A liberdade morre em silêncio

por John Pilger

Pode isto estar a acontecer na Grã-Bretanha?, perguntam as pessoas. Certamente não. Um sistema democrático secular não pode ser varrido. Os direitos humanos básicos não podem ser tornados abstractos. Aqueles que outrora reconfortavam-se dizendo que um governo trabalhista nunca cometeria um crime tão gigantesco no Iraque podem agora abandonar a última ilusão, a de que a sua liberdade é inviolável.

A agonia da liberdade na Grã-Bretanha não é notícia. As piruetas do primeiro-ministro e do seu gémeo político, o chanceler, são notícia, embora de mínimo interesse público. Olhando atrás, para a década de 1930, quando as sociais democracias estavam distraídas e poderosas clique impunham seus caminhos totalitários através da discrição e do silêncio, a advertência é clara. O Legislative and Regulatory Reform Bill já passou pela sua segunda leitura parlamentar sem que despertasse o interesse da maior parte dos deputados trabalhistas nem dos jornalistas da corte, ainda que seja absolutamente totalitário no seu objectivo.

Esta lei é apresentada pelo governo como uma simples medida para simplificar a desregulamentação, ou para "livrar-se da burocracia", ainda que a única burocracia que ela realmente moverá é aquela do exame parlamentar da legislação do governo, incluindo esta notável lei. Isto significará que o governo pode mudar secretamente o Parliament Act, e a constituição e as leis podem ser derrubadas por decreto da Downing Street. Blair demonstrou o gosto pelo poder absoluto com o seu abuso da prerrogativa real, a qual utilizou para ultrapassar o parlamento indo à guerra e libertando-se dos marcos dos julgamentos dos tribunais superiores, tal como aquele que declarou ilegal a expulsão de toda a população das Ilhas Chagos, agora sítio de uma base militar americana. A nova lei marca o fim da verdadeira democracia parlamentar. Nos seus efeitos, isto é tão significativo como o Congresso dos EUA abandonar no ano passado a Bill of Rights.

Aqueles que deixam de ouvir estes passos no caminho para a ditadura deveriam olhar para os planos do governo quanto a bilhetes de identidade (ID cards), descritos no seu manifesto como "voluntários". Eles serão obrigatórios e ainda piores. Um bilhete de identidade será diferente de uma licença de condução ou de um passaporte. Será conectado a uma base de dados chamada NIR (National Identity Register), onde seus pormenores pessoais serão armazenados. Isto incluirá suas impressões digitais, um rastreamento (scan) da sua íris, sua residência, status e inúmeros outros pormenores acerca da sua vida. Se você deixar de comparecer a uma entrevista a fim de ser fotografado e de lhe tirarem as impressões digitais poderá ser multado em mais de 2500 libras.

Todo lugar que vende álcool ou cigarros, toda agência de correios, toda farmácia e todo banco terá um terminal NIR onde poderão pedir-lhe para "provar quem é". Cada vez que você usar o cartão será efectuado um registo no NIR. Assim, por exemplo, o governo saberá todas as vezes que você retirou mais do que £99 da sua conta bancária. Restaurantes e estabelecimentos sem licença exigirão que o cartão seja apresentado de modo a que possam ser compensados de acções em tribunal. Os negócios privados terão pleno acesso ao NIR. Se você se candidatar a um emprego, o seu cartão terá de ser apresentado. Se quiser um passe do Metro de Londres, ou um cartão de lealdade a um supermercado, ou uma linha telefónica ou um telemóvel ou uma conta Internet, o seu ID card terá de ser exibido.

Por outras palavras, haverá um registo dos seus movimentos, suas chamadas telefónicas e hábitos de compra, até mesmo da espécie de medicamentos que toma. Estas bases de dados, que podem ser armazenados num dispositivo do tamanho de uma mão, serão vendidas a partes terceiras sem o seu conhecimento. O ID card não será sua propriedade e a Secretaria do Interior (Home Secretary) terá o direito de revogá-lo ou suspendê-lo a qualquer momento sem explicação. Isto o impediria de retirar dinheiro de um banco.

Os ID cards não travarão terroristas, como admitiu agora o secretário do Interior, Charles Clarke. Os bombistas de Madrid também usavam ID cards. Em 26 de Março o governo actuou para silenciar a oposição parlamentar aos cartões, anunciando que um comité investigaria banir a Casa dos Lordes de bloquear legislação contida num manifesto do partido. A clique de Blair não quer o debate. Tal como o fanático da Downing Street, sua "crença sincera" na sua própria veracidade é suficiente. Quando a London School of Economics publicou um longo estudo que demole efectivamente a justificação do governo para os cartões, Clarke insultou-a por alimentar uma "campanha de medo nos media".

Trata-se do mesmo ministro que comparecia a todas as reuniões do gabinete nas quais eram evidentes as mentiras de Blair sobre sua decisão de invadir o Iraque.

Este governo foi reeleito com o apoio de apenas um quinto dos votos elegíveis: a segunda proporção mais baixa desde a cidadania. Qualquer que seja a respeitabilidade que as famosas sequências em estúdios de televisão tentem dar-lhe, Blair está demonstravelmente desacreditado como mentiroso e criminoso de guerra.

Com a lei do sequestro constitucional agora a alcançar suas etapas finais, e a criminalização de protestos pacíficos, os ID cards são concebidos para controlar as vidas dos cidadãos comuns (assim como para enriquecer as novas companhias favorecidas pelo Labour que construirão os respectivos sistemas computacionais). Um grupo pequeno, determinado e profundamente anti-democrático está a matar a liberdade na Grã-Bretanha, assim como matou-a literalmente no Iraque. Esta é a notícia. "O caleidoscópio foi sacudido", disse Blair na conferência de 2001 do Partido Trabalhista. "As peças estão em movimento. Logo ficarão ajustadas outra vez. Antes que o façam, vamos reordenar este mundo em torno de nós".

17/Abril/2006

O original encontra-se em http://www.newstatesman.com/200604170017

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
19/Abr/06