Os resultados começam-se a fazer sentir.
O
Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior
(MCTES) relegou o Ensino Superior
para um plano muito inferior ao que lhe era devido. Passado um ano sobre a
eleição a nota é de desapontamento com uma política
coerente e de visão, para não dizer independente e de esquerda,
que se sonhava que o ministro Mariano Gago pudesse trazer para a Ciência.
E um vergar perante os ditames e a lógica internacional dos modelos de
gestão de instituições científicas.
Política essa, hoje em dia, distante de uma perspectiva social sobre o
papel do ensino e submissa à vontade das empresas, da
"economia" e da produtividade. O MCTES alinha pela prática
neoliberal no corte de financiamento e fecho de institutos, no silenciamento da
participação estudantil, no empobrecimento da gestão
democrática das escolas, na perpetuação da instabilidade
do corpo docente, na subordinação dos recursos nacionais de
Investigação ao gigante esfomeado da indústria e
tecnologia globalizadas e imperialistas.
A realidade comprova que a
Ciência e a Cultura requerem uma atenção muito mais forte
por parte da sociedade, a começar pelo Estado. Que a
participação de mais homens e mulheres na vida escolar ou a
fruição de meios de acesso ao conhecimento, investimento que a
sociedade faz em si mesma, é um valor a defender, independente dos
resultados imediatos que daí advenham. Porque afinal não
há contra-exemplo que nos coíba de afirmar , é esse
investimento, é esse modelo de alargamento e conteúdo
democrático, que perdura, transforma e torna possível a dignidade
da espécie humana, em harmonia consigo e com o planeta. Por
oposição ao modelo elitista, que não cresce e não
é sustentável.
Nesta matéria, o Governo
não ouve ninguém à esquerda, julga-se detentor da verdade,
de competências e amizades ideais, de chaves do sucesso duma nova
economia, desta vez baseada numa nova panaceia que dá pelo nome de
"inovação". Mariano Gago não é
excepção. Está comprometido com Sócrates na mesma
política de roubo e entrega de tudo o que é rentável aos
privados, o que não deixa de transparecer na política
específica do seu Ministério. Conducente à maior
integração dos interesses privados nos meios académicos e
ao caminho para a privatização das universidades, que mais tarde,
mais à direita, outros, ou os mesmos, poderão folgadamente
realizar.
Por outro lado, é justo
afirmar que o desenvolvimento científico nacional foi
extraordinário nos últimos 32 anos, pelo que os atrasos e
insuficiências de que ainda sofre devem ser imputados a muitos outros
factores endémicos e forças regressivas aos quais, afinal,
só uma política de firme oposição, de
coerência ideológica e de esquerda foi, é e será
capaz de ultrapassar.
POLÍTICA DE RECURSOS CIENTÍFICOS
É sintomático que
este Governo ainda não tenha conferido o direito ao subsídio de
desemprego para os docentes do Ensino Superior Público (ESP), como
pretendeu defender e como diziam querer os sindicatos da sua área.
Aliás, o Partido Socialista chumbou na Assembleia da República,
no passado dia 30 de Novembro, a atribuição daquele direito, que
dizia defender um ano antes. Esta situação leva ao
repúdio total deste Governo e suas promessas para o ES, pois que
é sabido que no ES Politécnico mais de 70% do pessoal docente
está com contratos a prazo e no Universitário esta cifra chega
aos 80%.
É uma
situação de discórdia na sociedade, de
provocação mesmo, haver tantos jovens licenciados, mestres,
doutorados e até já pós-doutorados sem emprego, numa
altura em que se apela ao crescimento da economia. Para que serve este Governo
se não organiza o emprego?! Apropria-se do trabalho dos investigadores
bolseiros nos laboratórios e centros de investigação.
