Neste dia, no ano de 1383, começava em Lisboa a primeira
revolução burguesa do mundo. Revolução, pela mesma
razão que ninguém ousaria chamar "interregno" à
Revolução Francesa nem "crise" ao 25 de Abril.
Burguesa, porque, ainda que pavorosa aos próprios netos, inaugurou
definitivamente o poder dos "homens honrados pela fazenda". E,
à semelhança da revolução francesa ou do 25 de
Abril, a revolução portuguesa de 1383-1385 também foi
condenada ao olvido e à mentira com a diferença, no
entanto, de mais séculos de avanço.
Há 633 anos, a regente Leonor Teles, numa fuga desesperada para
Alenquer, prometia esmagar a Revolução queimando Lisboa com
"mau fogo", ará-la a carros de bois e encher tonéis com
as línguas das mulheres revolucionárias. A redoma de
silêncio que cobriu a Revolução quase faz crer que se
cumpriu o vaticínio de Leonor. Porque se calaram as vozes de 1383? Quem
mandou cortar as línguas dos sublevados de Lisboa?
Compreende-se o desconforto que a Revolução inspira na actual
classe dominante: a geração de Soares dos Santos, Américo
Amorim e Ricardo Salgado tem mais em comum com os senhores feudais
parasitários que, em 1383 se passaram para o lado de Castela do que com
a burguesia revolucionária de Álvaro Pais, Gil Fernandes e
Álvaro Coitado, construtores conscientes do capitalismo
embrionário a que Fernão Lopes chama a Sétima Idade do
Mundo "na qual se levantou outro mundo novo e nova geração
de gentes, porque filhos de homens de tão baixa
condição".
Mas o ódio de morte que, ainda hoje, o capital tem à
Revolução de 1383-1385 é mais profundo que a
degradação histórica de uma burguesia avinagrada pelos
séculos. O que mais assusta os novos senhores das novas glebas é
esta inegável verdade histórica: a primeira
revolução burguesa do mundo não foi feita pela burguesia,
mas pelos trabalhadores. Sob a liderança de ricos mercadores e
"homens de cabedal", quem derrubou a velha ordem foram os
miseráveis cabaneiros e a "malta das vinhas" sem terra nem
pão; foram os braceiros, cabreiros e ovelheiros enlouquecidos pela fome;
foram os menestrais das cidades em luta contra os salários tabelados;
foram os mancebos e pastores indignados com a Lei das Sesmarias. Foram, como
escreve Fernão Lopes, os "ventres ao sol".
Mesmo passados seis séculos, os poderosos ainda engolem em seco ao
recordar as imagens de Martinho, Bispo de Lisboa, a voar da torre da Sé
e devorado pelos cães; do fidalgo Nuno Rodrigues de Vasconcelos, morto
por mulheres lideradas por Margarida Anes, uma humilde adeleira; do senhor Pai
Rodrigues, perseguido por fojos e brenhas por centenas de populares; do triste
fim da Abadessa de Évora, nua no meio da praça, a suplicar pela
vida aos antigos servos De Norte a Sul, o povo respondia com
formidável violência ao quotidiano das violências dos seus
senhores: o trabalho até à inanição, as agulhas de
albardeiro espetadas nas línguas dos que protestassem; os açoites
no pelourinho por dá cá aquela palha; os infinitos
serviços pessoais obrigatórios; a polé para os que fugiam
à servidão.
DE QUEM FOR O REINO LEVÁ-LO-Á
Fernão Lopes escreveu que "Castela era contra Portugal e Portugal
contra si mesmo", ou seja, estamos diante de uma revolução
social que desencadeia uma intervenção militar externa. Contudo,
muitos historiadores não quiseram nunca ver este "Portugal contra
si mesmo", preferindo apresentar uma nação monolítica
unida contra o inimigo castelhano. De acordo com esta a perspectiva idealista,
na raiz da "crise sucessória" estão as
circunstâncias da morte de D. Fernando. Já velho, sem
descendência e tísico, o filho de D. Pedro, o Cru, é
seduzido por uma mulher casada, de origem nobre, cujos "cabelos ruivos
parecia que ardiam" e cuja beleza só era ultrapassada pela
inteligência: D. Leonor Teles. Deste casamento, feito às
escondidas em Leça da Palmeira enquanto a nova Rainha mandava matar quem
protestava, nascerá uma única criança: Beatriz, logo
prometida a D. Juan, rei de Castela, nos tratados de Salvaterra de Magos. Teria
sido esta estúpida decisão que desencadeou a
revolução. Nada mais equivocado.
