As condições para um sistema global alternativo baseado na
justiça social e internacional
1-
A actual expansão capitalista liberal gera polarização e pauperização e é, por isso, social e internacionalmente insustentável
2-
O novo padrão do imperialismo colectivo sob a liderança dos Estados Unidos é um apartheid à escala global
3-
A injustiça social e internacional aniquila a credibilidade da democracia
4-
Enfrentar o desafio implica reconstruir a solidariedade dos povos do Sul
1-
A actual expansão capitalista liberal gera polarização e
pauperização e é, por isso, social e internacionalmente
insustentável
Um discurso sobre a pobreza e a necessidade de lhe reduzir a magnitude, se
não de a erradicar, tornou-se hoje moda. É um discurso da
caridade, ao estilo do século XIX, que não procura compreender os
mecanismos económicos e sociais que geram a pobreza, apesar de os meios
técnicos e científicos para a erradicar estarem agora
disponíveis.
O capitalismo e a nova questão agrária
Todas as sociedades anteriores aos tempos (capitalistas) modernos eram
sociedades camponesas. A sua produção era regida por
vários sistemas e lógicas específicos mas
não pelas que regem o capitalismo numa sociedade de mercado, como a
maximização do retorno sobre o capital.
A agricultura capitalista moderna englobando quer ricas
explorações familiares em larga escala, quer grandes empresas do
agro-negócio está agora envolvida num ataque maciço
à produção camponesa do Terceiro Mundo. A luz verde para
isto foi dada na sessão de Novembro de 2001 da Organização
Mundial do Comércio (OMC), em Doha, Qatar. Há muitas
vítimas deste ataque principalmente camponeses do Terceiro Mundo,
que ainda constituem metade da humanidade.
A agricultura capitalista, regida pelo princípio do retorno sobre o
capital, localizada quase exclusivamente na América do Norte, Europa,
Austrália e no Cone Sul da América Latina, emprega apenas umas
poucas dezenas de milhões de agricultores que já não
são camponeses. Devido ao grau de mecanização e à
grande dimensão das explorações geridas por um agricultor,
a sua produtividade normalmente varia entre 2 e 4,5 milhões de libras (1
a 2 milhões de quilogramas) de cereais por agricultor.
Em agudo contraste, 3 mil milhões de agricultores estão
envolvidos em explorações camponesas. As suas
explorações podem ser agrupadas em dois sectores distintos, com
escalas de produção, características económicas e
sociais e níveis de eficiência muito diferentes. Um sector, capaz
de beneficiar da revolução verde, obteve fertilizantes,
pesticidas e sementes melhoradas e tem algum grau de mecanização.
A produtividade destes camponeses varia entre 20.000 e 110.000 libras (9.072 e
49.895 kg) de cereais por ano. No entanto, a produtividade anual dos
camponeses excluídos das novas tecnologias estima-se em cerca de
2.000 libras (907 kg) de cereais por agricultor.
A relação da produtividade do segmento mais avançado da
agricultura mundial para o mais pobre, que era de cerca de 10 para 1 antes de
1940, é agora próximo de 2000 para 1! Isso significa que a
produtividade evoluiu muito mais desigualmente na área da agricultura e
da produção de alimentos do que em qualquer outra área.
Simultaneamente, esta evolução levou à
redução dos preços relativos dos produtos alimentares (em
relação a outros produtos industriais e de serviços) para
um quinto do que eram há 50 anos. A nova questão agrária
é o resultado desse desenvolvimento desigual.
De facto, o que sucederia se a agricultura e a produção alimentar
fossem tratadas como qualquer outra forma de produção, submetidas
às regras da concorrência num mercado aberto e desregulado, tal
como decidido em princípio na última conferência da OMC
(Doha, Novembro de 2001)? Iriam esses princípios encorajar a
aceleração da produção?
Imagine-se que a comida trazida ao mercado pelos actuais 3 mil milhões
de camponeses, após garantirem as suas próprias
subsistências, fosse em vez disso produzida por 20 milhões de
novos agricultores modernos. As condições para o sucesso dessa
alternativa incluiriam a transferência de áreas importantes de
boas terras para os novos agricultores (e estas terras teriam de ser retiradas
das mãos das actuais sociedades camponesas), capital (para comprar
fornecimentos e equipamentos) e acesso aos mercados de consumo. Esses
agricultores iriam, de facto, concorrer com sucesso com os milhares de
milhões de camponeses actuais. Mas o que sucederia a esses milhares de
milhões de pessoas?
Nas actuais circunstâncias, concordar com o princípio geral da
concorrência para os produtos agrícolas e alimentares, como
imposto pela OMC, significa aceitar a eliminação de milhares de
milhões de produtores não competitivos, no curto tempo
histórico de algumas décadas. Que vai ser destes milhares de
milhões de seres humanos, a maioria dos quais já é pobre
entre os pobres, que só se consegue alimentar com grande dificuldade? Em
50 anos, o desenvolvimento industrial, mesmo na fantasiosa hipótese de
uma taxa de crescimento contínua de 7% ao ano, não poderia
absorver nem um terço desta reserva.
O principal argumento apresentado para legitimar a doutrina da
concorrência da OMC é o de que este desenvolvimento ocorreu, de
facto, nos séculos XIX e XX na Europa e nos Estados Unidos, onde criou
uma sociedade moderna, próspera, urbana-industrial e
pós-industrial, com uma agricultura moderna capaz de alimentar a
nação e, até, de exportar alimentos. Porque é que
este padrão não se repetiria nos países
contemporâneos do Terceiro Mundo?
Este argumento falha, ao não considerar dois factos da maior
importância, que fazem com que a reprodução deste
padrão nos países do Terceiro Mundo seja quase impossível.
O primeiro é que o modelo europeu se desenvolveu ao longo de um
século e meio com tecnologias industriais de trabalho intensivo. As
tecnologias modernas usam muito menos mão-de-obra e os recém
chegados do Terceiro Mundo terão de as adoptar se querem que as suas
exportações industriais sejam competitivas nos mercados globais.
O segundo argumento é que, durante essa longa transição, a
Europa beneficiou da emigração massiva da sua
população excedente para as Américas.
Podemos imaginar outras alternativas e debatê-las amplamente? Outras em
que a agricultura camponesa fosse mantida no futuro visível do
século XXI, mas que, simultaneamente, embarcasse num processo de
progresso social e tecnológico contínuo? Desta maneira, as
mudanças poderiam ocorrer a um ritmo que permitisse a progressiva
transferência dos camponeses para o emprego não agrícola e
não rural.
Um tal conjunto estratégico de objectivos envolve a convergência
de complexas políticas aos níveis nacional, regional e global.
A sobrevivência de metade da humanidade deve ser seriamente ponderada.
Não estará garantida enquanto o direito de todos os camponeses
à terra e aos meios para a cultivar não for reconhecido. Neste
espírito, o Fórum Social Mundial (FSM) deveria organizar uma
campanha global pelo reconhecimento deste direito.
