escalada dos custos
globais de energia e matérias-primas. Entre Janeiro de 2003 e Janeiro
de 2008, o índice mundial dos preços da energia no mundo ascendeu
170 por cento e o índice mundial dos preços de metais ascendeu
180 por cento.
[2]
Se o nível actual de investimento for sustentado por mais alguns anos,
isto deixaria a China com um maciço excesso de capacidade de
produção que é muito maior do que o necessário para
atender a procura final no mercado mundial e muito maior do que pode ser
suportado pela oferta mundial de energia e matérias-primas. A China
seria então ameaçada com uma grande crise económica. Para
a economia chinesa ser reestruturada numa base mais
"sustentável" (do ponto de vista da sustentabilidade da
acumulação capitalista), a economia chinesa tem de ser
reorientada em direcção à procura interna e ao consumo.
Como o investimento e as exportações líquidas da China
têm estado a crescer mais rapidamente do que a economia global, a fatia
combinada do consumo familiar e do governo agora representa pelo menos 50 por
cento do PIB. Se o investimento retornasse para níveis mais
sustentáveis (cerca de 30-35 por cento do PIB) e o excedente comercial
se tornasse mais pequeno (0-5 por cento do PIB), então a fatia conjunta
do consumo familiar e do governo precisaria ascender mais do que 15 pontos
percentuais, para 65 por cento do PIB. Mas para o consumo crescer, o
rendimentos dos trabalhadores e camponeses e o gasto social do governo
têm de crescer em conformidade. A Tabela 3 mostra a estreita
correlação entre rendimento do trabalho e consumo familiar.
Daí decorre que deve haver uma maciça
redistribuição do rendimento dos capitalistas para o trabalho e
os gastos sociais numa quantia equivalente a cerca de 15 por cento do PIB.
Será que a classe capitalista chinesa será suficientemente
esclarecida para empreender uma tal reestruturação
económica e social? Suponha-se que a liderança do Partido
Comunista Chinês tenha vistas suficientemente largas para entender que,
para a segurança dos interesses a longo prazo do capitalismo
chinês, seja necessário efectuar algumas concessões aos
trabalhadores e camponeses chineses. Será que o partido terá a
vontade necessária e o meios para impor uma tal
redistribuição às corporações
transnacionais, aos ricos capitalistas chineses (muitos dos quais têm
íntimas ligações dentro do partido e do governo), e aos
governos provinciais e locais que nos últimos anos desenvolveram
várias alianças com os capitalistas internos e estrangeiros?
Estas são algumas perguntas difíceis para as elites capitalistas
chinesas.
O Pico Petrolífero e os limites da acumulação
Suponha-se que a classe capitalista chinesa tenha a necessária
clarividência e vontade para efectuar uma reestruturação
keynesiana, estilo social-democrata. Será que uma tal
reestruturação conduzirá o capitalismo chinês a um
caminho de crescimento sustentável e rápido, e será que a
expansão da economia chinesa conduzirá por sua vez a economia
capitalista global a uma outra "era dourada"?
A Tabela 3 mostra o crescimento do consumo de energia na China. A partir de
2000 ele acelerou-se muito. Representa agora 15 por cento do total mundial e
equivale a 70 por cento do consumo de energia dos EUA. À taxa de
crescimento actual, o consumo de energia da China duplicará em sete anos
e a China dentro em breve ultrapassará os Estados Unidos e
tornar-se-á o maior consumidor de energia do mundo. A China depende do
carvão para cerca de70 por cento do seu consumo energético total
e o consumo de carvão do país também está a crescer
a uma taxa que indica uma duplicação em sete anos. O consumo de
petróleo da China (já representando um terço da procura
incremental do petróleo mundial) está a crescer a uma taxa que
implica uma duplicação em nove anos. Por outras palavras, em
cerca de uma década, se a tendência actual se mantiver, a China
consumirá uma vez e meia tanta energia quanto os Estados Unidos consomem
hoje. Será que a oferta mundial de energia se manterá ao ritmo
da procura em crescimento rápido da China enquanto atende à
procura do resto do mundo?
