O impacto político-económico do pico do petróleo
por Rui Namorado Rosa
ENERGIA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO
A energia é um factor de produção determinante para o
desenvolvimento sócio-económico. No período de meio
século, de 1950 a 2000, o produto bruto agregado a nível mundial
cresceu à taxa anual de 3,9% enquanto o comércio de mercadorias e
serviços cresceu, ainda mais rapidamente, à taxa de 6,0%; foi a
globalização a galope; entretanto, o consumo mundial de
combustíveis fósseis aumentou à taxa anual de 3,5%, dupla
da taxa de crescimento demográfico.
Esse crescimento económico, a par da multiplicação da
população mundial, suportou-se na simultânea
multiplicação da produção de hidrocarbonetos. O
petróleo em particular, tornou-se na principal fonte de energia
primária global, desde que em 1967 superou o carvão,
posição dominante que ainda hoje mantém com 40% da energia
transaccionada. Será lógico questionar, então, que mundo
será o nosso quando a disponibilidade de petróleo entrar em
efectivo declínio. E se o
crescimento económico
é desejável ou sustentável.
O mundo em que hoje vivemos segue um curso novo desde os choques
petrolíferos produzidos nos inícios das décadas de 1970 e
1980.
Numa época então de prosperidade económica, Marion King
Hubbert (1903-1989) geofísico norte-americano, racionalista e
humanista previu em 1956 que a capacidade de produção de
petróleo nos EUA (exceptuado o Alasca) atingiria um valor máximo,
um pico, cerca de 1970, para depois declinar imparavelmente. Mensageiro de uma
má notícia, foi muito contestado, mas a sua previsão veio
a verificar-se verdadeira. Hoje, a produção dos EUA está
reduzida a 40% desse máximo; e esse país, outrora o maior
produtor e exportador, depende hoje em 70% de petróleo importado.
Para alguns analistas, os últimos dois anos, em que o crescimento da
procura se confronta constrangida por limitada capacidade de
produção, marcados também por subida de preço das
ramas e por défice de adequação da capacidade de
refinação, assinalam já uma transição em
curso para um novo período de insondáveis dificuldades.
As repercussões económicas dessa transição
estarão a revelar-se já determinantes no funcionamento e
organização da esfera sócio-económica. Se, como
algumas correntes de pensamento económico argumentam, a energia é
um factor de produção cuja real produtividade é muito
superior ao respectivo peso na estrutura de preços dos factores, a
disponibilidade de energia, independentemente do seu custo monetário,
será determinante para a possibilidade de crescimento económico.
A escassez de uma determinada fonte de energia primária requer a sua
substituição por outras fontes, de forma que a disponibilidade de
energia não se torne em factor limitativo da produção.
Essa substituição tem ocorrido no passado. O império
britânico construiu o seu poder político durante a
primeira
revolução industrial, suportando o seu crescimento
económico em abundantes reservas domésticas de carvão
mineral. Cerca de 1880, as duas fontes de energia primária dominantes no
plano mundial eram então a biomassa (lenha) e o carvão mineral,
em iguais proporções, a primeira em tendência descendente e
o segundo ascendente; a energia solar, eólica e hídrica mantinham
a sua histórica importância, que porém se tornara já
relativamente menor. Por esse tempo, também, o petróleo iniciava,
nos EUA, o seu ciclo de vida como combustível de futuro o suporte
físico da ascensão económica e política desse
país ao longo de quase todo o século XX.
O PENSAMENTO ECONÓMICO MATERIALISTA
Olhando para a História do pensamento económico rapidamente
constatamos que a integração da esfera da economia na esfera da
lei natural sempre esteve presente. Esta visão materialista seria
contrariada por várias escolas e presentemente pela doutrina neoliberal,
que a rejeita em absoluto, por se revelar altamente incómoda para o
domínio ideológico da burguesia. O marxismo adoptou desde
início essa interpretação integradora e materialista e
foi-se enriquecendo e progredindo ao longo do tempo com o trabalho de
vários economistas e outros investigadores notáveis, ainda que
não se reivindicando como marxistas, mas que objectivamente têm
contribuído para desmistificar o pensamento económico
oficial burguês.
Em meados do século XVIII, o iluminismo traduziu-se na primeira escola
de pensamento económico Fisiocracia, materializada na obra de
François Quesnay e seus discípulos. O seu princípio
fundamental era adoptar a riqueza material como resultado de recursos naturais,
cuja produção estaria sujeita a leis naturais. A produtividade
das actividades extractivas, particularmente a agrícolas, seria a
única capaz de gerar excedentes socialmente úteis,
atribuíveis à fertilidade do solo. A doutrina não era
explícita, nem teria à época fundamento suficiente para o
enunciar; mas que estava subjacente à fertilidade do solo e à
renda atribuível à Natureza, era a captação e
conversão da energia da radiação solar pelas plantas em
energia química da biomassa.