A Nova Questão Laboral
A população urbana do planeta representa agora cerca de metade da
humanidade, pelo menos três milhares de milhões de
indivíduos, constituindo os camponeses a outra metade. Os dados sobre
esta população permitem-nos distinguir entre o que chamamos
classes médias e classes populares.
A grande massa de trabalhadores dos segmentos modernos da
produção consiste em assalariados, que constituem actualmente
mais de quatro quintos da população urbana dos centros
desenvolvidos. Esta massa é dividida em pelo menos duas categorias, cuja
fronteira divisória é tanto visível para o observador
externo como verdadeiramente vivida na consciência dos indivíduos
afectados.
Há aqueles que podemos chamar classes populares estabilizadas, no
sentido de que têm um emprego relativamente seguro, graças, entre
outras coisas, às suas qualificações profissionais que
lhes dão poder negocial perante os empregadores e, assim, estão
frequentemente organizados, pelo menos nalguns países, em poderosas
organizações sindicais. Em qualquer caso, esta massa tem um peso
político que lhe reforça a capacidade negocial.
Os outros compõem as classes populares precárias, que incluem
trabalhadores com baixa capacidade negocial (em resultado das suas baixas
qualificações, do seu estatuto de não-cidadãos ou
da sua raça ou sexo), assim como os não-assalariados (os
formalmente desempregados e os pobres com trabalhos no sector informal).
Podemos chamar a esta segunda categoria das classes populares
precária, em vez de não-integrada ou
marginalizada, porque estes trabalhadores estão
perfeitamente integrados na lógica sistémica que comanda a
acumulação de capital.
Embora os centros contem com apenas 18% da população do planeta,
uma vez que a sua população é 90% urbana, albergam um
terço da população urbana do mundo.
Tabela 1 Percentagens da população urbana mundial total
|
|
Centros
|
Periferias
|
Mundo
|
|
Classes médias e altas
|
11
|
13
|
25
|
|
Classes populares
|
22
|
54
|
75
|
|
-Estabilizadas
|
(13)
|
(11)
|
(25)
|
|
-Precárias
|
(9)
|
(43)
|
(50)
|
|
TOTAL
|
33
|
67
|
100
|
|
População considerada (milhões)
|
1 000
|
2 000
|
3 000
|
Se, no conjunto, as classes populares constituem três quartos da
população urbana mundial, a subcategoria dos precários
representa hoje 40% das classes populares nos centros e 80% nas periferias,
isto é, dois terços das classes populares à escala
mundial. Por outras palavras, as classes populares precárias representam
metade (pelo menos) da população urbana mundial e bem mais do que
isso nas periferias.
Um olhar sobre a composição das classes populares urbanas
há meio século atrás, após a Segunda Guerra
Mundial, mostra que as proporções que caracterizaram a estrutura
das classes populares eram muito diferentes do que se tornaram hoje.
Na altura, a parte do Terceiro Mundo não excedia metade da
população urbana global (então na ordem de um milhar de
milhão de indivíduos), contra dois terços actualmente.
Mega-cidades, como as que conhecemos hoje em quase todos os países do
Sul, ainda não existiam. Havia apenas algumas grandes cidades,
nomeadamente na China, Índia e América Latina.
Nos centros, as classes populares beneficiaram, no período do
pós-guerra, de uma situação excepcional, baseada no
compromisso histórico imposto ao capital pelas classes trabalhadoras.
Este compromisso permitiu a estabilização da maioria dos
trabalhadores nas formas de uma organização do trabalho conhecida
como o sistema fabril Fordista. Nas periferias, a proporção de
precários que era, como sempre, maior do que nos centros
não excedia metade das classes populares urbanas (contra mais de 70%
hoje). A outra metade ainda consistia, em parte, de assalariados estabilizados
nas formas da nova economia colonial e da sociedade modernizada e, em parte,
nas velhas formas das indústrias artesanais.
A principal transformação social que caracteriza a segunda metade
do século XX pode ser resumida numa única estatística: a
proporção das classes populares precárias aumentou de
menos de um quarto para mais de metade da população urbana
global, e este fenómeno de pauperização reapareceu numa
escala significativa nos próprios centros desenvolvidos. Esta
população urbana desestabilizada aumentou, em meio século,
de menos de 250 milhões para mais de 1500 milhões de
indivíduos, registando uma taxa de crescimento que ultrapassa as que
caracterizam a expansão económica, o crescimento populacional ou
o próprio processo de urbanização.
As organizações representativas dos trabalhadores deparam-se com
um novo desafio. Terão de ser inventivas e criar novas formas de
organização e acção, que reúnam numa frente
unida aqueles segmentos dos trabalhadores relativamente estabilizados com os
que não são.
Acumulação é pauperização e
polarização à escala global
Pauperização Não há melhor termo para nomear
a tendência evolucionária na segunda metade do século XX.
A pauperização é um fenómeno inseparável da
polarização à escala mundial um produto inerente
à expansão do capitalismo realmente existente, que por esta
razão devemos chamar imperialista por natureza.
A pauperização nas classes populares urbanas está
intimamente ligada aos desenvolvimentos que vitimizam as sociedades camponesas
do Terceiro Mundo. A submissão destas sociedades às
exigências da expansão do mercado capitalista acarreta novas
formas de polarização social, que excluem uma
proporção crescente de agricultores do acesso ao uso da terra.
Estes camponeses empobrecidos ou sem-terra alimentam mais ainda do que o
crescimento populacional a migração para os bairros de
lata. No entanto, todos estes fenómenos estão destinados a
agravar-se enquanto os dogmas liberais não forem contestados e nenhuma
política correctiva dentro deste quadro liberal pode deter a sua
expansão.
A pauperização coloca em questão quer a teoria
económica quer as estratégias das lutas sociais.
A teoria económica vulgar convencional evita as questões reais
colocadas pela expansão do capitalismo. Isto sucede porque substitui a
análise do capitalismo realmente existente por uma teoria de um
capitalismo imaginário, concebido como uma simples e contínua
extensão de relações de troca (o mercado), enquanto o
sistema funciona e reproduz-se na base da produção capitalista e
relações de troca (não simples relações de
mercado). Esta substituição alia-se facilmente com a
noção
à priori,
que nem a história nem a argumentação racional
confirmam, de que o mercado se auto-regula e produz um óptimo social. A
pobreza só pode ser então explicada por causas que se decreta
serem exteriores à lógica económica, como o crescimento
populacional ou políticas erradas. É muitas vezes
atribuída à revolução tecnológica em curso e
considerada uma dificuldade transitória. Esta falácia é
baseada num conceito de neutralidade das tecnologias, ignorando que
estas operam apenas no quadro de relações sociais e a sua
relação com a lógica actual da acumulação
capitalista. Todavia, este verdadeiro vírus liberal, que infecta o
pensamento social contemporâneo e aniquila a capacidade de entender o
mundo, e mais ainda de o transformar, penetrou profundamente nas várias
esquerdas constituídas desde a Segunda Guerra Mundial. Os movimentos
correntemente empenhados em lutas sociais por um outro mundo e por
uma globalização alternativa só conseguirão
produzir avanços sociais significativos se se livrarem deste
vírus para construir um debate teórico autêntico. Enquanto
não se livrarem deste vírus, os movimentos sociais, mesmo os
melhor intencionados, continuarão agrilhoados ao pensamento convencional
e, como tal, prisioneiros de propostas correctivas ineficazes aquelas
que são alimentadas pela retórica sobre a redução
da pobreza.