Congela as carreiras e salários dos docentes e demais trabalhadores do
Estado com a legitimidade de todas as maiorias absolutas contra os
trabalhadores que passaram pela Assembleia da República. Na verdade, o
número de pessoal afecto a actividades de Investigação e
Desenvolvimento em Portugal é de 0,47%, enquanto na Europa dos 25, em
média, ultrapassa o 1%. Portanto, deviam ser incorporados muitos mais
jovens nas instituições de Investigação e ensino,
ao contrário do que se está a passar, que é o
decréscimo de 14,2% do número de efectivos em I&D no sector
Estado em 2 anos, entre 2001 e 2003 (dados do suplemento Sup ao
Jornal da Fenprof nº 205
).
É escandaloso que o
Governo da política de direita, que diz vir da esquerda, não se
interrogue sobre esse cancro que são as propinas no ESP,
opção traçada há mais de 15 anos pelo
inefável Cavaco Silva, que não teve até hoje um defensor
eleito que delas fizesse uma análise honesta, seja nos
propósitos, seja nos resultados!
Mas o Governo antecipa o
abandono escolar por causa das propinas e adivinha o seu aumento por via do
Processo de Bolonha. É vergonhoso que o ministro Mariano Gago fique como
está perante os números de vagas por preencher no ESP.
Neste domínio, da falta
de alunos, o que se vê é outro ataque ao Ensino. É outra
briga da paixão pela educação, ao estilo do ministro
Augusto Santos Silva no tempo do bom António Guterres. Com efeito,
é inadmissível que, com ponderadas excepções, se
fechem cursos que são essenciais para o progresso de todos e representam
décadas de trabalho e conhecimentos acumulados. Porém, até
2009 o MCTES prevê implementar o fecho de cursos não de 10 alunos,
mas todos os que não cheguem aos 20 alunos. É falso o seu
propósito: a falta de alunos poderia ser muito melhor resolvida, e.g.
com um projecto de passagem automática para outras escolas, quando se
visse que um determinado curso não consegue criar as
condições exigidas para um aluno, que ninguém quer ver
isolado dos seus colegas. Isto poderia poupar recursos e aliviar o corpo
docente para a sua investigação, nesse ano, não obrigando
ao fecho do curso. Os cursos com princípio, meio e fins, não
são entes descartáveis.
Aqui chegados constatamos a
incapacidade do Ministério em ver que o sistema padece de outro
problema. É que a sua análise não vê que nunca
há falta de alunos nem o famoso problema demográfico nos cursos,
por exemplo, de Direito, gestão de empresas, psicologias ou sociologias.
Se há zero empregos nas ciências naturais e físicas e se
estas requerem um dispêndio maior de energias, porque hão-de os
alunos seguir ciências? E no meio de uma crise, que estímulo e
concentração existe para estudar Matemática? Se
confiarmos nas classes abastadas para estas tarefas, então é o
caos. O Ministério, em vez de criar emprego no Estado e contrariar o
modelo económico que destrói a indústria nacional e
não perspectiva o futuro, refugia-se na história de que o mercado
dita a "empregabilidade" e que, logo, o aluno (cliente) é que
justifica o professor. Em consequência, induz na opinião
pública(da) a ideia que os graves índices de fraca adesão
dos jovens à ciência e engenharias, apesar da propaganda dominante
e desta se dizer preocupada com isso, são obra do acaso e da falta de
exigência e rigor dos pais dos adolescentes
pré-universitários. Mas se até o abandono escolar aumenta
no ES
O que há de facto
é fraco investimento financeiro do Estado nas condições de
ensino, incapacidade de fazer justiça e uma exploração
cada vez maior dos trabalhadores. O Governo trabalha para impossibilitar e
quebrar a vontade de progresso da generalidade das famílias.