A economia capitalista global depende de combustíveis fósseis
(petróleo, gás natural e carvão) em 80 por cento da oferta
mundial de energia. O petróleo representa um terço da oferta
total de energia e 90 por cento da energia utilizada no sector dos transportes.
O petróleo é também um input essencial para a
produção de fertilizantes, plásticos, remédios
modernos e outros produtos químicos.
O petróleo é um recurso renovável. Num estudo recente, o
Energy Watch Group alemão destaca que as descobertas mundiais de
petróleo atingiram o pico na década de 1960, a
produção de petróleo já atingiu o pico em 25
grandes países ou regiões produtoras, e apenas nove países
ou regiões ainda têm potencial de crescimento. Todas as grandes
companhias de petróleo internacionais estão a lutar para impedir
o declínio da sua produção de petróleo.
[3]
Colin Campbell, da Association for the Study of Peak Oil and Gas estima que a
produção mundial de todos os líquidos (inclui
petróleo bruto, areias asfálticas, xistos betuminosos,
líquidos de gás natural, processos gas-to-liquids e
coal-to-liquids, e biocombustíveis) provavelmente atingirá o pico
cerca de 2010. Após o pico, a produção mundial de
petróleo cairá cerca de 25 por cento no ano 2020 e cerca de dois
terços em 2050. Campbell também estima que a
produção mundial de gás natural atingirá o pico em
2045. Num estudo anterior, o Energy Watch Group alemão espera que a
produção mundial de carvão atinja o pico em 2025.
[4]
A energia nuclear e muitas fontes de energia renovável (tais como solar
e vento), além das suas muitas outras limitações,
não pode ser utilizada para fabricar combustíveis líquidos
e gasosos ou servir como matéria-prima em indústrias
químicas. A biomassa é a única fonte de energia
renovável que pode ser utilizada como substituto para
combustíveis fósseis na fabricação de
combustíveis líquidos ou gasosos. Mas a produção
em grande escala de biomassa poderia conduzir a problemas ambientais muito
sérios, e o potencial de biomassa está limitada pela quantidade
disponível de terra produtiva e água. Ted Trainer, um
eco-socialista australiano, estima que atender a actual procura estado-unidense
de petróleo e gás exigiria o equivalente a nove vezes de todas as
terras agriculturáveis dos EUA ou que oito vezes toda a terra
actualmente florestada dos EUA fosse plenamente dedicada à
produção de biomassa. Trainer conclui que "não
há possibilidade de que mais do que um fracção muito
pequena da procura de combustíveis líquidos e gasosos possa ser
atendida por fontes de biomassa".
[5]
Se a produção mundial de petróleo e a
produção de outros combustíveis fósseis
alcançar seu pico e começar a declinar nos próximos anos,
então a economia capitalista global enfrentará uma crise sem
precedentes que será difícil ultrapassar.
O esgotamento rápido de combustíveis fósseis é
apenas um entre muitos problemas ambientais sérios com que o mundo hoje
se confronta. O sistema económico capitalista está baseado na
produção para o lucro e a acumulação de capital.
Numa economia capitalista global, a competição entre capitalistas
individuais, corporações e Estados capitalistas força cada
um deles, constantemente, a perseguir a acumulação de capital em
escalas cada vez maiores.
Portanto, sob o capitalismo, há uma tendência para a
produção material e o consumo expandirem-se incessantemente.
Após séculos de acumulação implacável, os
recursos não renováveis do mundo estão a ser esgotados
rapidamente e o sistema ecológico da terra está agora à
beira do colapso. A sobrevivência da civilização humana
está em risco.