2-
O novo padrão do imperialismo colectivo sob a liderança dos
Estados Unidos é um
apartheid
à escala global
Primeira hipótese
: O Imperialismo tornou-se um imperialismo colectivo (da tríade).
Ao longo das fases prévias de expansão da
globalização capitalista, os centros eram sempre conjugados no
plural. Estes centros mantiveram entre si relações marcadas por
uma competição violenta constante, na medida em que o conflito
entre os imperialismos estava no centro da cena histórica. O retorno ao
liberalismo globalizado, como desde 1980, obriga à revisão
estrutural do centro contemporâneo do sistema. Num aspecto, pelo menos em
termos da gestão económica liberal, os estados que formam a
tríade central constituem um bloco aparentemente sólido.
A iniludível questão que deve ser respondida é
então a de saber se as ditas evoluções descrevem uma
alteração qualitativa duradoira uma vez que o centro
já não é conjugado no plural, mas tornou-se
definitivamente colectivo ou se se devem apenas a
circunstâncias económicas.
Esta evolução poderia ser atribuída a
alterações nas condições de competitividade.
Há algumas décadas atrás, as grandes empresas travavam as
suas batalhas pela competitividade essencialmente nos mercados nacionais, e
estes podiam incluir o dos Estados Unidos (o maior mercado nacional do mundo)
ou mesmo os dos estados europeus (apesar das suas modestas dimensões,
que os punham em desvantagem em relação aos Estados Unidos). Os
vencedores dos
rounds
nacionais podiam ocupar uma posição ideal no mercado
mundial. Hoje em dia, a dimensão de mercado necessária para se
ser um vencedor no primeiro
round
das competições estima-se em cerca de 500 a 600
milhões de consumidores potenciais. A batalha tem de ser,
por isso, combatida directamente no mercado mundial e ganha nessa arena. E
são os que vencem o desafio neste mercado que se irão impor,
então e depois, nos respectivos terrenos nacionais. A
globalização extensiva está a tornar-se o quadro
operacional primário para as grandes empresas. Por outras palavras, no
par nacional/mundial os termos de causalidade estão invertidos.
Antigamente, o poderio nacional ditava a presença ao nível
mundial, mas hoje é ao contrário. Em resultado, as firmas
multinacionais, independentemente da sua nacionalidade, têm interesses
comuns na gestão do mercado mundial. Esses interesses
sobrepõem-se aos conflitos de mercado normais que definem todas as
formas de concorrência peculiares do capitalismo, quaisquer que elas
sejam.
A solidariedade entre os segmentos dominantes do capital transnacional e os
membros da tríade é real e explica a sua união em torno do
neo-liberalismo globalizado. Os Estados Unidos são vistos como o
defensor, militar se necessário, dos interesses comuns,
embora Washington dificilmente pretenda dividir irmãmente os
lucros da sua liderança. Ao invés, procura tornar os seus aliados
em vassalos, e está pronto apenas para fazer concessões menores a
pequenos aliados na tríade. Será que este conflito de interesses
dentro do capital dominante levará à ruptura da Aliança
Atlântica? Não é impossível, mas improvável.
Esta solidariedade da tríade funciona ao nível da gestão
económica do sistema global através de um conjunto de
instituições criadas para esse efeito. É o caso do Banco
Mundial. Esta instituição, frequentemente apresentada
pomposamente como o maior
think tank
a formular escolhas estratégicas para a economia global,
não é certamente tão importante. O Banco Mundial
dificilmente é mais do que uma espécie de Ministério da
Propaganda para o G7, encarregado de produzir slogans e discursos, enquanto a
verdadeira responsabilidade de tomar decisões económicas
estratégicas está reservada à OMC. O Fundo
Monetário Internacional (FMI) é mais importante, embora
não tanto como habitualmente afirmado. Enquanto o princípio das
taxas de câmbio flexíveis governar o sistema monetário
internacional e enquanto o FMI não for responsável pelas
relações entre as principais divisas (dólar, marco-euro,
iene), o Fundo opera apenas como uma espécie de autoridade
monetária colonial colectiva para o Sul, governada pelo Norte. Apesar do
seu nome, a OMC não pretende organizar o comércio internacional.
A sua função é a de remodelar e eventualmente desmantelar
as economias do Sul, de acordo com a necessidade de maximizar os lucros das
transnacionais. Essa solidariedade faz-se também ao nível
político pelo G7 e pelo seu instrumento militar a NATO e
é alimentada ideologicamente pelo atlantismo.
Segunda hipótese
: No sistema colectivo do imperialismo, os Estados Unidos não têm
vantagens económicas decisivas.
A opinião corrente é a de que o poder militar dos Estados Unidos
é apenas a ponta do icebergue, prolongando a superioridade deste
país em todos os campos, particularmente nas esferas económica ou
mesmo política e cultural. Pode, por isso, ser inevitável a
sujeição às tendências hegemónicas que
reclama.
Na verdade, o sistema produtivo dos Estados Unidos está longe de ser
o mais eficiente do mundo. Ao contrário, nenhum dos seus
segmentos pode estar certo de derrotar os seus rivais num mercado mundial
realmente aberto, como dado a entender pelos economistas liberais. Um
testemunho típico é o do défice comercial dos Estados
Unidos, que se vem agravando de ano para ano, aumentando de 100 mil
milhões de dólares em 1989 para 500 em 2002. Mais ainda, este
défice diz respeito a virtualmente todos os segmentos do sistema
produtivo. Mesmo o excedente que os EUA ostentavam em bens de alta tecnologia,
que estava em 35 mil milhões em 1990, deu agora lugar a um
défice. A competição entre os foguetões espaciais
da Ariane e da NASA, entre a Airbus e a Boeing, atestam a vulnerabilidade da
vantagem americana. Se confrontada com a Europa e o Japão em termos de
produtos de alta tecnologia, com a China, Coreia e outros países
industrializados asiáticos e latino-americanos em termos de bens
manufacturados comuns, e com a Europa e o cone Sul da América Latina no
sector da agricultura, os Estados Unidos da América provavelmente
não venceriam nenhuma disputa sem recorrer a esquemas
extra-económicos que violam os princípios do
liberalismo e da concorrência!
De facto, os Estados Unidos beneficiam de vantagens comparativas exclusivamente
no sector do armamento, precisamente porque este sector contorna amplamente as
regras que governam o mercado e, também, porque recebe apoio estatal.