PROCESSO DE BOLONHA E INTERNACIONALIZAÇÃO
No plano da reestruturação de Bolonha o ensino está a
sofrer um
gravíssimo assalto na sua independência e liberdade, de que a
memória nos lembra só ter acontecido em épocas de
retrocesso cultural e civilizacional, daquelas em que o nosso país
é pródigo. Os cursos iniciais de 3 anos, que insistem em vir a
chamar de licenciaturas(!), ainda não foram minimamente justificados. Ou
seja, ninguém sabe muito bem para que serve um bacharel, por exemplo, em
Física ou Química, que viu passar em três anos um conjunto
de ideias de difícil maturação, ainda mais fragmentadas do
que aquilo que aprendia em quatro anos. Porque o que está escrito e
previsto são, de facto, as reestruturações e aligeiramento
dos planos curriculares (embora isso não tenha um décimo da
atenção na comunicação social que tem aquela da
miríade de jovens a viajar e estudar pela Europa fora, cada vez mais
surreal para os estudantes portugueses).
As universidades e institutos,
chantageados ora por falta de alunos e "empregabilidade" ora por
ameaça de corte no financiamento, procuram resolver por meio de tais
reformas uma crise para a qual não contribuíram, e assim, por
imposição quase administrativa, vão empobrecendo os seus
currículos.
Infelizmente, alguns
responsáveis do corpo docente, por vezes como vozes de corpos
empresariais inseridos nas universidades, aliam-se na sujeição
aos 'factos', às 'estratégias' e aos 'descritores' (daqui ou
dali) que lhes impõem. Em particular, a responsabilidade e
anuência do
CRUP
e do CNAVES no empobrecimento dos cursos, de que falamos acima, também
deve ser denunciada.
Em nome da "acreditação internacional", do
"desenvolvimento
de competências pelos próprios alunos", do ensino à
distância, do "e-learning", da racionalização de
recursos, sempre complementada e salvaguardada pela formação de
centros de excelência e de elite, vem o achincalhamento da imagem do
ensino presencial, vem o preconceito com o ensino Politécnico e os
ataques às escolas mais recentes, naturalmente com menores capacidades,
mas que afinal demonstram ter feito os maiores progressos desde o 25 de Abril
(por vezes excepcionais, como demonstra por exemplo o estudo "Uma
reflexão sobre a história da Universidade de Évora"
do qual citamos: «Em 1993, havia na Universidade de Évora um
único projecto de investigação Europeu e o número
de publicações reconhecidas no UE-ISI era de 67, correspondente
ao período de 20 anos (1973-1993). No período de 1993 a 2005 (12
anos) são 630 as publicações reconhecidas à
Universidade de Évora, ou seja cerca de 10 vezes mais!»).
Relativamente aos
métodos de ensino, ponto felizmente nunca assente mas no qual muitos
comentadores de serviço se aventuram, os novos paradigmas daquilo que
deve ser um Professor, que aparecem agora para justificar Bolonha,
dão-nos uma imagem de fraca dedicação aos alunos e
primazia do papel do Investigador. A dedicação ao ensino
não é mais vista como o cume da actividade de um professor,
aquele momento em que objectivamente cumpre, de facto, uma função
social de extrema necessidade. Naturalmente, a classe docente está
sujeita à mesma pressão para se orientar pelo individualismo e
carreirismo veiculada pela ideologia dominante. (
"Aprenda a 'vender-se' para subir na carreira"
, um título do DN de 13 de Fevereiro de 2006).
Aliás, os critérios de financiamento e
avaliação das instituições de ensino regem-se pelos
índices de qualidade do seu corpo docente, mas dando privilégio
para a parte da Investigação.
Sobre a investigação, muito mais haveria a dizer; desde logo,
que ela é absolutamente indispensável no sistema de ES todo e que
cada
vez há mais espaço para novos intervenientes. O conhecimento
evolui, formulando novos problemas. Diz-se que o conhecimento acumulado em
todas as áreas está a duplicar todos os dois anos. Há que
pôr as questões correctas, não esquecendo Albert Einstein
que dizia que os problemas não podem ser resolvidos usando o mesmo tipo
de pensamento com que foram criados. Afinal, em Portugal é urgente abrir
as universidades aos jovens.
O problema do acesso ao Ensino
é um problema que se mantém. De muito maior gravidade que o
problema do ensino ao longo da vida e da "reactualização de
competências" dos menos jovens, que este Ministério
está a tratar, pois trata do direito à igualdade, que a
Constituição Portuguesa confere.