A descoberta dos princípios da Termodinâmica na primeira metade do
século XIX iria ser percepcionada pela sua importância para o
pensamento económico; a própria formulação desses
princípios em termos de fluxos e transformações e
conceitos de conservação e dissipação,
aparentemente comportava já essa proximidade epistemológica.
Sergei Podolinsky (1881) tentou reconciliar a teoria da mais valia do trabalho
com a análise termodinâmica do processo económico para
concluir que os limites do crescimento económico têm não
só a ver com relações de produção como
também com as leis físicas. Ele antecipou em quase um
século conceitos que são agora adoptados por algumas correntes
consolidadas de pensamento económico contemporâneo, designadamente
a análise dos fluxos de energia para aferir a eficiência de
sistemas produtivos, modelação da produtividade do trabalho em
função da quantidade de energia subsidiária do
esforço humano, e a importância do excedente de energia ou da
energia líquida em todo o processo de extracção de energia!
Ainda na segunda metade do século XIX, William Jevons, pioneiro do
pensamento económico neoclássico foi também precursor da
corrente da economia ecológica e energética. Em
The Coal Question,
1865, abordou a importância da energia primária para o
desenvolvimento económico e a sustentação do poder
político, associando a sustentabilidade do império
britânico à disponibilidade não constrangida de
carvão mineral. Evidenciou que, à medida que os estratos
superficiais eram esgotados, a extracção a progressiva
profundidade determinava a elevação do custo, o que colocava no
futuro uma ameaça ao império, quando destituído dessa
fonte de energia em que o poder económico estava essencialmente fundado.
Já no século XX, Frederick Soddy (1922) enfatizou a
importância dos princípios da Termodinâmica na esfera
económica, e reconheceu na transição das fontes de energia
renováveis de origem solar para as fontes de energia fóssil (uma
mudança de
fundos
para
depósitos
)
a base de sustentação do crescimento económico em curso. A
riqueza real estaria sujeita às leis físicas ao passo que a
dívida estaria sujeita às regras da contabilidade, com
propriedades contraditórias: a dívida cresce segundo uma regra
simples de juro composto, enquanto a riqueza material se degrada e dissipa;
aí residiria o divórcio entre as instituições
financeiras e a economia real. Esta duplicidade, fundada nas
relações sociais e consequentes propriedades do capital numa
sociedade de classes, permanece actual e ainda mais pertinente.
Nas décadas de 1920 e 1930 desenvolveu-se nos EUA o movimento
tecnocrático, dirigido por Howard Scott, incorporando personalidades
como M. King Hubbert. Os tecnocratas constituíram um movimento
racionalista radical, utópico, que propôs a
substituição pura e simples de políticos e
empresários por engenheiros e cientistas. Propugnaram e conduziram
numerosos estudos económicos, baseados não em unidades
monetárias mas sim físicas; argumentaram pela progressiva
substituição do trabalho humano por capital e energia, com vista
ao incremento da produtividade. Algumas das ideias técnicas do movimento
tecnocrático reemergiriam no último quartel do século XX,
designadamente na análise energética e na ecologia industrial.
Após a Segunda Guerra Mundial surgiram várias linhas de
pensamento económico crítico que procuraram trazer para a teoria
económica os fundamentos físicos da actividade económica.
M. King Hubbert, 1949, 1962 e 1974, que animara o movimento tecnocrático
na década de 1930 e persistira na crítica da economia
monetarista, procedia à análise sistemática e à
modelação físico-matemática dos dados
empíricos relativos à descoberta e extracção de
energia fóssil, para concluir com a previsão (pela primeira vez
em 1949) do pico da produção de petróleo nos EUA e no
mundo.
Howard T. Odum,
Environment Power and Society,
1971, adoptou um modelo de fluxos energéticos ao sistema integrado
sociedade - natureza,
e o princípio Darwiniano da selecção natural, para
enunciar um novo princípio, segundo o qual o critério da
selecção natural é a maximização da
eficiência energética (
princípio de máxima potência
). Argumentou que a energia está na origem do valor
económico; e que a todo o fluxo monetário está associado
um fluxo de energia em sentido contrário; todavia, o dinheiro flui em
circuito fechado, ao passo que a energia flui do exterior, através da
fronteira da esfera económica, para depois a deixar como calor
degradado. Ele foi também levado a realçar o conceito de
qualidade de combustível (baseado no output económico por
equivalente input calorífico), a adequação da qualidade
à finalidade, e a importância económica da acessibilidade
de combustíveis de elevada qualidade. Howard T. Odum foi protagonista
central na fundação da Ecologia como disciplina científica.