Certamente, esta vantagem tem algumas repercussões no sector civil (a
Internet é um exemplo bem conhecido), mas é também a causa
profunda das distorções que constituem debilidades para muitos
sectores produtivos.
A economia norte americana funciona como um parasita, às custas dos seus
parceiros no sistema mundial. Os Estados Unidos da América
satisfazem 10% do seu consumo industrial através de
importações que não são cobertas pelas
exportações de mercadorias nacionais. O mundo produz para o
consumo dos Estados Unidos da América (cujas poupanças nacionais
são virtualmente zero).
O mundo produz e os Estados Unidos da América, que não têm
praticamente nenhuns fundos de reserva, consomem. A vantagem dos
EUA é a de um predador cujo défice é coberto por
empréstimos de outros, consentidos ou forçados. Os meios postos
em jogo por Washington para compensar deficiências são de
vários tipos, incluindo repetidas violações unilaterais
dos princípios liberais, exportação de armas (60% do
mercado mundial) largamente imposta a aliados subalternos, como os
países do Golfo, que nunca usam essas armas, a busca por maiores lucros
do petróleo, que pressupõe um maior controlo sobre os produtores
a verdadeira razão para as guerras na Ásia Central e no
Iraque.
A parte essencial do défice americano é coberta por
contribuições de capital da Europa, Japão e do Sul
de países ricos em petróleo e classes compradoras de todos os
países do Terceiro Mundo, os mais pobres incluídos ,
às quais se acrescentam as somas adicionais trazidas pelo serviço
da dívida a que foram forçados praticamente todos os
países da periferia do sistema mundial. As razões que
estão por trás dos contínuos movimentos de capital que
alimentam o parasitismo da economia e da sociedade americanas, e que permitem a
esta super potência viver dia a dia, são certamente complexas. Mas
nada têm a ver com supostas leis do mercado simultaneamente
racionais e inalteráveis.
Terceira hipótese
: O propósito do controlo militar do planeta é compensar as
deficiências económicas dos Estados Unidos. Este fenómeno
constitui uma ameaça para todos os povos do Terceiro Mundo.
Esta hipótese procede logicamente da anterior. A decisão
estratégica de Washington de aproveitar a sua superioridade militar e
recorrer, neste contexto, a guerras preventivas, decididas e
planeadas por este país apenas, pretende frustrar todas as
esperanças de uma grande nação (como a China,
Índia, Rússia e Brasil) ou de uma coligação
regional do Terceiro Mundo de ganhar o estatuto de um verdadeiro parceiro,
ajudando a modelar o sistema mundial, mesmo que capitalista.
A estratégia política que acompanha este programa estabeleceu os
pretextos para ele, quer tivessem a ver com terrorismo, com a luta contra o
tráfico de droga, quer com acusações de produzirem armas
de destruição maciça. Estes pretextos são
óbvios, se nos lembrarmos da invenção pela CIA de
convenientes adversários terroristas, sejam os Talibã ou Bin
Laden.
Não há necessidade de uma frente comum contra o
terrorismo, tal como é apregoado pelo
establishment
dos EUA, para esconder o seu alvo real. O que é necessário
é uma construtiva frente comum pela justiça social e
internacional. Uma vez que haja justiça, não haverá
espaço para o terrorismo.
As acusações de produzirem armas perigosas, feitas hoje contra o
Iraque e Coreia do Norte, mas amanhã contra qualquer estado conveniente,
empalidecem ao lado da utilização real deste tipo de armas pelos
Estados Unidos. Os EUA usaram armas nucleares em Hiroshima e Nagasaki e armas
químicas no Vietname, e ameaçam voltar a usar armas nucleares em
conflitos futuros. Esses pretextos são apenas instrumentos de
propaganda, no sentido que Goebbels deu ao termo: são úteis
talvez para convencer a opinião americana de lenta compreensão,
mas cada menos credíveis em qualquer outro sítio.
A ideia de guerra preventiva, agora reclamada como um
direito por Washington, afasta qualquer noção de lei
internacional. A Carta das Nações Unidas proíbe o recurso
à guerra, excepto em casos de legítima defesa, e só
permite a intervenção militar sob condições
específicas, devendo qualquer resposta ser proporcionada e
provisória. Todos os especialistas em direito internacional sabem que as
guerras realizadas desde 1990 foram completamente ilegítimas e,
consequentemente, todos os que são responsáveis por elas
são também criminosos de guerra. De facto, os Estados Unidos, com
a cooperação de outros países, estão já a
tratar as Nações Unidas da mesma maneira que os estados fascistas
trataram a Liga das Nações.
A abolição dos direitos comuns a todos os povos, já em
curso, substituiu o princípio anterior da igualdade dos povos pela
distinção entre a Raça Superior
(Herrenvolk)
o povo dos Estados Unidos e, atrás dele, o de Israel e
os outros povos. A existência daqueles povos que não pertencem
à Raça Superior dos EUA só pode ser tolerada se não
constituírem uma ameaça para as
ambições dos que se apelidam senhores do planeta.
Esta Raça Superior reserva-se o direito de conquistar o
espaço vital que julgar necessário para si e para os
povos que sustenta.
Todos nós nos tornámos, por isso, Peles Vermelhas, o
nome desdenhoso reservado para os nativos americanos, aos olhos do
establishment
de Washington o mesmo é dizer: povos que têm o direito de
existir apenas enquanto não frustrarem a expansão do capital
multinacional baseado nos EUA. Foi-nos prometido que a resistência aos
EUA será esmagada usando todo e qualquer meio, mesmo o
extermínio, se necessário. Se se tratar de uma questão de
obter mais 15 milhões de dólares
[NT1]
de lucro para as multinacionais americanas, à custa de 300
milhões de vítimas, não haverá
hesitação.
O estado fora-da-lei por excelência, pedindo emprestada a
expressão utilizada pelos presidentes Bush Sénior e
Júnior, tal como por Clinton, não são outros senão
os próprios Estados Unidos.
O objectivo actual da estratégia global dos Estados Unidos não
é, de todo, criar um mercado global aberto, como tem sido afirmado pelo
Banco Mundial, mas, pelo contrário, estabelecer um sistema de pilhagem,
através do controlo militar do planeta. O seu objectivo real é
transformar o fluxo de capital em seu benefício, agora
vulnerável, num tributo.
Este é um projecto de dominação brutal (através do
controlo militar), sem hegemonia (entendida no sentido
Gramsciano
do conceito). Esse projecto aniquila o discurso convencional dos
liberais americanos (a dominação dos EUA como sendo
benigna).
O programa dos EUA é certamente imperialista no sentido mais brutal da
palavra, mas não é imperial no sentido que Antonio
Negri deu ao termo, uma vez que não pretende gerir as sociedades do
planeta para as melhor integrar num sistema capitalista coerente. Em vez disso,
pretende apenas saquear os seus recursos. Tudo isto é carne e osso da
redução do pensamento social aos mantras da economia vulgar, a
atenção unilateral dada à maximização da
rendibilidade financeira a curto prazo do capital dominante, suportada por
meios militares postos à disposição deste capital e ao seu
afastamento de qualquer sistema de valores humanos. Este capital está
por trás do expansionismo bárbaro que o capitalismo traz em si
mesmo, substituindo os valores humanos pela exigência de submissão
absoluta às chamadas leis do mercado.