O Processo de Bolonha
implanta-se em conjunto com uma alienação inusitada das
instituições de ensino e centros de investigação
às estratégias pouco claras da Comunidade Europeia. Caminhamos
para um sistema de subordinação e entrega dos melhores elementos
às melhores universidades europeias ao estilo do sistema norte
americano, a fim de produzir uma nova potência mundial, ou haverá
possibilidade de crescimento para todos baseado num sistema justo e de
salvaguarda do interesse nacional: não se pode negar que estes dois
modelos estão em aberto, que há contradições entre
eles e que o futuro depende da luta e da posição em que os povos
se coloquem para o determinar (como em quase tudo, aliás, o que
não fica mal lembrar). Para já, pelo exemplo do que foi a
integração europeia nos outros sectores da vida nacional, pela
negação da discussão havida no seio das escolas e pela
condução que os últimos três governos lhe
estão a dar, só poderemos estar de acordo com o repúdio
geral do Processo de Bolonha.
Gravíssima, entre as
medidas tomadas pelo Ministério neste último ano, é a
entrega da avaliação das instituições do ensino
superior portuguesas à OCDE (Despacho n.º 484/2006, DR n.º 6,
II Série, de 9 de Janeiro). Sabemos como essa organização
despreza a realidade da vida dos povos, privilegiando os factores
económicos, e que se comporta como um organizador do capitalismo a
nível mundial, posto em marcha pelos 30 Estados mais ricos que
são os seus membros. Só uma grande cegueira ideológica
pode justificar a bondade deste acto, que apresenta os contornos habituais de
demissão política perante o interesse nacional.
Fala-se na necessidade de
idoneidade e experiência reconhecidas. Não bastava o
Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior
(CNAVES), a Rede Europeia para a Garantia da Qualidade no Ensino Superior
(ENQA), a
Associação Europeia das Universidades
(AEU) e a
Associação Europeia de Instituições de Ensino Superior
(EURASHE) terem diferentes papéis na avaliação
internacional, é mesmo à
OCDE
que incumbe a "avaliação global do sistema do ensino
superior português". Será por um inconfessável receio
do
interesse Europeu que se introduz como supervisor o amigo americano? Enfim,
venham todos que chega para todos.
Com esta política para o
ensino superior, onde cabem os interesses da OCDE, da Microsoft (ao
nível do ensino básico e secundário com contratos antigos
feitos com o Ministério da Educação e ao nível da
formação superior e tecnológica com contratos recentes com
o MCTES), do Processo de Bolonha, das universidades privadas portuguesas, dos
critérios de reconhecimento e "factores de impacto" escolhidos
por multinacionais como a gigante ISI-Thomson, das grandes editoras mundiais
como a Springer e a Elsevier que vão abocanhando um cada vez maior
número de revistas e publicações científicas
outrora independentes, não nos parece que o MCTES possa acautelar e
reforçar o sistema de ES Público, num quadro de abertura ao
mundo, de independência e liberdade de ensino, de relevância do seu
papel social para com o nosso povo. Pela importância e em louvor da
coerência citamos com agrado o ministro Mariano Gago numa
intervenção nas comemorações do centenário
do nascimento do Prof. Ruy Luís Gomes: «Quando falo de Ruy
Luís Gomes é difícil não ver através dele,
ou para além dele. Penso nas gerações perdidas no sufoco
do fascismo nacional, na ciência tentada e adiada, ou ainda na
demonstração repetida, de que infelizmente Portugal dá
provas desde a Inquisição, da necessidade absoluta de liberdade
para o desenvolvimento científico.»
Perceber Ruy Luís Gomes
e negar o debate ideológico actual, pugnar pelo desenvolvimento
científico e amputá-lo do seu papel no ensino, eis o caminho por
onde não podemos ir.
Lisboa, 13/Fevereiro/2006
[*]
Professor universitário.
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