O efeito Strangelove
Como somos levados a aceitar uma nova guerra mundial
Há poucos dias estive a rever o filme
Dr. Strangelove
[1]
. Já o assisti talvez uma dúzia de vezes; dá sentido a
notícias sem sentido. Quando o major T.J. 'King' Kong entra em conflito
com os russos e envia o bombardeiro nuclear B52 contra um alvo na
Rússia, quem tem que tranquilizar o Presidente é o general 'Buck'
Turgidson
[2]
. Ataque primeiro, diz o general, afinal "são apenas 10 a 20
milhões de mortos, no máximo"
Presidente Merkin Muffley: "Não vou ficar na história como o
maior assassino de massas desde Adolf Hitler".
General Turgidson: "Talvez fosse melhor, senhor Presidente, que se
preocupasse mais com o povo americano do que com a sua imagem nos livros de
história".
O génio do filme de Stanley Kubrick é que representa com rigor a
loucura e os perigos da guerra-fria. A maior parte dos personagens baseia-se em
pessoas reais e em maníacos reais. Não há hoje
ninguém equivalente a Strangelove, porque a cultura popular está
dirigida quase totalmente para as nossas vidas interiores, como se a identidade
seja o zeitgeist moral e a verdadeira sátira seja redundante; mas os
perigos são os mesmos. O relógio nuclear parou às cinco
para a meia-noite; as mesmas bandeiras falsas estão hasteadas sobre os
mesmos alvos pelo mesmo "governo invisível", como Edward
Bernays, o inventor das relações públicas, descreveu a
propaganda moderna.
Em 1964, o ano em que foi realizado
Strangelove,
"a diferença de mísseis" era a falsa bandeira. A fim
de construir mais armas nucleares, e maiores, e de prosseguir uma
polícia de domínio não declarado, o presidente John
Kennedy aprovou a propaganda da CIA de que a União Soviética
estava mais avançada do que os EUA na produção de
Mísseis Balísticos Intercontinentais. Isso encheu primeiras
páginas como a "ameaça russa". Na realidade, os
americanos estavam muito à frente na produção de ICBMs, os
russos nunca estiveram lá perto. A guerra-fria baseou-se largamente
nesta mentira.
Desde o colapso da União Soviética, os EUA têm cercado a
Rússia com bases militares, aviões nucleares e mísseis, ao
abrigo do "Projecto de Ampliação da NATO". Renegando
uma promessa dos EUA feita ao presidente soviético Mikhail Gorbachev em
1990 de que a NATO não avançaria "nem um centímetro
para Leste", a NATO entrou à grande na Europa de Leste. No antigo
Cáucaso soviético, a ocupação militar da NATO
é a mais ampla desde a segunda guerra mundial.
Em Fevereiro, os Estados Unidos montaram um dos seus golpes
"coloridos" contra o governo eleito da Ucrânia; as tropas de
choque eram fascistas. Pela primeira vez, desde 1945, um partido
pró-nazi, abertamente anti-semita controla áreas chave do poder
estatal numa capital europeia. Nenhum líder da Europa ocidental condenou
este renascimento do fascismo na fronteira com a Rússia. Morreram cerca
de 30 milhões de russos na invasão do seu país pelos nazis
de Hitler, que foram apoiados pelo Exército Insurgente Ucraniano, o UPA,
responsável por inúmeros massacres de judeus e polacos. O UPA era
a ala militar, que inspira o actual partido Svoboda.
Desde o golpe de Washington em Kiev e da reacção
inevitável de Moscovo na Crimeia russa, para proteger a sua Frota do Mar
Negro a provocação e o isolamento da Rússia
têm sido invertidos nos noticiários como uma "ameaça
russa". Isto é uma propaganda fossilizada. O general da
Força Aérea americana que chefia as forças da NATO na
Europa nada mais nada menos que o general Breedlove afirmou
há mais de duas semanas que tinha fotos que mostravam 40 mil tropas
russas a "concentrarem-se" na fronteira com a Ucrânia.
Também Colin Powell afirmou ter fotos de armas de
destruição maciça no Iraque. O que é certo é
que o golpe temerário e predatório de Obama na Ucrânia
desencadeou uma guerra civil e Vladimir Putin está a ser atraído
a uma armadilha.