O programa militarista adoptado pelos Estados Unidos ameaça agora todos
os povos. É a expressão da lógica adoptada por Adolf
Hitler mudar as relações sociais e económicas,
através da força militar, a favor da Raça
Superior do presente. Este programa, agora em primeiro plano,
sobre-determina todas as circunstâncias políticas, uma vez que o
prosseguimento deste programa enfraquece avanços obtidos através
da luta social e democrática. Parar o programa militarista dos EUA
torna-se, por isso, um objectivo principal e uma responsabilidade para todos.
Esta opção
i.e.
a dominação quando a capacidade de ser hegemónico
está perdida ilustra o facto de o sistema (capitalismo) ter
atingido o estádio de obsolescência. Mas é precisamente por
essa razão que está destinado a tornar-se num projecto criminoso.
Quarta Hipótese
: A opção dos Estados Unidos por uma globalização
militarizada constitui uma séria ameaça aos interesses da Europa
e Japão
Esta hipótese procede da segunda. Entre outros aspectos, o objectivo dos
Estados Unidos de controlar militarmente todos os recursos importantes do
planeta (o petróleo em particular) pretende relegar os parceiros europeu
e japonês para o estatuto de vassalos. As guerras do petróleo
americanas são guerras anti-europeias.
A Europa (e o Japão) pode reagir em parte a esta estratégia
através de uma aproximação à Rússia, que
é capaz de fornecer algum petróleo e mais algumas
matérias-primas essenciais.
A Europa pode e deve ser libertada do vírus liberal; no entanto, esta
iniciativa não pode ser tomada pelos segmentos do capital dominante, mas
sim pelos povos.
Os segmentos dominantes do capital, cujos interesses os governos europeus ainda
estão decididos a defender a todo o custo, como uma prioridade
exclusiva, são, é claro, os defensores do neo-liberalismo
globalizado e isso explica porque é que aceitam pagar o preço da
sua subordinação ao líder norte-americano.
Os povos da Europa têm uma visão diferente do projecto Europeu,
que querem que assuma dimensões sociais, e das suas
relações com o resto do mundo, que querem que sejam regidas pela
lei e pela justiça, como têm expressado recentemente, na sua
esmagadora maioria, na denúncia da deriva dos Estados Unidos. Se esta
cultura humanista e democrata da velha Europa prevalecer o
que é possível então uma coesão
autêntica entre a Europa, Rússia, China, toda a Ásia e a
África inteira, constituirá a fundação sobre a qual
será construído um mundo multi-centrado, democrático e
pacífico.
A maior contradição entre a Europa e os Estados Unidos não
é, por isso, os contrastes entre os interesses do capital dominante aqui
e acolá, mas sim o tipo identificado nas suas culturas políticas.
O conflito iminente reside na arena das culturas políticas. Na Europa,
uma alternativa de esquerda é ainda possível. Pode,
simultaneamente, impor uma ruptura com o neo-liberalismo (e o estilhaçar
da esperança vã de sujeitar os Estados Unidos às suas
exigências, permitindo assim ao capital europeu travar a guerra
no campo desminado da competição económica), por exemplo,
ao conformar-se às estratégias políticas dos Estados Unidos
[NT2]
. O excedente de capital que a Europa optou por investir até
agora nos Estados Unidos poderia, por isso, ser destinado a projectos de
recuperação económica e reabilitação social,
sem o que os últimos seriam impossíveis. Mas, uma vez que a
Europa pode então escolher dar prioridade ao seu progresso
económico e social, a riqueza artificial da economia dos Estados Unidos
entraria em declínio e a classe dominante americana seria confrontada
com os seus próprios problemas sociais. O significado que dou à
minha conclusão é que a Europa será de esquerda ou
não será.
Para isso, os europeus têm de se livrar da ilusão de que a carta
do liberalismo pode e deve ser jogada honestamente
por todos e que, nesse caso, as coisas melhorariam. Os Estados Unidos
não podem renunciar à sua opção por uma
prática assimétrica do liberalismo, porque esta é a
única maneira de a América poder compensar as suas
próprias deficiências. O preço da prosperidade
americana é a estagnação dos outros.
A questão europeia pode situar-se aqui. De facto, o seu impacto
não pode ser ignorado e uma discussão em profundidade do que eu
chamo as areias movediças no projecto Europeu é, de
facto, necessária.
As culturas políticas europeias são diversificadas,
mesmo se contrastam de alguma maneira com a dos Estados Unidos. Existem na
Europa forças políticas, sociais e ideológicas que,
lucidamente, apoiam a visão de uma outra Europa (social e
amigável nas suas relações com o Sul). Mas existe
também a Grã-Bretanha, que, desde 1945, tomou a
opção histórica de recrutar um apoio incondicional aos
Estados Unidos. Existem forças, entre as classes dominantes da Europa de
Leste, moldadas por uma cultura servil, curvando-se ontem perante Hitler,
depois perante Estaline e hoje perante Bush. Existem populistas
pró-americanos de direita (ao estilo dos nostálgicos
de Franco e Mussolini, em Espanha e Itália, respectivamente).
Será que o conflito entre estas culturas dividirá a Europa?
Resultará num alinhamento com Washington? Ou na vitória das
culturas humanistas progressistas e democráticas?
Quinta Hipótese
: O Sul pode e deve ser libertado das ilusões liberais para embarcar em
formas renovadas de desenvolvimento auto-centrado.
Não há dúvidas de que, por enquanto, os governos dos
países do Sul parecem continuar a lutar por um verdadeiro
neo-liberalismo, em que os parceiros do Norte, como os do Sul,
entrariam no jogo. Os países do Sul só podem
aperceber-se de que esta esperança é completamente
ilusória.
Terão, então, de regressar, ao conceito inevitável de que
o desenvolvimento é necessariamente auto-centrado. Desenvolver-se a si
próprio significa definir, em primeiro lugar, objectivos nacionais que
permitam a modernização dos sistemas produtivos e criem as
condições internas que a utilizem para promover o progresso
social e, então, sujeitar às exigências desta lógica
as modalidades que regem as relações entre a nação
e os centros capitalistas desenvolvidos. Esta definição de
desconexão
que não significa autarcia situa o conceito a milhas do
princípio oposto de ajustamento estrutural às
exigências da globalização, que está, por isso,
necessariamente sujeito às exigências exclusivas de
expansão do capital multinacional dominante, assim aprofundando as
desigualdades ao nível global.
A reconstrução de uma forte frente do Sul vincula a
participação dos seus povos
Os regimes políticos estabelecidos em muitos países do Sul
não são, para dizer o mínimo, democráticos e
são, por vezes, realmente odiosos. Estas estruturas de poder
autoritário favorecem grupos compradores, cujos interesses consistem em
expandir o capitalismo imperialista global.
