Demasiado ocupados a manipularem a sua dignidade

por John Pilger

Victor Jara. Victor Jara, o grande cantor de baladas chileno que 33 anos atrás foi torturado até à morte pelo regime do general Pinochet, escreveu uma canção em que ridiculariza aqueles que se vêem a si próprios como racionais e liberais, ainda que muitas vezes abriguem-se nos braços da autoridades, pouco se importando com a sua desonestidade e brutalidade para com os outros. Ele cantou:

Chegue-se mais para cá
Aqui onde aquece o sol
Se já está habituado
A andar às cambalhotas
E não lhe fará mal nenhum
estar onde a vida é fogo.

Você não é nada
Nem carne nem peixe
Passa a vida manipulando
A sua própria dignidade. [1]

As últimas poucas semanas assistiram a uma fiesta destas pessoas racionais e liberais que dominam a corrente principal da política britânica. Para elas, as formas mais básicas de moralidade e vergonha, da espécie que se aprende em criança, não têm lugar na vida pública. Em 27 de Setembro o Guardian publicou na primeira página uma fotografia de Tony Blair, um criminoso de guerra prima facie, com os braços esticados e o sorriso fixado. Além disso havia um título: "Encanto e eloquência. Mas uma oportunidade falhada". Abaixo disto, Polly Toynbee escrevia: "Havia alguns olhos húmidos tocados com lenços e homens a assoarem narizes. 'Não se vá', disse alguém".

Considere tais vómitos em relação aos factos do crime real de Blair — a invasão não provocada de um país indefeso, justificada por mentiras agora volumosamente documentadas, e provocando as mortes violentas de dezenas de milhares de homens, mulheres e crianças inocentes. A palavra "crime" é verboten (proibida) entre aqueles acerca de quem Victor Jara cantou. Explicar claramente a verdade iluminaria a colusão de toda uma classe política. Ao invés disso, os descarados tribunos nem-carne-nem-peixe falam e escrevem incessantemente de um "erro", de um "disparate", mesmo de uma tragédia shakespereana (para o criminoso de guerra, não para as suas vítimas). A partir dos seus estúdios e gabinetes editoriais, eles declaram as mentirosas e desonestas banalidades do seu "brilhante" imperador nu. A Al-Qaeda, disse Blair no seu discurso na conferência do Partido Trabalhista, "matou 3000 pessoas incluindo mais de 60 britânicos nas ruas de Nova York antes mesmo de a guerra no Afeganistão ou no Iraque ser pensada". Fica-se sem fôlego com esta declaração. Meio milhão de crianças jazem mortas, segundo a UNICEF, devido ao sítio anglo-americano durante a década de 1990. Para Blair e a sua corte racional, liberal, nem-carne-nem-peixe, estas crianças nunca viveram e nunca morreram. Claramente, o Imperador Tony foi um líder do seu tempo e, acima de tudo, adequado para ser membro do clube, quaisquer que possam ser os "erros" que tenha cometido no Iraque.

Um mundo paralelo de verdades e mentiras, moralidade e imoralidade, domina quando o crime no Iraque nos é apresentado. Nos últimos meses os invasores desvaneceram-se. Os EUA, tendo assassinado, bombardeado com armas de estilhaçamento, napalm e fósforo, tornaram-se agora um sábio árbitro, até mesmo um protector, de "tribos guerreiras". A palavra-chave é "sectarismo", apagando a verdade de que a maior parte dos ataques da resistência é contra os ocupantes militares estrangeiros: em média, um a cada 15 minutos. O facto de que a maioria dos iraquianos, sunitas e xiitas, estão unidos na sua exigência de que as forças americanas e britânicas saiam do seu país já é de nenhum interesse. Nunca o jornalismo foi tão voluntariamente apropriado pela propaganda negra.

A confiança do regime Blair de que com esta propaganda será visto como correcto (se não reeleito) exprime-se de modos gritantes. Jack Straw, o exemplo acabado do nem-peixe-nem-carne, que apoiou um ataque de corsários a um país muçulmano, agora dirige as suas observações liberais e racionais à mais vulnerável comunidade da Grã-Bretanha, plenamente consciente de que o sentido racista implícito das suas palavras será entendido na "Inglaterra Média" e mais uma vez esperançoso quanto ao resto da sua carreira desprezível. Foi Straw que deixou Pinochet escapar à justiça devido a razões fraudulentas de saúde mental. A canção de Victor Jara é uma ode a Straw, e ao autoritário, duplamente "aposentado" David Blunkett, agora elevado pelo Guardian à categoria de "um dos políticos mais brilhantes e naturais", numa missão para assegurar que uma forma mais elevada de corrupção e assassínio em massa não ofusque "a herança de Tony".

David Carneron, o antigo homem de relações públicas do predador de empresas (asset-stripper) Michael Green, seguirá esta herança caso se torne primeiro-ministro. De pé, à beira-mar em Bournemouth, com a sua família, incluindo três crianças, ele enfatizou o seu apoio ao crime contra o povo iraquiano, cujas crianças, afirma a UNICEF, agora sob Blair e Bush estão a morrer mais rapidamente do que sob Saddam Hussein.

16/Outubro/2006

[1] Em "Ni chicha ni limona" ("Nem assim nem assado"). É uma canção sarcástica para com as posições dúbias dos democrata-cristãos antes do golpe de 1973.

O original encontra-se em http://www.newstatesman.com/200610160028

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
18/Out/06