No mesmo período (décadas de 1970 e 1980) é relevante o
trabalho com uma abordagem fortemente interdisciplinar do matemático
Nicholas Georgescu-Roegen.
The Entropy Law and the Economic Process,
1971 assinala a sua incursão no domínio da Economia. Ele levou
ao extremo o questionamento da tradicional função de
produção de Cobb-Douglas a da intermutabilidade dos factores de
produção e, bem assim enfatizou o suporte material do processo
económico. A energia não pode ser aplicada sem um receptor ou
transmissor material, matéria e energia sempre actuam conjuntamente, e o
conceito de entropia e o de geração de entropia seriam igualmente
aplicáveis à energia e à matéria. Ele enunciou
mesmo um princípio dual do segundo princípio da
Termodinâmica, correspondente à dissipação de
matéria, que não foi acolhido, mas reflecte o seu contributo para
realçar a importância e as particularidades das
matérias-primas e dos materiais nos processos económicos.
Nas décadas de 1980 e 1990 são de relevar o trabalho de Robert
Costanza, Herman Daly, Robert Ayres e vários outros que, prosseguindo as
críticas e as alternativas de autores antecedentes, contribuíram
para a consolidação das escolas conhecidas por Economia
Ecológica e Ecologia Industrial.
R. Costanza, 1980,
Embodied Energy and Economic Valuation
trabalhou o conceito de energia incorporada em bens e serviços, tendo
verificado uma boa correlação estatística entre o
conteúdo de energia incorporada (contabilizando exaustivamente os inputs
energéticos indirectos) e o preço monetário, para
argumentar a favor de uma teoria de valor económico fundada na energia
incorporada, e admitiu que um mercado perfeito (embora não existente)
conduziria a preços proporcionais à energia incorporada.
Herman Daly retomou a crítica à sustentabilidade física do
crescimento económico, contrastando esse conceito com as leis da
Termodinâmica; bem como a crítica da concepção
circular auto-sustentada do processo económico, o valor de troca
incorporado nos bens, fluindo das empresas para as famílias, um fluxo
contrário de igual valor, mas na forma de factores de
produção, fluindo das famílias para as empresas. Daly
é também conhecido pela crítica ao modelo tradicional de
crescimento económico e por ter argumentado a favor de uma economia
controlada em estado estacionário, por essa via mantida
sustentável (
Steady State Economy,
1977).
A Robert Ayres, com início em 1978, se deve um extenso corpo de
investigação económica com forte suporte empírico,
focalizado sobre os fluxos de matéria e energia através da esfera
económica em interacção com a Natureza, sujeitos aos
princípios da Termodinâmica. Ele considerou em particular o
problema da exaustão de recursos naturais; recursos materiais de
decrescente teor (maior entropia) requerem crescente quantidade de energia de
elevada qualidade (baixa entropia) para serem extraídos; por
consequência, enquanto um stock material é exaurido, é
também acelerada a exaustão de um stock de energia de baixa
entropia. Este efeito é ampliado, pois que se repete na própria
extracção da energia que é utilizada. Paralelamente,
amplifica-se o impacto ambiental dos resíduos das
extracções.
Assim, nas duas últimas décadas emergiram organizadas duas
correntes de pensamento económico sediadas nos EUA mas com
expressão mundial a Economia Ecológica e a Ecologia
Industrial que reflectem as visões materialistas da esfera de
actividades económicas, integrada na Natureza e à sua
semelhança, complexa e dissipativa.
A PREMENTE SUPERAÇÃO DA CRISE
Antes da revolução industrial existiam apenas três fontes
primárias de energia: o trabalho somático humano e animal (ambos
essencialmente suportados no fluxo de radiação solar convertida
em energia química e armazenada como biomassa pelas plantas
agricultura e silvicultura); e a energia mecânica dos fluxos
hídrico e eólico.
A eficiência líquida da fotossíntese pelas plantas verdes
é apenas poucas partes em cem, mesmo nas condições mais
favoráveis; por sua vez, a eficiência de conversão da
ração ou forragem em força motriz somática, por
animais de tiro, é perto de 5% apenas. Em consequência, a
eficiência global de conversão de energia solar em trabalho
é muito baixa. Todavia essa era (é) a principal fonte de energia
nas sociedades pré-industriais. Nas actuais sociedades industriais, a
agricultura e a pecuária, não obstante o importante manancial
solar, fornecem um input mínimo para o balanço energético
global da economia; na realidade, o sector agro-pecuário intensivo exibe
um balanço energético francamente negativo. E o trabalho humano
é uma fracção mínima da força motriz
incorporada nos processos económicos em geral.
