O Próximo e Médio Oriente em guerra

por Rui Namorado Rosa

Na sequência do 11 de Setembro de 2001, a administração dos EUA teve a oportunidade de dar um novo impulso ao seu plano de ocupação militar do Próximo e do Médio Oriente e na Ásia Central e Meridional. Estabeleceu imediatamente bases no Uzbequistão e no Kirguizstão, que utilizou no ataque ao Afeganistão e nas quais permanece.

Na região do Golfo Pérsico-Arábico, antecedendo a agressão ao Iraque, os EUA deslocaram a sua maior base aérea na região, sita na Arábia Saudita, para o Qatar. Mas nem o Qatar nem o Kuwait, que tem servido de base militar de facto desde 1990, oferecem a profundidade estratégica e a flexibilidade que bases no interior do Iraque podem oferecer. A administração norte-americana enquanto dirigente da coligação agressora e ocupante do Iraque, com muitas dezenas de bases no terreno, vai instalando quatro bases militares permanentes que de todo não quererá abandonar nunca. São elas o aeroporto internacional de Bagdade, a base aérea de Talil perto de Nasiriya, uma base no deserto ocidental perto de Síria e o aeroporto de Bashur no Curdistão, perto da convergência das fronteiras com a Turquia e o Irão e somente a 500 km de Baku, a capital de Azerbaijão.
http://www.ipsnews.net/interna.asp?idnews=21331
http://www.globalsecurity.org/military/facility/iraq.htm

A Arábia Saudita, com o seu enorme território (2.260 mil km2), desempenha um papel central na geopolítica do Médio Oriente, pela sua posição geográfica na articulação de continentes e mares, pelos seus recursos petrolíferos (os maiores do mundo) e pela sua íntima relação económica e política com os EUA.

A influência dos EUA sobre a Arábia Saudita foi cimentada em 1945, presumivelmente na base do apoio oferecido pelo presidente dos EUA ao regime feudal do rei saudita em troca do livre acesso ao petróleo aí descoberto em 1938. O campo petrolífero de Ghawar havia sido identificado e em breve confirmado (1948) como o maior do mundo. Quatro companhias norte-americanas constituíram a Aramco (Arabian-American Oil Company) para explorar esses recursos, mas estavam juridicamente impedidas de aí actuar por força do Red Line Aggrement (1928), acordo sobre que fora estabelecido o cartel entre as empresas petrolíferas que operavam no território do antigo império Otomano. Mas com a nova correlação de forças emergente da Segunda Guerra Mundial e o apoio jurídico e político norte-americano, o cartel da Red Line Agreement veio a ser extinto mediante um “acordo entre cavalheiros” para a partilha das riquezas do Médio Oriente, no Hotel Aviz em Lisboa, em 1948. A Aramco ganhou então livre acesso ao petróleo saudita; em 1979 seria nacionalizada, à semelhança do que acontecera em vários outros países árabes, inspirados pelos movimentos de descolonização e de nacionalismo árabe.

Porém, também em 1948 foi criado o estado de Israel, após terroristas sionistas terem forçado a entrega da administração do território da Palestina às autoridades britânicas. O conflito israelo-arábe iniciava-se, para perdurar sem solução até hoje, envenenando e influenciando grandemente a política em todo o Médio Oriente.

A relação entre a oligarquia real saudita e a administração norte-americana sempre foi impopular e suscitou oposição popular. O povo saudita é dominado pela seita religiosa Wahabbi. Com uma população em rápido crescimento e muito jovem, cerca de 40% da população com idade inferior aos 15 anos, compreende numerosos refugiados palestinianos e trabalhadores estrangeiros.

A economia está centrada na indústria petrolífera e as suas copiosas receitas são dilapidadas pelos numerosos príncipes, na aquisição de material de guerra em quantidades insensatas e em depósitos e investimentos nos EUA (oferecendo cobertura substancial aos enormes défice externo e dívida interna). Assim, não obstante o permanente fluxo de receitas da indústria petrolífera, todavia não aplicadas a fins de investimento público e desenvolvimento social, a capitação de receitas caiu de US$ 28.000 (em 1980) para $ 10.800 (em 2002).
http://www.asponews.org/ASPO.newsletter.021.php#99
http://www.globalpolicy.org/security/oil/2003/0426byzantine.htm

A relação íntima entre as economias norte-americana e saudita é vital mas problemática para ambas as partes. Em 1960 a Arábia Saudita foi co-fundadora da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP). Em 1973 aderiu com outros países árabes à restrição da exportação de petróleo para os países Ocidentais em resposta ao apoio dos EUA e seus aliados à guerra expansionista de Israel. O preço do petróleo quintuplicou e induziu uma recessão mundial. Mas em 1990 a Arábia Saudita apoiou oficialmente os EUA e seus aliados na Guerra do Golfo, inclusivamente permitindo o estabelecimento de bases militares no seu território, para em 2003 tomar uma posição de controlada neutralidade, sob a pressão de radical oposição da opinião pública interna.

