Não chorem por Kerry Packer
por John Pilger
Logo após o Natal, Kerry Packer, o magnata australiano dos media, morreu
na sua mansão com vista sobre o Porto de Sidney, guardado por grandes
cães salivantes. Na Grã-Bretanha ele foi recordado como o homem
que trouxe sensacionalismo e dinheiro para o cricket. Aqui, na
Austrália, a sua morte proporcionou um vislumbre das mudanças
impostas a sociedades que outrora orgulhavam-se de se chamarem democracias
sociais.
Louvado como "o homem mais rico da Austrália" que
"alcançou" uma classificação na lista de homens
ricos da revista
Forbes,
como se isto o pusesse ao lado de
Donald Bradman
e da Opera de Sidney, Packer excitava
um medo e servilismo que normalmente não é próprio dos
australianos. "Enterrado no seu amado país queimado de sol",
dizia a obsequiosa manchete na primeira página do
Sydney Morning Herald.
O
Sydney Sun-Herald
coroou isto com: "A compaixão prática de Packer, um modelo
para nós".
Packer era um homem pesado que perdia a sua têmpera um bocado, dizia
"foda-se" um bocado, jogava e perdia enorme quantias, admirava Gengis
Kan (sem ironia) e dominava através do poder absoluto do seu dinheiro
herdado, grande parte dele acumulado evitando legalmente pagar muitos
milhões de dólares de impostos o método
infalível empregado pelo seu principal competidor, Rupert Murdoch. Em
meados do século XIX a imprensa australiana era uma das mais vivas e
corajosas do mundo; hoje, dominada pelos impérios do marketing de
Murdoch, Packer e Fairfas, é pouco mais do que porta-voz de Canberra e
de Washington. O governo de John Howard vai conceder a Packer um
funeral de estado. "Kerry", disse o primeiro-ministro,
"era maior do que a vida". Foi Howard que, atacado de pneumonia, de
forma memorável saiu da cama para receber "Rupert" na sua
casa. Foi Howard que aceitou a distinção, concedida por uma
revista de Packer, de ser o "vice-sherife" de Bush. (Ao ser
perguntado acerca disto, Bush imediatamente promoveu-o a "sherife do
sudeste da Ásia").
O medo e a bajulação que Howard e o seus neoconservadores dos
antípodas promoveram desde a sua chegada ao poder, há quase uma
década, comprometeu a ténue auto-apreciação da
Austrália como "a terra das oportunidades". (A muito abusada
expressão "país feliz" era irónica, cunhada pelo
falecido Donald Home para designar um país de primeira classe governando
por pessoas de segunda classe:) Tal como a América de Bush, a
Austrália de Howard é não tanto uma democracia e sim uma
plutocracia, governada por e para os "grandes da cidade", embora,
como destacou Mark Twain, isto seja "um continente inteiro povoado pelas
regras mais baixas". Ele não era estranho para a minha
geração, tal como para aquela dos meus pais, nós
éramos os pobres que tiveram de partir. Havia um senso de que
havíamos herdado algo mais além da Union Flag. Muito antes do
resto do mundo ocidental, os australianos ganhavam um salário
mínimo, um dia de trabalho de oito horas, pensões, auxílio
maternidade, benefícios para crianças e o voto para mulheres. A
urna secreta foi inventada aqui e ficou conhecida como a "urna
australiana". O Partido Trabalhista Australiano constituiu governos 25
anos antes de qualquer social democracia comparável na Europa. Na
década de 1960, com a excepção do povo aborígene
que é sempre a excepção os australianos
podiam orgulhar-se da mais equitativa diferença de rendimento pessoal do
mundo.
É uma história orgulhosa que é pouco mais do que
memória na Austrália de Howard. O seu governo é uma
união não declarada com o Partido Trabalhista da
"oposição", o qual, sob os seus antecessores Bob Hawke
e Paul Keating, lançou uma espectacular redistribuição da
riqueza em favor dos ricos. Segundo os analistas financeiros County Securities
Australia, só a desregulamentação da indústria da
televisão deu a Packer e Murdoch "uma prenda de mil milhões
de dólares inteiramente livres de impostos". O vigarista condenado
Alan Bond construiu um império de papel que devia A$14 mil
milhões, ou 10 por cento da dívida nacional. "Bondy",
disse Hawke, era também "maior do que a vida".
Howard toma como seus guias legislativos Blair e Bush, cujos impulsos para um
estado policial recentemente foram aqui tornados lei. Os poucos membros do
parlamento que tentaram debater este assunto foram silenciados, incrivelmente,
pelo Presidente da Câmara. O resultado é que os australianos que
questionam seriamente o papel de Howard no Iraque arriscam-se a um processo sob
a lei da sedição: pena de sete anos. Isto foi seguido por uma
lei que destroi direitos sindicais. Nas Nações Unidas, que a
Austrália ajudou a fundar, o país tem-se oposto a quase toda a
humanidade nas questões do aquecimento global e da vigência do
direito internacional na Palestina.
Os recentes tumultos raciais em Sydney foram quase autorizados por um governo
cujo racismo tem visto aqueles que procuram asilo irem para a morte em botes
furados, ou serem mantidos em campos agrestes e remotos. Os programas e
instituições para os aborígenes foram destruídos ou
emasculados e reivindicações ligadas aos direitos da terra
impedidas por leis que são um convite à litigação
infindável. A maior parte do jovens australianos negros pode esperar a
prisão. Por trás do encanto do esporte australiano, futebolistas
negros incluindo equipes inteiras muitas vezes estão
mortos antes dos 40 anos. A Austrália é o único
país desenvolvido que consta numa "lista da vergonha" das
Nações Unidos em que o tracoma, uma doença totalmente
evitável que causa a cegueira, é tolerado entre o seu povo
indígena. Utilizando acólitos na imprensa, o governo tem atacado
instituições como o Museu Nacional, e historiadores que ousam
recordar aos australianos o seu verdadeiro passado e o seu presente. O
"país feliz" de Donald Home ficou a descoberto.
23/Janeiro/2006
O original encontra-se em
New Statesman
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Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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