A alternativa a construção de uma frente compreendendo
povos do Sul pode materializar-se através da
democratização. Esta necessária
democratização será um processo difícil e longo,
mas que certamente não será realizado pelo estabelecimento de
regimes fantoches que abrem os seus recursos à pilhagem das companhias
multinacionais norte-americanas. Regimes que serão consequentemente
ainda mais frágeis, menos credíveis e menos legítimos do
que aqueles a que sucederam sob a protecção do invasor americano.
Na prática, o objectivo dos Estados Unidos não é o de
promover a democracia no mundo, apesar do seu discurso puramente
hipócrita sobre esta matéria.
Sexta Hipótese
: Um novo internacionalismo, associando Europeus, Asiáticos, Africanos e
Americanos é, por isso, possível.
Esta hipótese provém e é conclusão da precedente.
Isto significa que existem condições capazes de promover
relações mais próximas entre, pelos menos, todos os povos
do mundo antigo. Esta união podia ter expressão
concreta ao nível diplomático internacional pelo fortalecimento
do eixo ParisBerlimMoscovo-Pequim, que podia ser reforçado
pelo desenvolvimento de relações amigáveis entre este eixo
e a reconstituída frente Afro-Asiática.
Obviamente, iniciativas nesta direcção reduzem a zero a
ambição criminosa e descomedida dos Estados Unidos. Washington
seria, assim, forçado a aceitar a coexistência com
nações determinadas a defender os seus próprios interesses.
No presente, este objectivo deve ser absolutamente considerado como uma
prioridade. A expansão do projecto Americano sobredetermina a aposta
inerente a todas as lutas: não haverá nenhum progresso social e
democrático enquanto esse projecto não for esmagado.
Organizar uma campanha global pelo desmantelamento de todas as bases dos
Estados Unidos pelo mundo deve ser um ponto da máxima prioridade na
agenda do FSM.
Sétima Hipótese
: Os tópicos ligados à diversidade cultural devem ser discutidos
como parte das novas perspectivas internacionais aqui delineadas.
A diversidade cultural é um facto. Mas é complexa e
ambígua. As formas da diversidade herdadas do passado, por muito
legítimas que possam ser, não equivalem necessariamente a
diversidade na construção do futuro, que deve ser não
só admitida como defendida.
Discutir somente as diversidades herdadas do passado (o Islão
político, o Hinduísmo, o Confucionismo, a Negritude, o
chauvinismo étnico, etc.) é frequentemente uma fórmula
demagógica dos poderes autocráticos e compradores, que lhes
permite esquivarem-se ao desafio de universalizar a civilização
e, de facto, submeterem-se ao
diktat
do capital dominante transnacional. Mais ainda, a ênfase exclusiva
nestes legados divide o Terceiro Mundo colocando o Islão político
e o Hinduísmo na Ásia, os Muçulmanos, Cristãos e
seguidores de outras religiões em África, uns contra os outros.
Estas divisões sustentadas pelo imperialismo americano, que expressa uma
preferência viciosa por autocracias baseadas na etnicidade ou movimentos
para-religiosos, podem ser superadas através de novas
fundações para uma Frente do Sul politicamente unida. Mas quais
são e podem ser os valores universais sobre os quais o
futuro pode ser fundado? A interpretação restritiva e
ocidental-centrada destes valores legitima o desenvolvimento desigual, o
produto imanente da passada e presente expansão capitalista globalizada.
Deve ser rejeitada. Mas de que forma poderão ser avançados
autênticos conceitos universais, enriquecidos com contributos de todas as
partes? Em todo o caso, isso não pode ser de todo ignorado.
3-
A injustiça social e internacional aniquila a credibilidade da
democracia
A alternativa ao projecto dos Estados Unidos de organizar e controlar um
apartheid
à escala global tem de combinar progresso social,
democratização e interdependência negociada.
O que os povos necessitam, hoje como ontem, são projectos sociais
extensos (nacionais e/ou regionais) articulados com estruturas globalizadas
reguladas e negociadas (ao mesmo tempo que asseguram uma relativa
complementaridade entre elas), que deveriam simultaneamente permitir
avanços em três direcções:
a) Progresso social: isto exige
que os progressos económicos sejam necessariamente acompanhados de
benefícios sociais para todos.
b) A democratização da sociedade em todas as dimensões,
compreendida como um processo sem fim e não como um projecto
acabado, definido de uma vez para sempre. A democratização
exige que o seu alcance seja sentido nas esferas social e económica e
não seja restringido apenas à esfera política.
c) A afirmação de
um desenvolvimento económico e social vasto, e a
construção de formas de globalização que
ofereçam esta possibilidade.
A alternativa que definimos por avanços em três
direcções exige que todos os três progridam em paralelo. As
experiências da história moderna, fundadas na prioridade absoluta
à Independência Nacional, quer acompanhada pelo
progresso social, quer mesmo sacrificando-o, mas sempre sem
democratização, continuamente demonstraram a sua incapacidade de
ir além dos limites históricos rapidamente atingidos.
Em contraponto, os projectos democráticos contemporâneos, que
aceitaram sacrificar o progresso social e a autonomia na interdependência
globalizada, não contribuíram para reforçar o potencial
emancipador da democracia, mas, ao contrário, erodiram-no
até descredibilizá-lo e, finalmente, deslegitimizá-lo.
Se, como pretende o discurso neo-liberal predominante, não há
alternativa à sujeição às exigências do
mercado, e se esta ideia produziria, por si própria, progresso social (o
que não é verdade), então para quê incomodarmo-nos a
votar? Os governos eleitos tornam-se decorações
supérfluas, uma vez que a mudança (uma
sucessão de cabeças diferentes que fazem todas a mesma coisa) se
substitui às escolhas alternativas pelas quais se define a democracia.
Têm sido coligidas muitas provas empíricas, particularmente na
América Latina, que mostram que uma crescente maioria de decepcionados
com os resultados da democracia associada à economia liberal se
estão a afastar da defesa da democracia. A reafirmação da
política e a cultura de cidadania definem a própria possibilidade
de uma alternativa necessária à decadência
democrática.
A ideologia americana embala cuidadosamente a sua mercadoria, o projecto
imperialista, na inefável linguagem da missão
histórica dos Estados Unidos. Uma tradição
transmitida, desde o início, pelos pais fundadores, certa da
sua inspiração divina. Os liberais americanos no sentido
político do termo, que se consideram como a esquerda na sua
sociedade compartilham esta ideologia. Consequentemente, apresentam a
hegemonia americana como necessariamente benigna, a fonte do
progresso nos escrúpulos morais e na prática democrática,
que será necessariamente uma vantagem para os que, aos seus olhos,
não são vítimas, mas sim beneficiários, deste
projecto. Hegemonia americana, paz universal, democracia e progresso material
são emparceirados como conceitos inseparáveis. A realidade,
claro, é outra.