[6]
Alguns argumentam que, devido ao progresso tecnológico, os países
capitalistas avançados tornaram-se "desmaterializados"
(diminuindo a quantidade de materiais e energia por unidade de
produção) pois o crescimento económico repousa mais sobre
serviços do que sobre o sector industrial tradicional, o que tornaria o
crescimento económico menos prejudicial ao ambiente. De facto, muitos
dos modernos sectores de serviços (tais como transportes e
telecomunicações) são altamente intensivos em energia e
recursos.
Apesar de tais afirmações respeitantes à
desmaterialização, os países capitalistas avançados
são ecologicamente muito mais desperdiçadores do que a periferia,
com consumo per capita de energia e recursos e uma pegada ecológica
(ecological fooprint)
de longe mais alta do que a média mundial. Segundo o Living Planet
Report, a América do Norte tem uma pegada ecológica per capita de
9,4 hectares globais, mais do que quatro vezes a média mundial (2,2
hectares globais). A União Europeia, supostamente amiga do ambiente,
tem uma pegada ecológica de 4,8 hectares globais, ou seja, mais do que o
dobro da média mundial. Cuba, o único país que permanece
comprometido com objectivos socialistas entre os Estados socialistas
históricos, é o único país que alcançou um
alto nível de desenvolvimento humano (com um índice de
desenvolvimento humano superior a 0,8) ao mesmo tempo que tem uma pegada
ecológica per capita menor do que a média mundial.
[7]
A apregoada desmaterialização das economias capitalistas
avançadas, no sentido mais vasto e mais significativo do declínio
do impacto ambiental global, são de facto refutadas pelo Paradoxo de
Jevons, o qual diz que a eficiência acrescida na aportação
de energia e materiais normalmente conduz a um aumento na escala de
operações, e através disso a uma ampliação
da pegada ecológica geral. Isto tem sido um padrão normal
através da história do capitalismo.
[8]
Além disso, parte do que é mencionado como
desmaterialização decorre da relocalização do
capital industrial dos países capitalistas avançados para a
periferia em busca de trabalho barato e baixos padrões ambientais. A
ascensão dramática do capitalismo chinês resultou
parcialmente desta relocalização capitalista global. Embora os
países capitalistas avançados possam ter-se tornado ligeiramente
"desmaterializados" neste sentido, os capitalistas e as chamadas
classes média na China, Índia e Rússia, e grande parte da
periferia, estão a emular e reproduzir o estilo de vida
"consumista" capitalista que é muito desperdiçador numa
escala maciçamente ampliada. O capitalismo global como um todo continua
a mover-se implacavelmente rumo à catástrofe ambiental global.
A morte do neoliberalismo e a era de transição
Em 1 de Fevereiro, Immanuel Wallertein, o principal teórico do sistema
mundial, nos seus comentários bisemanais declarou o ano 2008 como o ano
da "Morte da globalização neoliberal". Wallerstein
começa por destacar que, ao longo da história do sistema-mundo
capitalista, as ideias de capitalismo de mercado livre com
intervenção governamental mínima e as ideias de
capitalismo regulado pelo estado com alguma protecção social
estiveram na moeda em ciclos alternados.
Em resposta à estagnação do lucros à escala mundial
na década de 1970, o neoliberalismo tornou-se politicamente dominante
nos países capitalistas avançados, na periferia e, finalmente, no
antigo bloco socialista. Contudo, o neoliberalismo fracassou no cumprimento da
sua promessa de crescimento económico, e quando as desigualdades globais
aumentaram, grande parte da população mundial sofreu
declínios nos rendimentos reais. Após meados dos anos 1990, o
neoliberalismo deparou-se com resistência crescente por todo o mundo e
muito governos tem estado sob pressão para restaurar alguma
regulação estatal e protecção social.
Confrontada com a crise económica, a administração Bush
perseguiu em simultâneo uma nova ampliação das
desigualdades internamente e o imperialismo unilateral no exterior. Estas
políticas por agora fracassaram decisamente. Quando os Estados Unidos
já não podem financiar sua economia e suas aventuras
imperialistas com dívida externa cada vez maior, o US dólar,
acredita Wallerstein, enfrenta a perspectiva de uma queda livre e
deixará de ser a divisa de reserva do mundo.