A presença de bases estrangeiras em solo saudita não só é motivo de indignação interna como também é motivo de insegurança para os residentes estrangeiros e as bases militares. Consequentemente, cautelosamente, entre o Outono de 2002 e a Primavera de 2003, os EUA transferiram da Arábia Saudita para Qatar o comando da sua força aérea na Ásia Central e o Golfo e transformou Qatar em quartel-general para a guerra contra o Iraque. http://www.rediff.com/news/2003/apr/28us.htm?zcc=rl
http://www.theage.com.au/articles/2002/09/12/1031608300051.html?oneclick=true

As riquezas do Próximo e do Médio oriente, em particular o petróleo, o motor da economia contemporânea, são cobiçadas por todas as potências mundiais presentes e futuras. No plano diplomático, financeiro e económico, é intensa a competição aberta e oculta entre os EUA, a União Europeia, a Rússia e a China.

Na bacia do Cáspio e na Ásia Central, as ex-repúblicas soviéticas, atravessando um conturbado processo de evolução para o regime capitalista, procuram negociar e afirmar as suas identidades e autonomias, tirando partido dos recursos fósseis que, em maior ou menor extensão, todas elas têm. A exploração dos recursos petrolíferos é assim um domínio privilegiado para observar a correlação de forças nessa região.

O Kasaquistão, no cerne da Ásia Central, país com enorme território (2.700 mil km2) fazendo fronteira com cinco países e o mar Cáspio, detentor de importantes recursos de combustíveis fósseis e de muitas outras matérias-primas minerais, tem procurado seguir uma política autónoma e assegurar uma participação do Estado na valorização dos seus importantes recursos face aos grandes grupos petrolíferos internacionais envolvidos no seu investimento e desenvolvimento; em particular na jazida super-gigante (13 Gb) de Kashagan, a maior encontrada nos últimos trinta anos, em inicio de desenvolvimento. Assim como tem assumido uma posição combativa na definição de linhas alternativas de escoamento da sua produção; para além dos pipelines para a Rússia e Mar Negro e para a Turquia e Mediterrâneo, procura também negociar parcerias e investir em dois outros pipelines, um em direcção à China e outro em direcção ao Golfo Pérsico (através do Irão).
http://www.eurasianet.org/departments/business/articles/eav070904.shtml
O desenvolvimento de meios de exportação é tão importante como os de extracção.

A saída de petróleo e de gás natural da bacia do Cáspio para o mercado mundial, mais económica e interessante, é para o Sul, através do Irão até à costa do Mar Arábico. Mas o poderio deste país e a sua autodeterminação no contexto internacional são um grande obstáculo à aceitação dessa solução pelo grande capital petrolífero. Uma alternativa que pareceu ter merecido o apoio dos EUA seria um gasoduto através do Turquemenistão, do Afeganistão e do Paquistão até ao Mar Arábico, na extensão de 1635 km e com 80 milhões m3/dia de capacidade, orçado em US$ 3,5 mil milhões, mas é uma opção mais onerosa e tão ou mais insegura para os seus promotores.

Outra alternativa, favorecida pelos EUA e algumas potências europeias, é o transporte para Ocidente em direcção ao Mar Negro. Mas o trânsito através dos estreitos de Bósforo e Dardanelos também não parece muito seguro.

Daí ter surgido também a solução de transporte continental desde o porto azeri de Baku, sobre o Cáspio, até ao porto turco de Ceyhan, no Mediterrâneo Oriental (Baku-Tiblisi-Ceyhan), através de um oleoduto com 1760 km de comprimento e com 1 milhão de barris/dia de capacidade. Este projecto foi promovido pelo eixo anglo-americano e a sua execução está em curso sob a direcção da BP para ser concluído em 2005. Orçado em US$ 3 mil milhões, terá uma vida útil de quando muito 15 anos até que o declínio da produção determine a queda do seu caudal.

