Um modelo de crescimento económico baseado na redução dos salários nominais:
A nova Lei do Subsidio de Desemprego e a Lei da Mobilidade da Função Pública

por Eugénio Rosa [*]

RESUMO DESTE ESTUDO

No Relatório do Orçamento de Estado para 2006 (OE2006), o governo considerava que "a única forma de manter níveis de competitividade externa capazes de repor as exportações no centro da recuperação da procura é através da contenção …. dos custos unitários do trabalho" (pág. 2).

Dois novos diplomas que o governo tenciona aprovar – um novo Decreto-Lei sobre o Subsidio de Desemprego e a Lei de Mobilidade da Administração Pública – introduzem mecanismos que poderão determinar reduções significativas nos salários nominais (em euros) que os trabalhadores recebiam antes de serem despedidos ou colocados no "quadro de supranumerários".

Assim, de acordo com o projecto de diploma sobre o subsidio de desemprego, o trabalhador que fosse despedido seria obrigado, sob pena de perder o direito a receber o subsidio de desemprego, a aceitar um emprego desde que o salário ilíquido oferecido fosse igual ou superior, nos primeiros seis meses após o despedimento, em 25% ao valor do subsidio de desemprego e, a partir do 7º mês de desemprego, em apenas 10%. Isto significaria, em relação à remuneração que o trabalhador recebia na data em que foi despedido, uma redução em euros que podia variar entre -45% e -54%.

O segundo diploma – Lei de Mobilidade da Administração Pública – tem mecanismo seja diferente mas o resultado final poderia ser muito semelhante. Assim, os trabalhadores colocados na "Situação de Mobilidade Especial", que é o novo nome do "quadro de supranumerários", ou seja, em inactividade forçada, receberiam do Estado uma parte do seu vencimento que varia entre 66% e 29% do vencimento anual que tinham quando estavam em exercício. Para poderem receber 66% do vencimento só poderiam realizar biscates para entidades privadas, portanto em trabalho precário. E isto porque teriam de estar permanentemente disponíveis para participar em processos de selecção, em acções de formação ou reiniciar funções, sob pena de pesadas sanções. No segundo caso, ou seja, para receber 29% do vencimento. teriam de pedir uma licença extraordinária. Só nesta situação é que o trabalhador poderia ter uma actividade remunerada com permanência no sector privado.

No entanto para entender o que tudo isto significa para o trabalhador, é preciso ter presente que, contrariamente ao que sucede no sector privado, na Administração Pública os trabalhadores não têm direito nem à indemnização nem ao subsidio de desemprego, quando perdem o seu posto de trabalho. Por isso, aqueles importância que receberiam – entre 66% e 29% do vencimento que tinham quando estavam a trabalhar – não é mais do que a indemnização e o subsidio de desemprego pago a prestações, e não qualquer privilégio especial como muitas vezes se pretende fazer crer. Em muitos casos aquelas percentagens do vencimento que se garantiriam aos trabalhadores – entre 66% e 29% – são até inferiores ao valor do subsidio de desemprego que é, como se sabe, 65% da remuneração declarada antes do despedimento.

É evidente que, quer num caso quer no outro, as entidades patronais conhecendo a situação difícil em que se encontram os trabalhadores resultante de estarem a receber apenas uma parte do seu vencimento, e conhecendo que uma parcela é já paga pelo Orçamento do Estado, naturalmente aproveitariam para pagar aos trabalhadores salários nominais mais baixos.

Em resumo, embora os mecanismos sejam diferentes os resultados poderiam ser semelhantes, ou seja, uma redução dos salários nominais que os trabalhadores recebiam antes ou de serem despedidos ou de serem colocados no "quadro de supranumerários", associada ao aumento da elevada precariedade já existente. A concretizar-se tudo isto significaria a promoção de um modelo de crescimento económico baseado em baixos salários, em trabalho precário e pouco qualificado, cujo esgotamento e falência já estão sobejamente provados, e que conduziram o País à grave crise que actualmente enfrenta.



Uma das propostas defendidas pelos defensores do pensamento económico único, e pelo próprio governo é a redução dos salários dos trabalhadores como forma de aumentar a competitividade da Economia Portuguesa. No próprio Relatório do Orçamento do Estado para 2006 (OE2006), o governo afirma que "a única forma de manter níveis de competitividade externa capazes de repor as exportações no centro da recuperação da procura é através da contenção …. dos custos unitários do trabalho" (pág. 2). Nos casos mais extremos, os defensores do aumento da competitividade com base na redução dos salários, chegam mesmo a defender a diminuição dos salários nominais como o fez Silva Lopes num debate realizado recentemente no ISCTE.

