Os amantes da guerra
por John Pilger
Os amantes da guerra que conheci em guerras reais eram geralmente inofensivos,
excepto para si próprios. Eles eram atraídos para o Vietnam e o
Cambodja, onde as drogas eram abundantes. A Bósnia, com a sua roleta da
morte, era outro favorito. Uns poucos diriam que estavam ali "para
perceber o mundo", os honestos diriam que amavam a guerra. Um deles havia
tatuado no braço: "A guerra é divertida!"
Postou-se sobre uma mina terrestre.
Por vezes recordo estes tolos quase benquistos quando me deparo com outra
espécie de amante da guerra a espécie daqueles que
nunca viram guerra e muitas vezes fizeram todo o possível para
não vê-la. A paixão destes amantes da guerra é um
fenómeno; ela nunca esmorece, apesar da distância do objecto do
seu desejo. Apanhe os jornais de domingo e ali estão eles,
egocêntricos com escassa experiência rude, a não ser um
sábado em Sainsbury's. Ligue a televisão e ali estão eles
outra vez, noite após noite, entoando não tanto seu amor à
guerra como seus esforços de vendas por conta de quem os designou.
"Não há dúvida", disse Matt Frei, o homem da BBC
na América, "de que o desejo de fazer o bem, de levar os valores
americanos ao resto do mundo, e especialmente agora ao Médio Oriente ...
está agora cada vez mais ligado ao poder militar".
Frei disse isso em 13 de Abril de 2003, depois de George W. Bush ter
lançado "Choque e pavor" sobre um Iraque indefeso. Dois anos
depois, após um exército de ocupação desenfreado,
racista, lamentavelmente treinado e mal disciplinado ter levado "valores
americanos" de sectarismo, esquadrões da morte, ataques
químicos, ataques com munições revestidas de urânio
e bombas de fragmentação, Frei descreveu a notória
82ª Aerotransportada
(Airborne)
como "os heróis de Tikrit".
No ano passado ele louvou Paul Wolfowitz, arquitecto da carnificina no Iraque,
como "um intelectual" que "acredita apaixonadamente no poder da
democracia e no desenvolvimento a partir das bases". Tal como em
relação ao Irão, Frei estava bem à frente da
estória. Em Junho de 2003 ele disse aos espectadores da BBC:
"Aqui pode estar um caso para mudança de regime também no
Irão".
Quantos homens, mulheres e crianças serão mortos, mutilados ou
enlouquecidos se Bush atacar o Irão? A perspectiva de um ataque
é especialmente excitante para estes amantes da guerra, sem
dúvida desapontados com a evolução dos acontecimentos no
Iraque. "A verdade inimaginável mas finalmente
inescapável", escreveu Gerard Baker no Times no mês passado,
"é que estamos a caminho de termos de ficar prontos para a guerra
com o Irão ... Se o Irão obtiver com segurança e sem
incómodos o estatuto nuclear, isto será um momento de viragem na
história do mundo, mais do que a Revolução Bolchevique ou
a subida de Hitler". Soa familiar? Em Fevereiro de 2003 Baker escreveu
que "a vitória [no Iraque] justificará rapidamente as
alegações americanas e britânicas acerca da escala da
ameaça apresentada por Saddam".
A "vinda de Hitler" é um berro de reunião para os
amantes da guerra. Ele foi ouvido antes da "cruzada moral [da NATO] para
salvar o Kosovo" (Blair) em 1999, um modelo para a invasão do
Iraque. No ataque à Sérvia, 2 por cento dos mísseis da
NATO atingiram objectivos militares; o resto atingiu hospitais, escolas,
fábricas, igrejas e estúdios de rádio e televisão.
Reflectindo Blair e um punhado de funcionários de Clinton, um
maciço coro dos media declarou que "nós" tempos de
travar "algo que se aproxima do genocídio" no Kosovo, tal como
Timothy Garton escreveu no
Guardian
em 2002. "Ecos do holocausto", diziam as primeiras páginas
do
Daily Mirror
e do
Sun. The Observer
advertiu acerca de uma "Solução final dos
Balcãs".
A morte recente de Slobodan Milosevic levou os amantes e os vendedores da
guerra a descerem a Rua da Memória. Curiosamente,
"genocídio" e "holocausto" e a "vinda de
Hitler" agora estavam omissos pela muito boa razão de que,
como o tambor da guerra levava à invasão do Iraque e o tambor da
guerra agora conduzia a um ataque ao Irão, isto era tudo conversa fiada
(bullshit).
Não má interpretação. Não um erro.
Não asneira. Conversa fiada.
As "sepulturas em massa" no Kosovo justificariam isto tudo, disseram
eles. Quando o bombardeamento acabou, equipes internacionais de peritos em
medicina legal começaram a sujeitar o Kosovo a um exame minucioso. O
FBI chegou a investigar o que denominou "o maior cenário de crime
na história médico legal do FBI". Várias semanas
mais tarde, não tendo descoberto nem uma única sepultura em
massa, o FBI e outras equipes de medicina legal voltaram para casa.
Em 2000, o Tribunal Internacional de Crimes de Guerra anunciou que a contagem
final de corpos descobertos nas "sepulturas em massa" do Kosovo era
de 2788. Isto incluiu sérvios, ciganos e aqueles mortos pelos
"nossos" aliados, a Frente de Libertação do Kosovo.
Isto significou que a justificação para o ataque à
Sérvia ("225 mil homens de etnia albanesa com idades entre 14 e 59
estão desaparecidos, presumivelmente mortos", afirmou o embaixador
itinerante americano David Scheffer) era uma invenção. Que eu
saiba, apenas o
Wall Street Journal
admitiu isto. Um antigo planeador da NATO, Michael McGwire, escreveu que
"descrever o bombardeamento como 'intervenção
humanitária' [é] realmente grotesco". De facto, a
"cruzada" da NATO era o acto final de uma longa guerra de atrito
destinada a exterminar a própria ideia de Jugoslávia.
Para mim, uma das mais odiosas características de Blair, e Bush, e
Clinton, e da sua ávida e burlona corte jornalística, é o
entusiasmo de homens (e mulheres) degenerados por derramamentos de sangue que
nunca vêm, por corpos estraçalhados que não lhes provocam
ânsias de vómito, por morgues amontoadas que eles nunca
terão de visitar, à procura de um ser amado. O seu papel
é impingir mundos paralelos de verdades não ditas e mentiras
públicas. Que Milosevic era um peixe miúdo comparado com
assassinos em escala industrial como Bush e Blair cabe na primeira categoria.
23/Março/2006
O original encontra-se em
http://www.newstatesman.com/200603270016
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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