Na sequência dos conflitos de 13 anos que começaram no
Afeganistão muito depois de Osama bin Laden ter fugido, de terem
destruído o Iraque sob uma falsa bandeira, depois de inventarem um
"inimigo nuclear" no Irão, de enviarem a Líbia para uma
anarquia hobbesiana e de apoiaram os jihadistas na Síria, os EUA
têm finalmente uma nova guerra fria para complementar a sua campanha
mundial de morte e terrorismo com aviões telecomandados.
Um Plano de Acção para Adesão à NATO (MAP)
directamente da sala de guerra de Strangelove é o presente do
general Breedlove à nova ditadura na Ucrânia. "Rapid
Trident"
[3]
vai instalar tropas americanas na fronteira com a Rússia e "Sea
Breeze"
[4]
vai colocar navios de guerra americanos à vista de portos russos.
Simultaneamente, os exercícios de guerra da NATO por toda a Europa de
Leste destinam-se a intimidar a Rússia. Imaginem qual seria a resposta
se esta loucura se invertesse e acontecesse nas fronteiras da América.
É ver o general 'Buck' Turgidson.
E ainda há a China. A 24 de Abril, o presidente Obama vai iniciar uma
visita à Ásia para promover a sua "Campanha para a
China". O objectivo é convencer os seus "aliados" na
região, em especial o Japão, a rearmarem-se e prepararem-se para
a eventual possibilidade de guerra com a China. Em 2020, quase dois
terços de todas as forças navais no mundo estarão
concentradas na área Ásia-Pacífico. É a maior
concentração militar naquela grande região desde a II
Guerra Mundial.
Num arco que se estende desde a Austrália até o Japão, a
China enfrentará os mísseis e os bombardeiros nucleares
americanos. Está a ser construída uma base naval
estratégica na ilha coreana de Jeju a menos de 640 km da
metrópole chinesa de Xangai, centro industrial do único
país cujo poder económico vai provavelmente ultrapassar o dos
EUA. A "campanha" de Obama destina-se a minar a influência da
China naquela região. É como se uma guerra mundial tivesse
começado por outros meios.
Isto não é uma fantasia Strangelove. O secretário da
Defesa de Obama, Charles 'Chuck' Hagel, esteve em Beijing na semana passada
para entregar um aviso ameaçador de que a China, tal como a
Rússia, pode vir a conhecer o isolamento e a guerra se não se
vergar às exigências dos EUA. Comparou a anexação da
Crimeia à complexa disputa territorial da China com o Japão sobre
as ilhas desabitadas no Mar da China Oriental. "Não podem ir pelo
mundo afora", disse Hagel descaradamente, "e violar a soberania das
nações pela força, coerção e
intimidação". Quanto ao movimento maciço de
forças navais e de armas nucleares da América para a Ásia,
isso é "um sinal da ajuda humanitária que as forças
armadas americanas podem proporcionar".
Obama está neste momento à procura de um orçamento para
armas nucleares, maior do que no pico histórico durante a guerra-fria, a
era de Strangelove. Os Estados Unidos estão a avançar na sua
antiga ambição de dominar o continente eurasiano, estendendo-se
da China à Europa: um "destino manifesto" assegurado pelo
poder.
Notas:
[1] Dr. Strangelove (Dr. Estranhoamor): filme de Stanley Kubrick realizado em 1964, uma
comédia de humor negro, que satirizou a tensão nuclear vivida
pelo mundo durante a guerra-fria. Considerado "a melhor sátira
política do século".
[2] A personagem Turgidson sabe como fazer a guerra, mas falta-lhe a
perspectiva de decidir se deve ou não fazer a guerra. Compreende a
política do Presidente contra ataques nucleares mas tem dúvidas
quando se lhe apresenta a possibilidade de anular essa política e varrer
do mapa a Rússia. Sente-se feliz em apresentar a ideia de desencadear o
ataque mais destrutivo contra um inimigo que não fez nada.
[3] Rapid Trident: exercício militar conjunto de 12 países na
Ucrânia, que deve iniciar-se em Julho, com a participação
dos EUA.
[4] Sea Breeze: exercícios militares anfíbios organizados
à escala multinacional (NATO), realizados anualmente na Ucrânia.
O original encontra-se no
Guardian
e em
johnpilger.com/...
. Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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