As duas propostas do governo – a novo Decreto-Lei do Subsidio de Desemprego que esteve em apreciação pública e a Proposta Lei da Mobilidade para a Função Pública que estará brevemente – se forem aprovadas e promulgadas poderão determinar a diminuição dos salários nominais dos trabalhadores que forem afectados por elas É o que provaremos neste estudo analisando alguns aspectos importantes daqueles projectos de diplomas

A NOVA LEI DO SUBSIDIO DE DESEMPREGO PODERÁ DETERMINAR A REDUÇÃO DOS SALÁRIOS NOMINAIS DOS TRABALHADORES EM MAIS DE 45%

Segundo a alínea c) do nº1 do artº 13º do novo projecto de diploma sobre o subsidio de desemprego, é considerado "emprego conveniente", sendo o trabalhador obrigado a aceitá-lo pois se o não fizer perde o direito ao subsidio, um emprego com um salário significativamente inferior àquele que o trabalhador recebia antes de ser despedido.

Efectivamente, de acordo com aquele artigo, nos primeiros 6 meses após ter sido despedido, o trabalhador é obrigado a aceitar um emprego desde que o salário ilíquido seja igual ou superior em 25% ao subsidio de desemprego. A partir do 7º mês de desemprego, o trabalhador passaria a ter de aceitar um emprego desde que o salário ilíquido fosse apenas igual ou superior em 10% ao subsidio de desemprego. E o subsidio de desemprego corresponde no máximo a 65% do salário declarado pela empresa antes do trabalhador ser despedido, o que significaria uma redução muito significativa da retribuição que o trabalhador recebia na data que foi despedido.

Por ex., em 2003, o salário médio mensal declarado à Segurança Social pelas empresas, de acordo com as "Estatísticas da Segurança Social", foi de 563,4 euros. Se um trabalhador com este salário fosse despedido ele teria direito a um subsidio de desemprego que devia rondar os 366,2 euros por mês (65% de 563,4 euros). Nos primeiros 6 meses após ter sido despedido ele seria obrigado a aceitar um emprego com um salário de 458,12 euros e, a partir do 7º mês de desemprego, ele já seria obrigado a aceitar um emprego com um salário ilíquido de apenas 402,82 euros por mês. No entanto, o trabalhador quando foi despedido, segundo os dados do "Inquérito aos ganhos" do Ministério do Trabalho e Segurança Social, a remuneração média base que recebia era de 744,5 euros e o seu ganho médio total de 879,4 euros. Portanto, depois de 6 meses de desemprego o trabalhador é obrigado a aceitar um emprego desde que a salário ilíquido que vai receber seja, pelo menos, igual a 54,1% (-45,9%) do salário base que recebia antes de ser despedido, ou 45,8% (-54,2%) do ganho total que tinha na data do despedimento. E isto tudo de acordo com dados publicados pelo Ministério do Trabalho e da Segurança Social.

Para além disso, e de acordo com o mesmo projecto de decreto-lei, o trabalhador ainda poderia ser obrigado a aceitar duas outras condições constantes da definição de emprego conveniente, ou seja, de emprego que o trabalhador desempregado é obrigado a aceitar sob pena de perder o direito ao subsidio de desemprego, que também lhe poderão acarretar mais prejuízos. E essas condições são as seguintes: (1) Obrigação de aceitar um emprego se as despesas com a deslocação não forem superiores a 10% do salário ilíquido reduzido (artº 13º, nº1, d, i); (2) Obrigação de aceitar o emprego se o tempo de deslocação não for superior a 25% do horário de trabalho, ou seja, a 2 horas por dia, o que determinaria que a jornada total de trabalho (tempo de trabalho+ tempo gasto em transportes ) subisse para 10 horas diárias (artº 13º, nº1, i).

E como tudo já não fosse suficiente, no mesmo projecto de Decreto-Lei existem formulações que colocam os desempregados numa situação em que poderiam ser objecto fácil da chantagem patronal, mas não só.

Por exemplo, de acordo com a alínea a) do nº1 do artº 13, é considerado como emprego conveniente, portanto aquele que o desempregado é obrigado a aceitar sob pena de perder o direito ao subsidio de desemprego, o que respeite " as retribuições mínimas (salário mínimo nacional) e demais condições estabelecidas na lei ou instrumento de regulamentação colectiva de trabalho aplicável". Portanto, esta formulação poderá levar o Centro de Emprego, ou a entidade patronal, ou até alguma jurisprudência a interpretar que basta ser satisfeita uma das condições – respeite o salário mínimo nacional ou o instrumento de regulamentação colectiva de trabalho – para que o desempregado seja obrigado a aceitar o emprego.