Outra alternativa para a rota Ocidental, obviando a rota marítima pelos estreitos de Bósforo e Dardanelos, é o oleoduto trans-balcânico. A construção de um pipeline com 900 km de comprimento e cerca de 750 mil barris/dia de capacidade, para escoamento de petróleo do Cáspio para o Adriático atravessando a Bulgária (Burgas), a Macedónia e a Albânia (Vlora), tem sido ventilada repetidamente. Esse projecto, conhecido por AMBO, foi uma das razões por detrás da intervenção militar dos EUA e da NATO nos Balcãs, sob pretexto humanitário em contexto de conflito inter-étnico (“limpeza étnica” e “genocídio”), cujos meandros têm sido denunciados. Esse projecto é mais um empreendimento do eixo anglo-americano, orçado em cerca de € 1000 milhões, e será financiado por um consórcio bancário euro-americano; tem como projectistas Halliburton e Brown & Root e como beneficiárias BP-Amoco-Arco, Texaco e Chevron. Foi anunciado que irá arrancar em 2005 para ser completado em dois anos. Entretanto, a presença duradoura dos EUA na região balcânica será assegurada por duas bases militares construídas no Kosovo, já em 1999, com o apoio dos serviços da mesma Brown & Root.
http://home.earthlink.net/~carb22/oil_casp.html
http://www.spectrezine.org/war/Macedonia.htm
http://www.setimes.com/html2/english/040416-MARIJA-001.htm

Como sabemos, o Afeganistão foi o primeiro alvo do plano de expansão imperialista para o Médio Oriente após o ataque terrorista perpetrado nos EUA em 9 de Setembro de 2001. O envolvimento de organizações islâmicas, com raízes na Arábia Saudita e apoio no Afeganistão, não contradiz o envolvimento de organizações norte-americanas, como diversas investigações têm revelado; pelo contrário confirma a simbiose entre os interesses do capital acumulado nos EUA e os do capital gerado pelas indústrias petrolífera e armamentista na Arábia Saudita.

O Afeganistão foi o primeiro alvo escolhido por ser o mais frágil na região e por ser na ocasião o mais fácil de justificar. Porém, passados três anos e meio, a justificação não foi concretizada e o território não foi submetido. A revolta e a desordem continuam no Afeganistão desde a sua invasão em fins de 2001. Ataques armados alegadamente dirigidos por forças Talibã contra o governo central, instalado pelas forças invasoras, têm-se intensificado ao longo dos últimos meses, sobretudo no Sul; e os “senhores da guerra” do Norte, aliados conjunturais aquando do derrube do regime Talibã, entraram em insubordinação perante o governo central e em conflitos armados recíprocos.

A anunciada implantação de um regime “democrático” continua distante e parece agora inatingível. Não obstante o trabalho feito por funcionários da ONU, em fins de Junho de 2004 apenas cerca de metade dos potenciais eleitores estava registada; e a escassez de dados é ainda um obstáculo ao delineamento de círculos eleitorais. As eleições anunciadas para Junho de 2004 foram necessariamente adiadas, as parlamentares para 2005, porém as presidenciais foram forçadamente anunciadas para Outubro próximo, apesar dos óbvios obstáculos, mas para cumprir calendário a tempo das eleições nos EUA (em Novembro).

Num país fortemente rural, em que a actividade agrícola ocupa 70% da população, sem outros meios organizados de subsistência e sob o comando de influentes negociantes, o cultivo da papoila revitalizou-se e floresceu nos dois últimos anos; é de novo fonte de grossas receitas em benefício desses intermediários e dos narcotraficantes de todo o mundo; e é pretexto que alimenta conflitos armados entre grupos rivais.

Na Cimeira da NATO em Istambul, em 28-29 de Junho passado, esta organização ao serviço do imperialismo anunciou a intenção de reforçar para 10.000 soldados a Força Internacional de Segurança e Assistência para o Afeganistão (ISAF); e os EUA anunciaram ir multiplicar as “equipas provinciais de reconstrução” que procuram cobrir (tenuemente) o vasto território para além de Kabul. Mas a NATO encontrou escasso acolhimento para a mobilização de forças “aliadas” para esse teatro de guerra, designadamente entre países da região, como foi seu propósito.
http://www.eurasianet.org/departments/insight/articles/eav070704.shtml

O prazo de um mês foi suficiente para confirmar que o plano de “estabilização” ou de submissão do Afeganistão não dava sinais de avançar. No final de Julho de 2004 a comissão de negócios estrangeiros do parlamento britânico avisou que o Afeganistão estará em risco de implosão, a menos que mais tropas e recursos para lá sejam enviados. Não só a violência dos exércitos dos “senhores da guerra” e das guerrilhas Talibã persistia como ameaça contra a operacionalidade e sobrevivência do governo central, instalado pela administração norte-americana, e as forças de ocupação que o protegem, como também a produção de ópio e o seu tráfico estariam em descontrolada progressão.