Wallerstein conclui: "O desequilíbrio político está
a balouçar para trás... A questão real não
é se esta fase está ultrapassada mas se o balouço de volta
será capaz, como no passado, de restaurar um estado de equilíbrio
relativo no sistema-mundo. Ou foi efectuado demasiado dano? E estaremos
nós agora incapazes de evitar o caos mais violento na economia-mundo e
portanto no sistema-mundo como um todo?"
[9]
Seguindo os argumentos de Wallerstein, nos próximos anos iremos
provavelmente testemunhar um grande realinhamento da política global e
das forças económicas. Haverá uma
intensificação na luta de classe global acerca da
direcção da transformação social global. Se
estivermos num dos ciclos do sistema-mundo capitalista, portanto rumo ao fim do
actual período de instabilidade e crise, provavelmente observaremos um
retorno ao domínio keynesiano ou politicas capitalistas de Estado
capitalistas por todo o mundo.
Contudo, foi feito demasiado dano. Após séculos de
acumulação capitalista global, o ambiente global está
à beira do colapso e não há mais espaço
ecológico para uma outra grande expansão do capitalismo global.
A escolha é nítida ou a humanidade permitirá que o
capitalismo destrua o ambiente e portanto a base material da
civilização humana, ou destruirá o capitalismo primeiro.
A luta pela sustentabilidade ecológica devem somar forças com as
lutas dos oprimidos e explorados para reconstruir a economia global na base da
produção para as necessidades humanos de acordo com
princípios democráticos e socialistas.
Neste sentido, entrámos numa nova era de transição. No
fim desta transição, de um modo ou de outro, estaremos num mundo
fundamentalmente diferente e cabe a nós decidir que espécie de
mundo virá a ser.
Notas
1. A dívida externa líquida equivale à soma acumulada
dos défices de transacções correntes. Se assumirmos que o
défice de transacções correntes dos EUA permanece em 6 por
cento do PIB, a taxa de crescimento do PIB nominal americano continuar em 5 por
cento ao ano, e que não há mudança na taxa de
câmbio, então teoricamente o rácio da dívida externa
líquida americana em relação ao PIB manter-se-á
ascendendo até 120 por cento.
2. Martin Wolf, China Changes the Whole World,
Financial Times
,
January 23, 2008.
3. The Germany Energy Watch Group, Crude OilThe Supply
Outlook, EWG-Series no. 3 (October 2007),
http://www.energywatchgroup.org
.
4. The Association for the Study of Peak Oil and Gas, Newsletter No. 86
(February 2008); The Germany Energy Watch Group, Coal: Resources and
Future Production, EWG-Series No. 1 (March 2007),
http://www.energywatchgroup.org
.
5. Ted Trainer, Renewable Energy Cannot Sustain A Consumer Society
(Dordrecht, Netherlands: Springer, 2007), 7392.
6. Sobre o potencial de destruição da acumulação
capitalista sobre o ambiente global, ver John Bellamy Foster, The Ecology
of Destruction, Monthly Review 58, no. 8 (February 2008): 114.
7. World Wildlife Fund, Zoological Society of London, and Global Footprint
Network, Living Planet Report (2006),
http://www.panda.org/downloads/living_planet_report.pdf
.
8. John Bellamy Foster, Ecology Against Capitalism (New York: Monthly Review
Press, 2002), 9495.
9. Immanuel Wallerstein, 2008: The Demise of Neoliberal
Globalization, Commentary no. 226 (February 1, 2008),
http://www.binghamton.edu/fbc/226en.htm
.
[*]
Ensina teoria económica na Universidade de Utah, em Salt Lake
City.
O original encontra-se em
http://monthlyreview.org/080401li.php
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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