Mesmo em relação à segunda parte desta disposição, de que devem ser respeitadas "as retribuições mínimas e demais condições estabelecidas em instrumento de regulamentação colectiva aplicável", a forma como está formulada poderia levar a situações que poderiam contribuir para uma exploração acrescida do trabalhador. E isto por duas razões. Em primeiro lugar porque, de acordo com o nº1 do artº 552 do Código do Trabalho, a convenção colectiva de trabalho só "obriga os empregadores inscritos nas associações de empregadores signatárias bem como os trabalhadores ao seu serviço que sejam membros das associações sindicais outorgantes" ,parecendo ser suficiente a empresa não estar inscrita para não ser aplicável; pelo menos o desempregado poderia ser confrontado com esta interpretação patronal da lei. E em segundo lugar, tomando como base os dados do "Livro Verde sobre as Relações Laborais" o número de trabalhadores por conta de outrem não abrangidos nem por instrumentos de regulamentação colectiva, incluindo regulamentos de extensão, nem com vinculo público deverá rondar actualmente um milhão de trabalhadores.

Para defender o desempregado neste campo seria necessário alterar o que está no projecto de Decreto-Lei, substituindo o que está na alínea a) do nº1 do artº 13º, já citada anteriormente, pelo seguinte "Considera-se emprego conveniente aquele que respeite o Instrumento de Regulamentação Colectiva (IRCT) mais favorável para o trabalhador em vigor no sector de actividade e, no caso de não existir, as retribuições mínimas e demais condições estabelecidas na lei" Portanto, ficaria assim claro que seria sempre escolhido o IRCT desde que existisse um no sector, e só se aplicaria as retribuições mínimas no caso de não vigorar nenhum, o que não é claro com a redacção actual constante do projecto de diploma.

Em resumo, este projecto de diploma do governo, a ser aprovado com o conteúdo que tem, poderá promover um modelo de crescimento económico baseado essencialmente em trabalho barato que a experiência empírica e a análise económica já demonstraram que está esgotado em Portugal e que persistir nele, como parece o governo pretender, só poderá agravar ainda mais a crise e o atraso do País.

A LEI DA MOBILIDADE PERMITIRÁ ÀS ENTIDADES PATRONAIS PAGAR SALÁRIOS NOMINAIS MAIS BAIXOS PORQUE UMA PARCELA É FINANCIADA PELO ORÇAMENTO DO ESTADO

Outra fonte eventual importante de trabalho barato para as entidades patronais, porque financiado pelo Orçamento do Estado e pelo trabalhador, é a proposta de Lei de Mobilidade da Administração Pública do governo.

De acordo com esta proposta de lei, os trabalhadores considerados excedentários ou inadequados para o serviço resultantes dos processos de extinção, fusão e reestruturação de serviços, assim como de processos de racionalização de efectivos, seriam colocados na "Situação de Mobilidade Especial", que é agora o novo nome do "quadro dos supranumerários". E os trabalhadores deste "quadro de supranumerários",colocados na situação de inactividade forçada, percorreriam três fases (Transição, Requalificação e Compensação).

Durante a 1ª fase, chamada de "Transição" (artº 14), que duraria apenas os dois primeiros meses, o trabalhador receberia o seu vencimento por inteiro. Neste fase o trabalhador poderia reiniciar funções sem ter de fazer formação profissional.

Ao fim dos dois primeiros meses, não sendo colocado, o trabalhador passaria à fase de "Requalificação" (artº 15) que duraria 10 meses. Durante esta fase o trabalhador teria direito já a receber apenas 5/6 ( 83%) do vencimento.

Ao fim de 12 meses (2 meses referente à fase de "transição", mais 10 meses relativos à fase de "requalificação"), o trabalhador na Situação de Mobilidade Especial que não reiniciasse funções passaria à chamada fase de "compensação". Durante esta fase o trabalhador "aufere uma subvenção correspondente a 4/6 (66,6%) da remuneração mensal que auferia antes da colocação na situação de mobilidade especial" (nº 3 do artº 16), que é praticamente igual ao valor do subsidio de desemprego pago aos trabalhadores do sector privado.