Em contraste com este projecto de legalização do
apartheid
à escala global, o que é necessário é uma
Lei Internacional (global) dos povos (não uma lei dos
negócios, como se os interesses negociais constituíssem os
únicos direitos legítimos). Nesse quadro, poderemos esperar
desenvolver uma nova, mais elevada lei, que garanta que toda a gente no planeta
é tratada com dignidade, que é o pré-requisito para a sua
participação activa e criativa na construção do
futuro? Um corpo jurídico, completo e multidimensional, que lide com os
direitos dos seres humanos (tanto homens como mulheres, é claro, em
plena igualdade), com direitos políticos, direitos sociais (à
vida, ao trabalho e à segurança), os direitos das comunidades e
dos povos e, finalmente, com as relações entre os estados. Esta
é, certamente, uma agenda que levará décadas de
reflexão, debate, acções e decisões.
O princípio do respeito pela soberania das nações deve
permanecer a pedra angular da lei internacional. E se os criadores da Carta das
Nações Unidas decidiram proclamar este princípio, foi
precisamente por que havia sido negado pelas potências fascistas. A
adopção solene do princípio da soberania nacional em 1945
foi logicamente acompanhada da proibição do recurso à
guerra. Os estados são autorizados a defender-se de quem quer que viole
a sua soberania através de uma agressão, mas são
antecipadamente condenados se forem os agressores. Não obstante, os
países da NATO têm sido os agressores na antiga Jugoslávia,
tal como os Estados Unidos e os seus associados no Iraque.
Não há dúvida de que a interpretação do
princípio da soberania dado na Carta das Nações Unidas era
absoluta. Hoje em dia, a opinião pública democrática
já não aceita que este princípio autorize os governos a
fazerem o que quiserem com os seres humanos colocados sob a sua
jurisdição, uma mudança de atitude que representa um
progresso inequívoco na consciência moral da humanidade. Mas como
podemos reconciliar estes dois princípios que podem conflituar?
Certamente não pela eliminação de um dos termos
quer a soberania quer os direitos humanos. Até porque o caminho
escolhido pelos Estados Unidos, seguido pelos seus aliados europeus
subalternos, não só é certamente errado, como esconde os
verdadeiros objectivos da operação, que nada têm a ver com
o respeito pelos direitos humanos, apesar da pressão dos
media
que nos tenta convencer disso.
Para identificar as condições desta alternativa humanista
é essencial começar pela diversidade das aspirações
que motivam as mobilizações e lutas sociais e, talvez,
classificá-las subsequentemente em cinco tipos: (i) a
aspiração pela democracia política, o estado de direito e
a liberdade intelectual; (ii) a aspiração pela justiça
social; (iii) a aspiração pelo respeito pelos vários
grupos e comunidades; (iv) a aspiração por uma gestão
ecológica melhorada; (v) a aspiração por uma
posição mais favorável no sistema global.
É facilmente reconhecível que os protagonistas dos movimentos que
lutam por estas aspirações raramente são idênticos.
Por exemplo, imagina-se que a preocupação de obter uma
posição mais alta no sistema global, que é definida em
termos de riqueza, poder e autonomia de movimento, constituirá uma
preocupação maior entre as classes dominantes e autoridades,
mesmo que este objectivo possa ganhar a simpatia da população no
seu conjunto. A aspiração pelo respeito no sentido
integral do termo, por outras palavras, o respeito por um tratamento
verdadeiramente igual pode mobilizar as mulheres enquanto tal, ou um
grupo cultural, linguístico ou religioso sujeito a
discriminações. Os movimentos animados por estas
aspirações podem ser trans-classistas. Por outro lado, a
aspiração por maior justiça social, definida à
vontade (de acordo com os desejos dos movimentos motivados por esta
aspiração) por melhorias no bem-estar material, uma
legislação mais pertinente e eficaz ou um sistema de
relações sociais e um sistema de produção
radicalmente diferente quase inevitavelmente encontrará
expressão nas lutas de classes. Pode tomar a forma de uma
reivindicação do campesinato, ou de um dos seus grupos, por uma
reforma agrária, uma redistribuição da propriedade, uma
legislação mais favorável aos camponeses
arrendatários, preços mais favoráveis, etc.. Pode ser
expressa no contexto dos direitos sindicais, legislação laboral,
ou mesmo na exigência de uma política estatal que reforce a sua
intervenção efectiva a favor dos trabalhadores até
à nacionalização, gestão conjunta ou, mais
radicalmente, poder dos trabalhadores. Mas pode surgir, também, na forma
de exigências de grupos de profissionais ou de empresários
reivindicando uma redução nos impostos. Pode ser canalizada
através de exigências que dizem respeito a todos os
cidadãos, como testemunham os movimentos que lutam pelo direito à
educação, saúde ou habitação e,
mutatis mutandis,
o direito a uma política ambiental apropriada. A
aspiração democrática pode ser limitada e precisa,
particularmente quando inspira um movimento em luta contra uma autoridade
antidemocrática. Ao mesmo tempo, pode ser integradora e, por isso,
concebida como a alavanca que ajuda a promover todas as
reivindicações sociais.
Um mapa com a distribuição actual destes movimentos mostraria
certamente enormes desigualdades na sua presença no terreno. Mas sabemos
que este mapa não é estático porque, perante um dado
problema, há quase sempre um movimento potencial para encontrar uma
solução apropriada. Contudo, seria um laivo de optimismo
ingénuo imaginar que a resultante do mapa de forças operando
nestes campos muito diversos promoveria a coerência de um movimento
unido, mobilizando as sociedades para lutar por mais justiça e
democracia. O caos tanto surge da natureza como da ordem. Da mesma maneira,
seria ingénuo ignorar a reacção das autoridades dominantes
a estes movimentos. A distribuição geográfica destes
poderes e as estratégias que desenvolvem para enfrentar os desafios que
se lhes apresentam tanto ao nível local como internacional depende de
outras considerações, diversas das subjacentes às
aspirações em questão.
Por outras palavras, a possibilidade de uma deriva por parte dos movimentos
sociais, a sua exploração e manipulação,
também constituem algumas das realidades que podem, eventualmente,
torná-los impotentes ou forçá-los a adoptar uma
perspectiva diferente da sua.
Há uma estratégia política global para a gestão
mundial. O seu objectivo é garantir a máxima
desintegração das potenciais forças
anti-sistémicas, através do contributo para o declínio do
sistema estatal. Tantas Eslovénias, Chechénias, Kosovos e Kuwaits
quanto possível! A utilização das
reivindicações de reconhecimento e mesmo a sua
manipulação são úteis nesta perspectiva. A
questão da comunidade, etnia, religião ou outras formas de
identidade, constitui, por isso, uma das maiores preocupações dos
nossos tempos.
O princípio básico da democracia que implica um verdadeiro
respeito pela diversidade nacional, étnica, religiosa, cultural e
ideológica não pode ser defraudado. A diversidade
não pode ser gerida senão pela prática sincera da
democracia. De outro modo, tornar-se-á, inevitavelmente, um instrumento
utilizado para os objectivos de cada opositor.
