Gravidez & Aborto
Histórias da Santa Madre
Recordar a mulher em 11 de Fevereiro
No dia 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, também se
assinala o dia nacional da mulher. Dia interdito a comemorações
quando por aqui vigorava, na máxima força, o macho latino e
lusitano, nas ciências zoológicas classificável
equídeo salazarense. A mulher beneficiou tanto ou mais com o 25 de Abril
do que a classe operária e os assalariados rurais, do que qualquer dos
protagonistas das revoluções igualitárias. A
repressão sobre as mulheres, exercendo-se a nível
político, acentuava-se também a nível da família,
das convenções, do ensino, da religião, do emprego. O
analfabetismo grassava e fazia parte de uma estratégia calculada,
concertada ou espontânea mas que concorria para os mesmos objectivos e
resultados: refrear a mulher, fonte do
pecado original
e animal doméstico por excelência. E o analfabetismo de
múltiplos aproveitamentos assumia uma proporção mais
massiva entre as mulheres. Eram, de um modo mais cerrado, desincentivadas de
estudar, o que agravava o seu concurso e o seu desempenho no espectro das
limitações e das oportunidades colectivas.
Mas o racismo uterino alastrava a múltiplos campos, desde logo, o da
cidadania. Mesmo no quadro de um recenseamento expurgado e de fraude eleitoral,
votar era privilégio de um gineceu cívico: o das
proprietárias e licenciadas, então um pequeno estrato de
portuguesas. Acrescia que as mulheres quase não ocupavam
funções públicas, muito menos na esfera de
representação do Estado. Por outro lado, não lhes
concediam passaporte e só viajavam com autorização do
consorte. Também eram vedadas ao género feminino certas
ocupações ou restringidas a casos singulares nos mais diversos
âmbitos: governo, autarquias locais, magistraturas, forças
segurança, doutoramentos. Mulher de fábrica e de
escritório tornaram-se modelos de promiscuidade e condição
de estigma. As telefonistas e as enfermeiras foram tolhidas nas
opções de casamento. Eram consideradas mulheres de risco. As
professoras primárias eram empurradas para o nó com
serventuários da máquina do Estado ou varões de fazenda.
Houve mesmo censuras sociais hoje da esfera do inconcebível: entrar num
café denunciava um passo para a perdição. Sair à
noite indiciava dormir com todos os conhecidos e desconhecidos. Pintar-se
constituía sinal de conduta equivoca, próprio de mulheres de
teatro. Usar calças ou fumar representava uma atitude subversiva. Expor
mais uns centímetros de pele na praia poderia tirar a compostura ao
País da Imaculada. Que imaculadas haveriam de apresentar-se ou
aparentar-se as noivas, para o efeito amarradas até ao fim dos seus dias
e arreadas com vestidos alvos e flores de laranjeira, já que Estado &
Igreja haviam concordatado a interdição de divórcio.
Depois, dentro do espírito dos altos valores da Nação, a
membrana da Pureza tornou-se, na Política de Espírito do Estado
Novo, uma instituição tão estimável e
venerável como a Igreja, as Forças Armadas e o Dote.
A União Conjugal e a União Nacional completavam-se e
emblematizavam-se na Trilogia Fascista: Deus, Pátria e Família.
Em caso de adultério ou da mínima tentação da
carne, do peixe ou da fruta, o marido passava por viril e a esposa por vil.
Discriminação com fundas raízes. Até no seio da
Nobreza as mulheres foram as últimas na linha dos títulos e as
primeiras a ser deserdadas ou clausuradas em conventos e hospícios.
Mesmo na esfera eclesial, a mulher, laica ou membro de ordens
monásticas, continua a desempenhar um papel secundário ou servil.
Até nas insígnias mais elementares é patente a
segregação e o ferrete: a freira usa aliança de
comprometida, de
noiva do Senhor,
enquanto o padre ou o frade não usam anel de esponsal místico,
sentindo-se solteirões livres, garanhões de Deus, dispensados de
contrato virginal. Quanto à evolução geral dos costumes,
foi fazendo caminho e evidenciando conquistas reais e formais mas os tutores e
opressores não debandaram de vez. Buscam e buscarão sempre
recuperar posições de domínio e predomínio.
A humilhação (pessoal, familiar, social, religiosa e
jurídica) é uma das armas do machismo corrente e institucional. E
muitas mulheres colaboram na sua degradação biológica,
psicológica e afectiva sempre que se deixam enlear pelos argumentos do
agente dominador e humilhador. Fenómeno de submissão e
perversão que, à escala de outras culturas ou inculturas, por
exemplo, as que praticam a excisão do clítoris (estimam-se em 150
milhões as mutiladas), se traduz no facto de serem mulheres a executar a
norma incapacitante e seviciadora no interesse do egoísmo masculino e da
ordem naturalizada.
Esperemos que, no próximo dia 8 de Março, o Dia Inter(nacional)
da Mulher conte com mais um avanço civilizacional: A vitória do
Sim
no referendo de 11 de Fevereiro. Na realidade, pouco significado
alcançarão as celebrações na boca de determinadas
entidades e personalidades se a actual lei se mantiver, lei que protege o
aborto clandestino e a fuga aos impostos, lei que mata dezenas de mulheres por
ano, lei que ameaça as mulheres com prisão até três
anos se não tiverem posses para uma escapadela a Espanha ou a uma
clínica portuguesa segura e confidencial. Em Portugal, como é da
sabedoria adquirida, à maneira dos estabelecimentos hoteleiros,
também, no aborto, as opções marcam a
condição económico-social das clientelas: há
hospedarias de viela para as mulheres desafortunadas e hotéis de cinco
estrelas para as senhoras de cartão dourado. Não querer ver
também esta fronteira de estatuto só pode revelar uma imensa
distracção ou uma rude hipocrisia.
Os distraídos ainda estão a tempo de se aperceberem do que
está em jogo: deixar de criminalizar a IVG até às dez
semanas e permitir o acesso a cuidados médicos especializados e
legalizados às mulheres que optem por esse último recurso. Quanto
aos hipócritas, não vale a pena perder tempo: é a
profissão deles.
[*]
Escritor, jornalista
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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