Recuperar a soberania monetária
por Octávio Teixeira
O Euro não é apenas uma moeda, é todo um sistema ditado
pelas regras da zona Euro. Um sistema de opressão, destruidor de
qualquer conquista social e que incide duramente sobre a democracia, em nome de
vínculos e exigências "tecnocráticos" decorrentes
dos interesses económicos da Alemanha.
"Rezem para que, no novo século, os livros de história
económica não relembrem a experiência do Euro como um erro
trágico".
O vaticínio de Paul Samuelson há 25 anos, na sequência do
Tratado de Maastricht, concretizou-se. Mas os mandantes da UE e seus
acólitos continuam cegos à realidade e persistem em prolongar e
agravar a tragédia, como mais uma vez o mostraram em Roma.
A zona Euro tem sido um espaço de baixas taxas de inflação
e défices orçamentais e, em contrapartida, de taxas de
crescimento fracas e decrescentes, níveis de desemprego elevados e
crescentes, cada vez menor protecção social dos cidadãos,
impondo maior flexibilidade no mercado de trabalho e mais facilidade para os
despedimentos, num movimento acelerado de emagrecimento do chamado "modelo
social Europeu".
Tem-se acentuado a divergência do nível de coesão das
economias e a União Económica Monetária (UEM) e o Euro nem
sequer foram um factor de estabilidade face a turbulências financeiras.
O Euro não é apenas uma moeda, é todo um sistema ditado
pelas regras da zona Euro. Um sistema de opressão, destruidor de
qualquer conquista social e que incide duramente sobre a democracia, em nome de
vínculos e exigências "tecnocráticos" decorrentes
dos interesses económicos da Alemanha.
Devido à sua rigidez, que retira qualquer margem de manobra aos Estados
nacionais, a moeda única agrava os desequilíbrios internos na
zona Euro, e funciona como instrumento para transferir riqueza do Sul para o
Norte da Europa. E, como consequência dos sacrifícios impostos aos
países do Sul, serve para atacar as condições de vida da
grande maioria da população.
Para Portugal o Euro tem sido um factor decisivo do contínuo agravamento
da crise. Portugal está mais pobre e as desigualdades aumentaram,
fundamentalmente devido ao Euro e ao seu sistema.
Como meros exemplos, comparando o quadriénio anterior ao Euro e os 17
anos do Euro: a taxa anual de crescimento do PIB caiu de 4,2% para 0,5% e a da
Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF) de 9,3% para -2,3%; a
produção industrial caiu 17%; e, em percentagem do PIB, a
dívida externa bruta aumentou 114 pontos percentuais, a líquida
78 pontos percentuais e a dívida pública 80 pontos percentuais.
Entre 1995 e 1999 criaram-se 400 mil empregos, e entre 2000 e 2016
destruíram-se 350 mil, e a taxa de desemprego média anual nesses
mesmos períodos mais que duplicou de 4,4% para 9,3%.
O Euro degradou as nossas capacidades de exportação nos sectores
em que a procura é mais sensível ao preço (a maioria das
nossas exportações) e aumentou a pressão sobre as nossas
empresas no mercado interno devido à baixa do preço em euros dos
produtos importados.
Teve consequências muito pesadas para as PME (que dominam a nossa
estrutura produtiva), quer pela perda de mercados para
exportação, quer pela redução das margens de lucro
no mercado interno, reduzindo as suas capacidades de investimento e consequente
competitividade futura e obrigando-as ao endividamento acrescido,
fragilizando-as face aos bancos.
Como não é possível transformar o Euro-moeda única
em Euro-moeda comum, porque a Alemanha não quer ter de revalorizar
fortemente o marco, a necessária recuperação da soberania
monetária impõe que Portugal saia da zona Euro, recupere a sua
moeda e possibilite ao Banco de Portugal assumir todas as suas
funções como banco central, designadamente como financiador de
última instância e garante da liquidez interna. Uma saída
negociada tanto quanto possível.