Álvaro Cunhal, porventura o primeiro a compreender a
Revolução de 1383, é taxativo: "Os historiadores
burgueses têm apresentado sempre o casamento da filha única de D.
Fernando com o rei de Castela, em 1383, como "erro" de um rei
inconstante e imprevidente. A verdade é ter sido tal casamento uma
manobra política da nobreza, manobra maduramente reflectida e de efeitos
cuidadosamente previstos e desejados. ( ) Sentindo o terreno a fugir-lhe
debaixo dos pés, incapaz de suster com os seus recursos próprios
o movimento revolucionário ascendente, a nobreza procura deliberadamente
a entrada em acção contra a revolução ascendente,
do aparelho militar da aristocracia territorial de além fronteiras.
Nessa sua política, a nobreza de então seguiu o caminho que
sempre têm seguido as classes dominantes quando sentem em perigo a sua
existência. Ante a ameaça de serem desapossadas dos seus
privilégios as classes parasitárias preferiram sempre a uma
vitória das forças nacionais progressivas, a
dominação do seu país por um estado estrangeiro que abafe
a revolução e lhes mantenha esses privilégios".
Com efeito, a Revolução de 1383, como qualquer
revolução, não foi concebida por acidente. É o
resultado da pressão que, ao longo de toda a primeira dinastia, as
classes laboriosas e a burguesia exerciam junto do poder central para aliviar a
canga do feudalismo. A sociedade portuguesa vinha prenhe de
revolução há séculos, só ainda
ninguém tinha dado por isso. E ainda assim, durante todo o reinado de D.
Fernando, a nova sociedade fremia, no ventre da antiga.
VENTRES AO SOL
O Portugal do séc. XIV é uma enorme gafaria de todas as pestes
onde não entra a luz. É a idade do sebo humano em todas as
coisas. É o tempo da magia e da superstição. Trata-se a
dores de dentes com esterco de porco, leite de cadela, fígado de
doninha, carne de cobra cozida depois de muito vergastada, raiz de aipo trazida
ao pescoço, grão de sal envolvido numa teia de aranha A
sabedoria clássica é um vulto acoitado nas mourarias. Sucedem-se
as ondas de loucura e de fome, cada uma pior que a anterior até se comer
a sementeira e todos os animais e a hipoteca do futuro. É o fim do mundo
que vem de Oriente nas patas de Tamerlão. Mas este é
também o tempo de sonhos maiores que a vida, que vêem além
de todas as fronteiras históricas. De Inglaterra chegam camponeses
refugiados do exército camponês de Wat Tyler, que organizaram
greves, puseram cerco à Torre de Londres e recitam de memória
passagens de Jonh Ball "Quando Adão cavava e Eva fiava, quem era
então o Senhor? Desde o início dos tempos todos os Homens foram
criados iguais, e a nossa opressão e servidão veio pela
opressão injusta de homens maus ( ) Por isso exorto-vos! Chegou o
tempo de sacudir o jugo da servidão e recuperar a liberdade". De
França chegam ainda os rumores da Grande Jacquerie: com o Palais Royale
cercado por dezenas de milhares de pobres; o rei a enfiar na tola o
chapéu vermelho e azul dos revoltosos para pisgar-se disfarçado;
Guillaume Cale traído e coroado "rei dos pobres" com uma coroa
em brasa.
Este é também o tempo de todas as heresias. Begardos, beguinos,
fraticelli, lolardos, cátaros, adamitas, taboritas, orebitas ou
utraquistas, já vão sendo relaxados por apóstatas ou
replaspos, cismáticos ou nefandos. E todos ardem da mesma forma no fogo
do Senhor.
No contexto da Guerra dos Cem Anos, cada partido e cada classe escolhe o cisma
que mais convém: a nobreza ultra-montana alinha com o anti-papa de
Avinhão Clemente VII. A grande burguesia portuguesa alia-se aos seus
principais parceiros comerciais: flamencos, prazentins e ingleses do papa
Urbano VI.
