Grã-Bretanha: a profundidade da corrupção

por John Pilger

O roubo de dinheiro público por membros do parlamento, incluindo ministros do governo, deu aos britânicos um raro vislumbre para dentro da tenda do poder e do privilégio. Isto é raro porque nem um único repórter ou comentador político, aqueles que enchem centímetros de coluna e dominam o jornalismo da rádio e da TV, revelou uma partícula deste escândalo. Deixaram a um homem de relações pública a venda da "fuga". Por que?

A resposta repousa numa corrupção mais profunda, na qual histórias de evasão fiscal e hipotecas fantasmas chamam a atenção mas são escondidas. Desde Margaret Thatcher, a democracia parlamentar britânica foi progressivamente destruída quando os dois principais partidos convergiram numa ideologia única de negócios de Estado, cada um deles com quase políticas sociais, económicas e externa quase idênticas. Este "projecto" foi completado por Tony Blair e Gordon Brown, inspirados pela monocultura política dos Estados Unidos. Que tantos políticos conservadores e trabalhistas sejam agora revelados como pessoalmente deformados não é senão uma metáfora do sistema anti-democrático que forjaram em conjunto.

Os seus cúmplices foram aqueles jornalistas que cobrem o Parlamento como um "lobby de correspondentes" e os seus editores, que "jogaram o jogo" deliberadamente e iludiram o público (e por vezes a si próprios) ao pretender que existiam diferenças vitais e democráticas entre os partidos. Os inquéritos de opinião concebidos pelos media, baseados em amostragens absurdamente pequenas, juntamente com um tsunami de comentários sobre personalidades e suas crises especiosas, reduziram a "conversação nacional" a uma série de eventos dos media, nos quais o afastamento do consentimento popular – como as votações historicamente baixas sob Blair demonstraram – foi insultado como sendo apatia.

Tendo fixado as fronteiras do debate político e da possibilidade, paladinos arrogantes, notavelmente liberais, promoveram o imperador nu Blair e apregoaram os seus "valores" que permitiriam "concentrar a mente na busca de uma melhor Grã-Bretanha". E quando as marcas de sangue apareceram, eles fugiram e enconderam-se. Tudo isto tem sido, como certa vez descreveu Larry David, "uma tagarelice para permitir as mentiras".

Quão contritos parecem agora os seus antigos heróis. Em 17 de Maio, o líder da Câmara dos Comuns, Harriet Harman, a qual é acusada de ter gasto 10 mil libras do dinheiro dos contribuintes em "treino dos media", apelou aos deputados para "reconstruírem a confiança entre os partidos". A ironia não intencional das suas palavras recorda um dos seus primeiros actos como secretária da Segurança Social há mais de uma década – cortar os benefícios das mães solteiras. Isto foi relatado como se houvesse uma "revolta" entre os deputados do Labour, o que era falso. Nenhuma das deputadas de Blair, que haviam sido eleitas para "acabar com as políticas conservadoras dominadas pelos homens", pronunciou-se contra este ataque às mais pobres de todas as mulheres pobres. Todas votaram por isto.

O mesmo se verificou em relação ao ataque ilegal ao Iraque em 2003, por trás do qual o Establishment inter-partidário e os media políticos se alinharam. Andrew Marr postou-se na Downing Street e excitadamente contou aos assistentes da BBC que Blair havia "dito que seriam capazes de tomar Bagdad sem um banho de sangue e que no fim os iraquianos estariam a celebrar. E em ambos os pontos ele demonstrou estar conclusivamente correcto". Quando o exército de Blair finalmente retirou-se de Bassora, em Maio, deixou atrás de sim, de acordo com estimativas académicas, mais de um milhão de pessoas mortas, uma maioria de crianças feridas e doentes, um abastecimento de água contaminado, uma rede de energia arrebentada e quatro milhões de refugiados.

Quanto à "celebração" dos iraquianos, a vasta maioria, dizem os próprios inquéritos de Whitehall, quer o invasor fora. E quando Blair finalmente abandonou a Câmara dos Comuns, os deputados fizeram-lhe uma ovação de pé – eles que se haviam recusado a dar um voto sobre a sua invasão criminosa ou mesmo efectuar um inquérito às suas mentiras, o qual era desejado por quase três quartos da população britânica.

Tal venalidade vai para além da cobiça da arrogante Hazel Blears [1] .

A frase "normalizar o impensável", de Edward Herman no seu ensaio The Banality of Evil, acerca da divisão do trabalho em crimes de Estado, é aplicável aqui. Em 18 de Maio o Guardian dedicou a manchete de uma página a uma reportagem intitulada "Blair premiado com US$1 por trabalho de relações internacionais". Este prémio, anunciado em Israel logo após o massacre de Gaza, foi pelo seu "impacto cultural e social sobre o mundo". Procura-se em vão por evidência de uma paródia ou algum reconhecimento da verdade. Ao invés disso, falava do seu "optimismo acerca da probabilidade de trazer a paz" e do seu trabalho "destinado a forjar a paz".

Era o mesmo Blair que cometeu o mesmo crime – planear deliberadamente a invasão de um país, "o crime internacional supremo" – pelo qual ministro nazi dos Negócios Estrangeiros, Joachim von Ribbentrop, foi enforcado em Nuremberg depois de a prova da sua culpa ter sido encontrada em documentos do gabinete alemão. Em Fevereiro último, o secretário da "Justiça" da Grã-Bretanha, Jack Straw, bloqueou a publicação de minutas cruciais do gabinete datas de Março de 2003 acerca do planeamento da invasão do Iraque, muito embora o Comissário da Informação, Richard Thomas, houvesse ordenado a sua divulgação. Para Blair, o impensável tanto normalizado como celebrado.

"Como os nossos corruptos deputados estão a actuar nas mãos de extremistas", dizia a capa do New Statesman da semana passada. Mas não será o apoio deles ao monstruoso crime no Iraque? E à aventura imperial assassina no Afeganistão? E à conivência do governo com a tortura?

É como se a nossa linguagem pública houvesse finalmente se tornado orwelliana. Utilizar leis totalitárias aprovadas por uma maioria de deputados, a polícia estabelecer unidades secretas para combater discordância democrática a que eles chamam "extremismo". Os seus parceiros de facto são jornalistas de "segurança", uma geração recente de propagandistas do Estado ou de lobbies. Em 9 de Abril, o programa Newsnight da BBC promoveu como culpados 12 "terroristas" presos num drama artificial dos media orquestrado pelo próprio primeiro-ministro. Posteriormente foram todos libertados sem acusação.

Algo na Grã-Bretanha está a mudar, o que dá razões para optimismo. O povo britânico provavelmente nunca foi mais politicamente consciente e esteve mais preparado para remover mitos decrépitos e outros trastes enquanto avança iradamente contra a tagarelice das mentiras.

28/Maio/2009

[1] Hazel Anne Blears : política britânica do Partido Trabalhista. Foi ministra sem pasta e secretária de Estado. Está implicada no escândalo de 2009 das despesas parlamentares.

O original encontra-se em http://www.johnpilger.com/page.asp?partid=534

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
30/Mai/09