A saída da prisão da moeda única é uma
condição necessária, embora não suficiente, para
sair da crise. Os objectivos a prosseguir com a saída do euro e
subsequente desvalorização cambial, constituem um conjunto
coerente, visando reencontrar um caminho de forte crescimento, a
estratégica reindustrialização do país, e maior
justiça social pela criação de empregos e por uma
alteração da distribuição do valor acrescentado
entre patronato e trabalhadores (mas também entre sector financeiro e
sectores produtivos).
A saída do Euro é uma operação complexa, sujeita a
riscos que não se podem subestimar, e deve ser integrada numa
política global de reconstituição do nosso aparelho
produtivo para aproveitar todo o seu potencial. E tem custos que têm de
ser assumidos, mas que serão sempre muito inferiores à
permanência no Euro em que a desvalorização cambial
continuará, inevitavelmente, a ser substituída pela
desvalorização interna, fundamentalmente com a
redução progressiva dos salários e das pensões de
reforma, o enfraquecimento do Estado social e do factor trabalho, o aumento do
desemprego como instrumento para manter baixas taxas de inflação
(as alcunhadas reformas estruturais).
Os aduladores do Euro, os que há 20 anos e mais defenderam e foram
responsáveis pela entrada na moeda única e não têm a
humildade de fazer um
mea culpa
pelo erro em que incorreram (que já tanto custou ao país e aos
portugueses), persistem na defesa insana de manutenção na zona
Euro recorrendo a argumentos catastrofistas. Cavaco Silva é um exemplo,
mas há muitos mais.
São, na generalidade, argumentos tão terroristas quanto
falaciosos, seguidos e amplificados pela comunicação social.
Vejamos alguns deles.
-
"A moeda desvalorizava-se brutalmente, a inflação aumentava
bastante, ocorreria uma forte desvalorização dos
salários."
A verdade é que a moeda se desvalorizará tanto quanto o exige a
necessária reposição dos equilíbrios macro na
economia portuguesa. Nem mais nem menos "brutal" do que isso, pois
será dirigida pelo Banco de Portugal e não deixada à livre
flutuação nos mercados financeiros. E é falsa a
sugestão implícita dos Euro-terroristas da igualdade entre taxa
de desvalorização, taxa de inflação e
redução dos salários.
Quanto à inflação importada, será muito menor que a
taxa de desvalorização (cerca de um quarto) pois o peso das
importações no consumo privado é cerca de 26%. E o choque
será apenas inicial, rapidamente regressando ao nível da
inflação "estrutural" (veja-se o exemplo recente da
Islândia). Isto no máximo, porque existem estudos mostrando que a
evolução da taxa de câmbio se transmite de forma parcial e
diferida no tempo e nem sempre na sua totalidade.
No que respeita aos salários, nada obriga a que tenham de ser reduzidos
em termos reais por efeito do aumento da inflação e muito menos
ao nível desta. É possível indexar os salários e as
pensões de reforma à taxa de inflação, de forma a
manter intacto o seu poder de compra e, simultaneamente, reforçar a
legislação laboral e o nível de emprego que
tenderão ao aumento dos salários.
-
"Ocorreria um forte agravamento das dívidas do Estado, dos bancos e
das empresas, porque temos a nossa dívida expressa em euros."
Pelo contrário, em termos reais as dívidas ao exterior seriam
reduzidas por efeito da desvalorização da nova moeda. Desde logo
porque a desvalorização permite tornar sustentável a
trajectória da dívida, com o crescimento temporário da
inflação e com o retorno do crescimento económico.
Mas também porque a maioria dessas dívidas foi emitida segundo a
jurisdição nacional, pelo que pode e deve ser redenominada em
escudos. Depois porque existe legislação da própria UE
(Regulamento (CE) N.º 1103/97 do Conselho de 17 de Junho de 1997),
relativa precisamente à passagem das dívidas denominadas em
moedas nacionais para e denominação em euros, assumindo
expressamente "que o reconhecimento da legislação
monetária dos Estados é um princípio universalmente
aceite", "que a confirmação expressa do
princípio da estabilidade implicará o reconhecimento da
estabilidade dos contratos e outros instrumentos jurídicos nas ordens
jurídicas de países terceiros", e que "o
termo "contrato", utilizado na definição do
conceito de instrumentos jurídicos, deve incluir todos os tipos de
contratos, independentemente do modo por que foram celebrados".