Burgueses que arroteiam uma courela e servos que a trabalham sobrevivem ambos
apertados numa tenaz de humilhações, impostos e
obrigações de todas as talhes e feições: são
açougagens e brancagens, ajudadeiras e fossadeiras, mealharias e
anadarias, montados e mordomados, foragens e portagens, jeiras e corveias,
tostões e capitações, jugadas e talhadas, salaios, lombos,
dízimos, alcavalas, censos, relegos, anudúvas, banalidades
É caso para se perguntar: ó terra jugadeira, ó terra
reguengueira, quanto do teu sal é suor dos servos de Portugal?
Contra este mundo, a 6 de Dezembro de 1383, enquanto o complô
burguês liquida o conde Andeiro nos passos da rainha, Álvaro Pais
cavalga pela cidade aos brados, "Acorramos ao Mestre, amigos! Acorramos ao
Mestre, ca filho é d'el-rei D. Pedro!". Do povo de Lisboa, a
burguesia não pretendia mais que a legitimação do
assassinato para depois encontrar uma solução moderada: casar o
mestre com a rainha ou simplesmente esperar pela libertação de
João de Portugal. Este filho de D. Pedro gozava de uma imensa
popularidade e surgia como a alternativa óbvia ao rei de Castela mas
estava a ferros em Castela desde que Leonor o convencera a matar a
própria esposa e sua própria irmã, Maria Teles,
prometendo-lhe a mão de D. Beatriz. Mas, consumado o crime, foi
denunciado por D. Leonor e obrigado a fugir para Castela, onde acaba
agrilhoado. Leonor vencera outra vez.
Mas o povo de Lisboa, mesmo que já houvesse rádios para
mandá-lo ficar em casa, não se satisfaz com os planos da
burguesia e força-a a transformar o golpe de Estado numa
Revolução, forçando depois os homens bons a assumi-la e
levá-la até às últimas consequências.
É o povo que impede o Mestre de fugir para Inglaterra. É o povo
que aclama o Mestre. É o povo que mata o alto burguês
Álvaro da Veiga que, com medo das repercussões, se recusa a sair
à rua para aclamar o Mestre. É o tanoeiro Afonso Eanes Penedo
que, quando os burgueses têm medo de assumir a revolução
desembainha a espada "Que estaes vós outros assim cuidando, e que
não outorgaes o que outorgaram quantos aqui estão? E como? ainda
vós duvidaes de tomar o Mestre por regedor destes reinos, e que tome
cargo de defender esta cidade e a vós outros todos? Parece que
não sois vós outros verdadeiros portuguezes! ( ) Eu em esta
cousa não tenho mais aventurado que esta garganta, e quem esto
não ha mister que o pague pela sua, ante que d'aqui parta." Ou
seja, aqueles que não têm mais nada a perder que a garganta,
descobrem que só assim, com lâminas contra gargantas, é que
se convencem aqueles que tudo têm a perder".
Os trabalhadores sabiam que perdendo a aposta acabariam como acabam sempre os
camponeses das revoltas falhadas: enforcados pelos chaparros até ao
Algarve. É daí que vem a coragem de Aljubarrota e a ferocidade
com que se perseguem os grandes fidalgos "e os meudos corriam apoz elles e
buscavam-nos e prendiam-nos tão de vontade que parecia que lidavam pela
fé". Como um rastilho, a revolução incendeia a terra.
Por todas as partes ouvem-se palavras de ordem de "Arraial! Arraial!
Mestre de Avis, Rei de Portugal"
AQUELLO QUE VOSSO NOM HE
Álvaro Pais, cérebro da Revolução, cedo compreende
o que tem nas mãos, como demonstra o profético conselho que
dá ao Mestre: "senhor, fazee per esa guisa: daae aquello que vosso
nom he, e prometee o que nom teemdes, e perdoaae a quem vos nom errou". A
revolução distribui entre burgueses, mesteirais e camponeses a
terra dos senhores feudais (daae aquello que vosso nom he), promete uma
sociedade completamente nova (prometee o que nom teemdes) e indulta todos os
que queiram combater do seu lado (perdoaae a quem vos nom errou).