Significativamente, também no fim de Julho, a ONG Médicos Sem Fronteiras anunciaram ir retirar do Afeganistão os seus 80 voluntários estrangeiros, após 24 anos de presença nesse país, por falta de condições de segurança para o seu trabalho e frustração, acusando tanto as guerrilhas Talibã como o exército da coligação ocupante. Só em 2004, 30 voluntários haviam já sido assassinados.

O relato parlamentar traçava também um paralelo com a evolução no Iraque, reconhecendo que a intervenção estrangeira havia criado um vácuo e aberto o caminho para Al Qaeda aí se instalar e actuar contra as forças de segurança e a população civil.

O relato renovava o apelo às contribuições de outros países da NATO para reforço das forças de ocupação no Afeganistão (20 mil norte-americanos e 6500 “soldados da paz” da NATO) e invocava o risco em que estaria a credibilidade desta organização (após os compromissos vocalizados na Cimeira de Istambul um mês antes).
http://www.cnn.com/2004/WORLD/europe/07/29/uk.afghan.iraq/index.html

Mas o plano de expansão imperialista não pode parar. Em parte porque o imperialismo tem de cuidar e renovar a sua imagem, em parte porque tem de desviar as atenções dos seus sucessivos desaires e das acumuladas recriminações que a sua brutalidade suscita, em parte, ainda, porque o objectivo de controlar militarmente o Próximo e o Médio Oriente, não tendo outros argumentos e meios eficazes senão a força das armas para o alcançar, a tal o imperialismo se vê compelido para sobreviver.

Em 30 de Julho o Conselho de Segurança da ONU adoptou uma resolução exigindo ao governo sudanês que desarme as milícias Janjaweed activas na província Ocidental de Darfur, ameaçando Cartum com medidas punitivas, designadamente diplomáticas, económicas, transportes e comunicações. A resolução foi avançada pelos EUA em termos inicialmente mais severos e acabou por ser apoiada também pelo Reino Unido, França, Alemanha e Espanha, após ser reformulada, e foi adoptada (com as abstenções da China e do Paquistão).

As milícias Janjaweed são tribos nómadas de influência árabe que nos dois últimos anos se tornaram mais agressivas contra as populações negras sedentárias; este conflito não tem relação com a guerra civil que há 21 anos opõe o governo muçulmano aos rebeldes cristãos e animistas do Sul do Sudão, a qual se encontra em vias de resolução. O actual conflito causou a morte de 30 mil civis e forçou a deslocação de um milhão de refugiados para campos de refugiados próximo da fronteira com o Chade, em condições de sobrevivência muito precárias. A ONU denomina a presente situação crise humanitária, mas os EUA prefere denominá-la de “genocídio” para facilitar a intervenção estrangeira. A ONU planeia enviar uma força de pacificação para estabilizar o Sul, agora que a guerra civil abrandou, força que, de acordo com esta última resolução, deverá abarcar também a região agora em conflito.

É evidente que esta eminente intromissão, que poderia ter acontecido há dez ou vinte anos atrás, tem agora por móbil razões de oportunidade visando outros fins. Os EUA são os instigadores deste processo. O Sudão tem grande valor geo-estratégico e parece integrar-se bem na política imperial de controlo mundial de recursos escassos e do petróleo em particular. O Sudão, cujo território enorme é o maior em África (2.500 km2), possui provavelmente moderados mas ainda pouco reconhecidos recursos de hidrocarbonetos, mas tem enormes recursos de água superficial e subterrânea. A intervenção no Sudão, a conduzir ao estabelecimento de bases militares, ofereceria uma plataforma invejável entre o Chade, a Líbia, o Egipto e a Arábia Saudita (todos eles produtores de petróleo) e sobre o Mar Vermelho. A instabilidade no reino saudita e a necessidade de deslocar as bases militares agora neste alojadas, poderá ser a motivação mais imediata para mais esta intervenção, sob pretexto humanitário, como várias outras ocorridas na última década.
http://globalresearch.ca/articles/GOW407B.html
http://abcnews.go.com/wire/US/reuters20040730_263.html

O termo “genocídio” surge uma vez mais para justiçar a iminente intervenção estrangeira. Um milhão de refugiados da região de Darfur, acantonados em condições precárias na fronteira com o Chade, carece de ajuda humanitária urgente. Eles são o pretexto. Esqueçamos os vários milhões de camponeses afegãos, expulsos sob a ameaça dos bombardeamentos norte-americanos, agora refugiados, já faz mais de dois anos, em campos miseráveis nas montanhas na fronteira com o Paquistão. É o imperialismo que escolhe entre boas e más vítimas. Faz hipocritamente imposições a um governo com escassos meios, para depois intervir militarmente num país lacerado por duas décadas de guerra civil.

A guerra continua dentro de dias.

02/Ago/2004

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .
03/Ago/04