Os combustíveis são consumidos seja na produção e
utilização directa de energia térmica seja na
produção de trabalho ou força motriz (mediante a
combustão em máquinas ou motores térmicos). A biomassa
só foi um combustível importante até ao início do
século XIX; a partir de então, a disponibilidade de lenha
começou a escassear face à crescente procura de
combustível requerido pelo crescimento da produção
industrial e foi progressivamente substituída pelo carvão
mineral; mas só na viragem para o último quarto do século
XIX o carvão superou a biomassa no aprovisionamento de
combustível. E o carvão, cuja importância relativa
continuou a crescer até cerca de 1930, só à entrada do
último terço do século XX seria superado pelo
petróleo. No fim do século, cinco fontes primárias
asseguravam contribuições importantes, e em boa medida
especializadas, no aprovisionamento mundial de energia: o petróleo com
40%, o gás natural e o carvão com cerca de 25% cada, a
fracção restante sendo satisfeita pelas energias nuclear e
hídrica.
O capital não é mera riqueza, mas riqueza que acresce mediante a
circulação de bens transaccionados. Para se expandir, o capital
necessita de adquirir capacidade de trabalho na forma de trabalho assalariado.
Assim sendo, o capital é e requer uma relação social.
A taxa de mais valia pode crescer ou porque mais trabalho é
extraído, para além do necessário à
reposição da capacidade laboral, ou porque menos trabalho
é necessário a essa reposição, em
consequência do incremento da produtividade do processo. Como regra, a
inovação tecnológica conduz ao incremento do capital
constante e à redução do capital variável e,
portanto, à elevação da composição
orgânica do capital; a mecanização, a
automação, a aceleração de ritmo e a economia de
escala são vias que conduzem todas nesse mesmo sentido. Segundo Karl
Marx, não obstante a taxa de mais valia poder aumentar, esse facto
combinado com o sistemático aumento da composição
orgânica do capital, resultam necessariamente em tendência para o
declínio da taxa de lucro, o que seria uma das causa de crise do
capitalismo.
O
capital natural
é um termo utilizado para designar a capacidade da Natureza fornecer
inputs (matérias-primas) e assimilar outputs (efluentes e
resíduos) dos processos produtivos. Na medida em que a esfera
biofísica se contém na esfera económica, os fluxos de
matéria e energia entre uma e outra devem ser contabilizados em termos
físicos e em termos monetários. Porém, só
recentemente e em apenas alguns países, essa interacção e
interdependência começou a ser contabilizada. Entretanto, o solo
é um capital natural que há muito foi objecto de
apropriação privada; algumas florestas e parques nacionais
são ainda preservados como propriedade comunal ou pública. A
atmosfera, o mar e os rios devem ser considerados como domínio
público, ainda que estejam sujeitos a pressão para
apropriação pelo estados e até objecto de
apropriação ou negócio privados.
Todavia, os hidrocarbonetos são recursos naturais que vêm sendo
extraídos, sem que lhes seja atribuída expressamente uma renda,
daí sendo extraídos segundo uma lógica que é ou
política ou comercial, movida ou pela rapina ou pelo lucro absoluto.
A energia está incorporada no fabrico do capital fixo e é
componente omnipresente do capital circulante. Em particular, a
especialização vertical e horizontal da produção
mundial significa uma colossal divisão internacional do trabalho,
só sustentável por extensivos sistemas logísticos e
poderosas frotas de transportes rodoviário, marítimo e
aéreo, com elevadas capacidades e ritmos de circulação.
É um exemplo da intensificação energética da
economia e da sua dependência e vulnerabilidade face aos
combustíveis líquidos.
O crescimento do investimento, da produção e do comércio
mundiais verificado ao longo do último século, não seria
possível e só encontra paralelo no crescimento do consumo de
energia, particularmente do petróleo. Dizemos que o petróleo
sustentou o enorme incremento da composição orgânica do
capital, e por essa via será não só responsável
pelo acelerado declínio da taxa de lucro, como também suspeito
pela pressão colocada na elevação da taxa de mais valia.
Como será o mundo, passado o pico da produção do
petróleo? Ao contrário da evolução em espiral
(hélice) ascendente que se verificou no passado, em que avanços
das forças produtivas foram resolvidas por avanços nas
relações de produção, a resolução das
presentes contradições poderá passar por um retrocesso da
produtividade (por força das limitações quantitativas e
qualitativas do factor energia ainda que não definitivas), o que
não põe em causa a necessidade da alteração das
relações de produção, antes a coloca com acrescida
premência. Estaremos já a assistir a essa crise
irreversível do capitalismo?
12/Julho/2005
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