Mas o povo vai mais longe e, nalgumas partes do país, não espera
pela revolução burguesa. Em Évora, o povo, liderado por
Gonçalo Eanes, cabreiro, e Vicente Anes, alfaiate, massacra a nobreza e
expulsa a burguesia sob o pretexto de obrigá-los a ir para Lisboa ajudar
o Mestre. Quando o conde de Viana tenta "tomar mantimentos contra a
vontade dos seus donos ( ) juntaram-se contra ele os das aldeias e
comarcas de redor. Emborilando-se eles com eles remessaram-lhe o cavalo e caiu
com ele em terra; e foi um vilão rijamente que chamavam de alcunha
Caspirre e cortou-lhe a cabeça e assim morreu". No Montenegro
(Chaves) improvisa-se uma reforma agrária; em Rio de Onor o povo
organiza-se numa comuna; nas Corvelinas institui-se que ali só entram
trabalhadores; Em Elvas, os fidalgos entrincheirados no castelo fazem sair um
camponês com as mãos decepadas ao pescoço. Em resposta, os
revolucionários fazem o mesmo a dois fidalgos. Por todo o Alentejo a
insurreição popular vai ganhando contornos de Jacquerie
até o próprio Nuno Álvares Pereira ter de intervir
militarmente e mostrar aos camponeses que ainda terão de esperar mais
seiscentos anos. Ainda assim, quem disse que o povo é sereno não
sabe quem foi Caspirre.
Desesperado, resta ao caquéctico Portugal feudal pedir ajuda a Castela,
que entra pela Guarda aglutinando a alta nobreza portuguesa. Ficam
temporariamente esquecidas as Guerras Fernandinas: esta é uma guerra de
classe. A própria Leonor, contrariada, entrega o regimento ao rei de
Castela, danando assim os Tratados de Salvaterra. Mas a Aleivosa tem uma
última carta na manga: casar-se com Pedro de Trastamara (primo do rei de
Castela), convencê-lo a matar o rei, fugir para Coimbra e governar
Castela e Portugal. O plano, contudo, é descoberto e Leonor irá
passar os seus últimos dias presa num convento em Tordesilhas.
A guerra intensifica-se. Lisboa é cercada duas vezes, uma das quais
durante cinco meses sujeitando a cidade a uma brutal poliorcética de
fome e terror. Mas o povo não cede. Na Batalha dos Atoleiros, em Abril
de 84, as forças portuguesas, com apenas 1500 homens, derrubam um
exército espanhol nutrido de 5000 soldados sem sofrer uma única
baixa. No ano seguinte, Aljubarrota dará o golpe final.
Conta Fernão Lopes que "n'aquelle tempo Arraia meuda, os grandes
escarnendo dos pequenos chamando-lhe povo do Messias de Lisboa que cuidavam que
os haviam de remir da sujeição d'el-rei de Castella. Os pequenos
aos grandes depois que cobraram coração, que se juntavam todos em
um, chamavam-Ihe traidores scismaticos que tinham da parte dos
castellãos por darem o reino a cujo não era. E nenhum por grande
que fosse era ouzado de contradizer a estos nem falar por si nenhuma cousa, por
que sabia que como falasse morte má tinha logo prestes, sem nenhum mais
puder ser bom. E era maravilha de ver que tanto esforço dava Deus
n'elles, e tanta cuvardice nos outros que os castellos que os antigos reis por
longos tempos, jazendo sobre elles com força de armas, não podiam
tomar, os povos meudos, mal armados e sem capitão, com os ventres ao
sol, ante de meio dia os filhavam por força".
Voltemos a Lisboa, há tantos meses cercada pelas tropas de Castela que
já não se sabe se ainda lá dentro há vivos.
Então, do castelo de Palmela, os revolucionários acendem uma
fogueira tão grande que pudesse ser vista pelos resistentes de Lisboa.
É o povo que, em delírios de fome e aos gritos pelas ruelas, diz
ver as chamas na lonjura. É o povo que, só vivo de comer
cadáveres, e ervas daninhas, sobe ao castelo e São Jorge e, em
resposta, acende outro fogo tão alto e luminoso que não chega
só a Palmela lá na outra banda, mas tão imenso que, hoje
mesmo e tantos anos depois, olhando da perspectiva certa pode-se ver como ainda
arde.
08/Dezembro/2016
Bibliografia:
Lopes, Fernão - Crónica de D. João I
Cunhal, Álvaro - As Lutas de Classes em Portugal nos fins da Idade
Média,
Borges Coelho, António - A Revolução de 1383
Cortesão, Jaime - Os factores demográficos na
formação de Portugal
Ilustração principal:
Bep Boatella - What happened in the "Grande Jacquerie"
Outras pinturas:
Álvaro Cunhal - Óleo sobre tela
Jaime Martins Barata - Fresco no Palácio de Justiça de Fronteira
Jean Wavrin - Crónica de Inglaterra