Um exemplo a seguir
por João Vilela
Há não muito tempo, o insuspeito
Público
titulava uma notícia com a mais isenta inocente das questões:
"os call-centers vão salvar a economia portuguesa?"
[1]
. A pergunta - que era todo um programa político -, é respondida
por dirigentes de empresas do sector com um conjunto de
afirmações ora insólitas (como a proposta de uma
licenciatura em Operador de Call-Center nas universidades, seguindo o modelo...
das Filipinas...), ora despudoradamente reaccionárias. Apelos
explícitos a que o Governo não regule as relações
de trabalho no sector, elogios ao facto de a mão-de-obra portuguesa ser
barata, argumentos de um descaramento extremo do estilo "mais vale isto
que nada", de tudo ali se lança mão. Sente-se uma
confiança generalizada na docilidade de quem trabalha, uma
persuasão de invencibilidade, uma visão de mundo onde é um
favor pagar salários, uma bênção estar empregado, e
onde a função da política é governar para as
grandes empresas que levam avante o nome do "país". Como dizia
Lenine, e bem, só a classe dominante consegue transformar os seus
interesses em interesse nacional. Como sabemos todos, é por isso que
nenhum meio é de excluir para derrotar esta gente.
Ocorre que, enquanto em Portugal os patrões de call-centers se sentem
à vontade para vomitar estas atoardas, aqui ao lado a terra treme no
mesmo sector, com os já mais de 40 dias de greve nos call-centers da
Telefónica. No Estado Espanhol, a 28 de Março em Madrid, e a
partir de 7 de Abril em todo o território, contratados, sub-contratados,
e falsos trabalhadores autónomos, ergueram-se contra a sua
situação e contra a pretensão da empresa de reduzir o seu
salário. São trabalhadores que estão em linha 10 a 12
horas por dias, e que recebem salários entre os 500 e os 800 euros (no
Estado Espanhol o salário mínimo nacional é de 645 euros).
E isto ocorre numa empresa cujos membros do Conselho de
Administração aumentaram a sua própria
remuneração em 20%!
Tendo constituído fundos de greve financiados por pessoas que têm
apoiado a luta
[2]
, a 9 de Maio cem trabalhadores ocuparam a loja Movistar de Barcelona
[3]
, tendo logrado arrastar o apoio de mais de oitocentas pessoas, que
reforçaram a ocupação exigindo que a
administração da Telefónica se dignasse ouvir os
representantes dos trabalhadores. Tendo sido apresentadas
condições que não satisfaziam as exigências dos
grevistas (salário mínimo para o sector, fim da
sub-contratação, modificação das
condições económicas e contratuais dos contratos
autónomos, e garantias de não-repressão aos trabalhadores
que aderiram à paralisação), estes não regressaram
ao trabalho, e continuam firmes na sua combatividade.
O mais absolutamente espantoso desta luta é a forma como ela se
desenrola à margem e contra a vontade dos principais sindicatos do
Estado Espanhol. Tanto as CC.OO. como a UGT, dominadas pelo PSOE, têm
pautado o seu comportamento nesta matéria por uma mistura de conluio mal
disfarçado com o patronato, com fingimento de firmeza negocial,
ocultação de informação determinante aos
trabalhadores e medo-pânico de envolver os trabalhadores na
discussão dos acordos em cima da mesa, num esforço
simultaneamente dissuasor da luta e criador de uma desconfiança
anti-sindical. O segundo caso, que poderia ser o curso normal dos
acontecimentos de quem percebe que as organizações sindicais
não têm (nem pretendem ter) o arrojo suficiente para interpelar o
patronato e o forçar a ceder às reivindicações dos
trabalhadores não se observou. Pelo contrário: os trabalhadores
ergueram, contra os sindicatos do patrão, uma organização
unitária, de base, de combate, e de massas (fala-se em 30 mil
grevistas), com que fazer e vencer a luta. E as denúncias da
complacência e/ou cumplicidade do sindicalismo amarelo somam-se, dia
após dia.
São muitos os ensinamentos que se podem colher desta luta. O primeiro
é o de que, contra os "profetas" do fim da história, da
ultrapassagem da luta de classes, do fim das grandes lutas laborais e da sua
substituição por lutas sectoriais, entre outro lixo
ideológico, vêm uma vez desmentidas as suas parvoíces.
Mesmo soterrado por anos e anos de contemporização,
conciliação de classes, reformismo, tomada do movimento sindical
pelo burocratismo social-democrata que foge das massas e encara a luta laboral
como o seu emprego, o proletariado pode emergir de sob a escória e
assumir as suas tarefas, as que só ele poderá desempenhar, frente
ao patronato. Enquanto houver homens e mulheres, como dizia Paulo Freire,
poderemos fazer a história. E devemos fazê-la a nosso favor.
Mas uma outra coisa se demonstra também, e com muita acuidade: que mesmo
nos sectores mais desprotegidos, mais debilitados, mais difíceis de
organizar e mobilizar, onde possa imperar o medo, a instabilidade, a
despolitização, o desinteresse, o que for - mesmo aí
é possível a organização dos trabalhadores, e
é possível mover lutas de envergadura suficiente para vergar o
patronato. Os trabalhadores têm uma única arma ao seu dispor no
capitalismo: a sua própria organização. Sem que se unam,
organizem, planeiem a sua luta, e vibrem sem hesitações o golpe
sobre o patronato, nenhuma organização partidária, nenhum
Governo bem intencionado, nenhuma sorte estranha na conjuntura internacional ou
na disposição dos astros do céu lhes vai garantir um
cêntimo de salário, uma hora de descanso, um progresso
mínimo. Só com a luta o conseguirão, e só
poderão lutar organizando-se para ela. Dia a dia. Empresa a empresa.
Classe contra classe.
(1)
blogues.publico.pt/...
(2)
teleafonica.blogspot.com.es/p/cajas-de-resistencia.html
(3) A Movistar é a empresa de comunicações móveis
da Telefónica.
Ver também:
Sindicato dos Trabalhadores de Call Center
Sindicato Nacional dos Trabalhadores das Telecomunicações e Audiovisual
Call Centers: à descoberta da ilha
Decreto-Lei n.º 134/2009, de 2 de junho
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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