Acresce que, no que respeita às contas com o exterior, quer os bancos
quer as grandes empresas têm débitos e créditos, havendo um
efeito de compensação, ao menos parcial. Ou seja, as
dívidas ao exterior não redenomináveis em escudos
atingirão valores substancialmente menores que os nominais, sendo
geriveis.
-
"Verificar-se-ia uma fuga massiva de capitais, lançando o
país na bancarrota."
O risco existe, devendo-se sobretudo à desvalorização, que
é necessária, e não à troca da moeda. Trata-se de
uma questão tão velha quanto a respectiva solução:
um rigoroso controlo dos movimentos de capitais. O Estado e o Banco de Portugal
terão ao seu dispor os instrumentos necessários para o efeito.
Aliás, temos um exemplo concreto e recente da sua
aplicação: em Chipre, em 2013, o livre movimento de capitais foi
bloqueado, e de forma eficaz. Este controlo foi pedido pela zona Euro, em nome
dos "sagrados" interesses da banca. Foram os próprios
"patrões" da moeda única que mostraram a possibilidade
técnica do controlo de capitais e a aceitabilidade de o fazer dentro da
UE.
Tenderá a implicar uma reforma do sistema financeiro interno e um
aumento do controlo directo e indirecto do Estado sobre o sistema, o que
também será positivo para combater a economia de casino.
-
"Ficaríamos sujeitos a uma forte especulação
cambial."
Quanto mais a taxa de câmbio de uma moeda reflectir os fundamentos
económicos do país, menor é o risco da
especulação dos mercados financeiros. E a própria
integração no mecanismo de taxas de câmbio (que considero
desejável) é um factor de redução do risco e dos
custos de eventuais especulações. Para além do mais,
olhe-se para a própria UE: há países que têm moeda
própria porque apesar de cumprirem os critérios nominais
necessários para integrar o Euro não querem fazê-lo.
Nomeadamente, para além do RU de saída, a Suécia, a
Dinamarca e a Polónia. Para além destes países terem
resistido à crise melhor que os da moeda única, não consta
que tenham estado sujeitos a grandes especulações cambiais.
-
"O financiamento externo despareceria, o que paralisaria a economia."
Há cinco anos consecutivos o País regista uma capacidade
líquida de financiamento, o que significa que não necessita de
financiamento externo.
Isto resultou quer do aumento da balança de serviços quer da
redução do défice da balança de mercadorias, sendo
certo que em parte esta decorreu do regime de austeridade. Mas com a
desvalorização cambial é expectável que o saldo da
balança de bens e serviços aumente ainda mais (que não
pela via da redução do consumo), o que conduzirá a um
maior e sustentado saldo positivo da balança corrente e ao aumento da
capacidade líquida de financiamento da economia portuguesa.
Donde resulta que o problema do financiamento externo se coloca
fundamentalmente em relação à dívida externa
actualmente existente, a amortizar ao longo de anos, e que deverá ser
reduzida no âmbito de uma reestruturação da dívida.
Mas a perspectiva de aumento da solvabilidade do País, e consequente
capacidade de reembolso, por efeito do forte crescimento, tende a reduzir o
risco de dificuldades no financiamento externo, antes pelo contrário.
Em suma, a recuperação da soberania monetária longe de ser
impossível, de ser uma
política "extremista" ou de constituir uma
"brincadeira", para além de necessária é
perfeitamente possível e realizável. Deve ser feita por
razões económicas, financeiras e sociais, mas também por
razões políticas. Porque sem soberania monetária
não há verdadeira soberania nacional e porque é a
única forma de recuperarmos os instrumentos de política sem os
quais não existe a escolha de que é feita a soberania
democrática.
O original encontra-se em
www.abrilabril.pt/recuperar-soberania-monetaria
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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