Segundo o artº 21 da proposta de lei do governo, durante a fase de "compensação", que é a última fase, o trabalhador poderia "exercer qualquer actividade profissional remunerada fora das Administrações Públicas e de qualquer entidade pública" (a violação determinaria a pena de demissão da função pública). No entanto, embora pudesse exercer uma actividade profissional remunerada, ele teria de estar permanentemente disponível para participar em processos de selecção, em acções de formação, ou para reiniciar funções no serviço público, sob pena de lhe sofrer pesadas sanções, incluindo licença prolongada sem vencimento. Assim, o trabalhador poderia exercer uma actividade profissional remunerada mas ela não podia ser estável nem organizada, pois teria de estar permanentemente disponível recebendo apenas o correspondente a 66% do seu vencimento. Por outras palavras, poderia fazer apenas pequenos "biscates". É evidente que as entidades patronais conhecendo a situação do trabalhador, e sabendo que o Orçamento do Estado financia uma parte do seu salário, iriam naturalmente aproveitar a situação para pagar um retribuição reduzida.

Para fugir à instabilidade e ao arbítrio a que ficariam sujeitos, os trabalhadores na "Situação de Mobilidade Especial" que se encontrassem nas fases de requalificação ou de compensação poderiam requerer uma licença extraordinária. Mas se o fizessem teriam apenas direito a 12 abonos por ano com os seguintes valores: 70% do que estavam a receber nos primeiros cinco anos; 60% nos cinco anos seguintes, e apenas 50% a partir do décimo ano. Em percentagem do vencimento anual que receberiam se estivessem em exercício, o trabalhador que tivesse sido colocado há mais de um ano no chamado "quadro de supranumerários", e que solicitasse uma licença extraordinária, receberia somente o correspondem a 39,7%, a 33,9% e a 28,3%, respectivamente, do que receberia anualmente se estivesse em exercício. Para fugir à instabilidade a que estaria sujeito, o preço que o trabalhador teria de pagar seria muito elevado, em termos de redução do seu vencimento.

É evidente também que as entidades patronais sabendo a situação de dificuldade em que se encontra o trabalhador pois recebe apenas uma pequena parte do seu vencimento, e conhecendo que essa parte da sua remuneração é paga pelo Orçamento do Estado, poderiam aproveitar esse facto para pagar baixos salários.

UM MODELO DE CRESCIMENTO ECONÓMICO BASEADO EM BAIXOS SALÁRIOS QUE SE ESGOTOU E QUE ESTÁ CONDENADO AO FRACASSO MAS QUE O GOVERNO INSISTE EM SEGUIR

Como ficou claro da análise realizada, os dois projectos de diploma do governo contêm mecanismos que, se forem aprovados e promulgados, poderão determinar, por um lado, a redução dos salários nominais dos desempregados ou "supranumerários" relativamente ao que recebiam antes ou de serem despedidos ou de serem colocados na "Situação de Mobilidade Especial" e, por outro lado, um aumento da já elevada precariedade existente em Portugal.

E tudo isto apesar do salário hora em Portugal ser em 2004, segundo o Euroatat, de apenas 9,56 euros, enquanto a média comunitária atingir, na UE25, 21,22 euros; na UE15, 24,02 euros e, na zona do euro, 23,71 euros, ou seja, os salários médios comunitários eram superiores entre 2,2 e 2,5 vezes aos salários portugueses.

O nível dos salários em Portugal é inferior entre 45% e 39,8% à média comunitária, no entanto a Economia Portuguesa tem perdido competitividade nos últimos anos, o que tem determinado a redução continuada de quotas de mercado externo. De acordo com o Relatório do Banco de Portugal de 2005 (pág.86), a perda de quota de mercado pelas exportações portuguesas atingiu -3,9% em 2004 e, em 2005, -4,1%.

Enquanto isto sucede com Portugal, países com custos salariais muito mais elevados, como é o caso da Alemanha, da Finlândia, da Suécia, etc..cujo salário hora pagos aos trabalhadores são, respectivamente, 26,22 euros, 26,83 euros e 30,43 em euros (em Portugal, é apenas 9,56 euros), e que apesar disso são países altamente competitivos. E isto porque muitos dos produtos portugueses são produtos de baixo valor acrescentados, com elevada incorporação de mão de obra, pouco inovadores e de baixa qualidade, que se dirigem para segmentos de mercado que neste momento estão a ser invadidos por produtos de países como a China, o Paquistão , a Índia, e também provenientes dos dez países que aderiram à União Europeia em 2004,. com maiores vantagens competitivas.

Defender, como faz o governo e o pensamento económico único que domina os media, que Portugal só poderá ser competitivo se os salários, mesmo nominais, baixarem é condenar Portugal a produções de baixo valor acrescentado, e de baixa qualidade, ou seja, procurar continuar com um modelo de crescimento económico assente fundamentalmente em baixos salários, que tem condenado o País à crise e ao atraso.

05/Agosto/2006
[*] Economista, edr@mail.telepac.pt

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
06/Ago/06