No Terceiro Mundo de Bandung,
os movimentos de libertação nacional conseguiram frequentemente
unir os vários grupos étnicos e comunidades religiosas contra o
inimigo imperialista. Embora as classes dominantes na primeira
geração de estados africanos fossem frequentemente realmente
trans-étnicas, poucos sistemas de poder conseguiram gerir
democraticamente essa diversidade e consolidar as realizações, se
houve algumas. Neste aspecto, a sua fraca propensão para a democracia
produziu resultados tão deploráveis como na maneira como lidaram
com outros problemas enfrentados pelas suas sociedades. Na crise subsequente,
as classes dominantes, em apuros desesperados, e desamparadas, tiveram,
frequentemente, um papel decisivo ao recorrer ao afastamento de comunidades,
como um meio de prolongar o seu controlo sobre as massas. No
entanto, mesmo em muitas autênticas democracias burguesas, a diversidade
de comunidades está frequentemente longe de ser gerida correctamente.
O sucesso do culturalismo dá a medida das insuficiências inerentes
à gestão democrática da diversidade, sendo o culturalismo
entendido no sentido de que as diferenças em questão podem ser
primordiais e devem ter prioridade (em
relação às diferenças de classe, por exemplo) e
que, por vezes, são supostas trans-históricas; por
outras palavras, baseadas em invariantes históricos (este é
frequentemente o caso dos culturalismos religiosos, que facilmente conduzem ao
obscurantismo e fanatismo).
Um critério essencial será então proposto para um
entendimento aprofundado da amálgama de exigências de
reconhecimento a nível social e a outros níveis. Os aspectos
considerados progressistas são os que pretendem combater a
exploração social e pressionar por mais democracia, em todas as
suas dimensões. Por outro lado, todas as reivindicações
apresentadas sem um programa social (porque se diz não ser
importante!), reivindicações de conteúdo não
opositoras à globalização (porque isso pode
também ser insignificante!), e que são apresentadas,
a fortiori,
com estando fora do conceito de democracia (acusada de ser
ocidental) são claramente reaccionárias e servem,
absolutamente, os interesses do capital dominante. De qualquer maneira, este
último está consciente da situação existente e
apoia essas reivindicações, mesmo quando os
media
tiram partido do seu conteúdo bárbaro para denunciar povos que
são vítimas do sistema usando ou mesmo manipulando esses
movimentos.
A alternativa humanista ao
apartheid
à escala global não pode ser sustentada por nostalgia
passadista; nem pode ser baseada na afirmação das diversidades
herdadas do passado. Esta alternativa não será real a menos que
surja numa estrutura resolutamente orientada para o futuro. Isto implica ir
para além da globalização capitalista truncada e
polarizadora, construir uma nova globalização
pós-capitalista baseada na igualdade real entre os povos, comunidades,
Estados e indivíduos.
As diversidades herdadas criam problemas porque existem. Mas concentrando-se
nelas, perde-se de vista outras diversidades que são, aliás, mais
interessantes essas que a invenção futura necessariamente
gera no seu movimento. O conceito associado a estas diversidades procede do
próprio conceito de democracia emancipadora e de modernidade
perpetuamente inacabada que o acompanha. As utopias criativas em torno das
quais se podem cristalizar as lutas dos povos por igualdade e por
justiça encontram sempre a sua legitimação nos
múltiplos sistemas de valores. Os sistemas de análise social
o seu complemento necessário são inspirados por
teorias sociais, elas próprias diversas. As estratégias propostas
visando rumar efectivamente na direcção apropriada não
podem ser monopólio de nenhuma organização. Estas
diversidades na invenção futura não são apenas
inevitáveis; são também bem-vindas.
A alternativa ao apartheid global é, por isso, um mundo pluricentrado,
em que relações económicas e políticas menos
desiguais entre regiões e países, que herdaram os efeitos
destrutivos da polarização criada pela expansão do
capitalismo, sejam sistematicamente organizadas através de um conjunto
complexo de negociações, políticas e
regulações visando:
(1) Renegociar quotas de mercado e as regras para o seu
acesso. Este projecto, claro, desafia as regras da OMC que, atrás de
todo o discurso da concorrência justa, está
exclusivamente preocupada em defender os privilégios dos
oligopólios que estão activos à escala mundial.
(2) Renegociar os sistemas dos mercados de capitais, com vista a
pôr fim à dominação da especulação
financeira e orientar o investimento para actividades produtivas no Norte e Sul.
(3) Renegociar os sistemas monetários, com vista a criar acordos
regionais e sistemas que assegurem a estabilidade relativa das taxas de
câmbio, acompanhados pela organização da sua
interdependência. Este projecto desafia o FMI, o padrão-dolar e o
princípio de taxas de câmbios livres e flutuantes.
(4) Começar a estabelecer um sistema fiscal mundial por
exemplo, taxando o rendimento derivado da exploração de recursos
naturais e redistribuindo estes fundos para fins determinados, pelo mundo, de
acordo com critérios apropriados.
(5) Desmilitarizar o planeta, começando pela
redução das armas de destruição maciça nos
arsenais dos países mais poderosos; e desmantelar as bases militares dos
EUA disseminadas por todo o planeta.
4-
Enfrentar o desafio implica reconstruir a solidariedade dos povos do Sul
Linhas orientadoras para uma aliança de longo alcance como base para uma
eventual reconstrução da solidariedade entre povos e Estados do
Sul.
As ideias propostas sugerem as linhas orientadoras para o renascimento de uma
Frente do Sul. Estas posições dizem respeito quer
à esfera política, quer à gestão económica
do processo de globalização.
A. A tomar forma, em termos de gestão económica do sistema
mundial, estão linhas orientadoras para uma alternativa que o Sul possa
defender colectivamente, uma vez que os países em causa compartilham
interesses comuns nesta área.
(i) A ideia de que as transferências internacionais de capital devem ser
controladas assume, de novo, uma dimensão fulcral.
De facto, há apenas um objectivo na abertura de contas de capital, que
é imposta pelo FMI como um novo dogma do liberalismo:
facilitar a transferência substancial de capital para os Estados Unidos
para compensar os crescentes défices a que a América está
sujeita que são ao mesmo tempo produto de deficiências
económicas na economia dos Estados Unidos e do desenvolvimento da sua
estratégia para o controlo militar do planeta.
Os países do Sul não têm interesse em facilitar, dessa
forma, a sucção do seu capital e, possivelmente, as
devastações causadas pelos raides especulativos.
Em consequência, a sujeição a todas as incertezas inerentes
ao sistema de taxas de câmbio flexíveis, que resulta logicamente
dos requisitos para a abertura de contas de capital, deve ser posta em causa.
Em vez disso, sistemas de organizações regionais que garantam a
estabilidade relativa dos câmbios devem ser estabelecidos e isso poderia
ser examinado através de estudos e negociações
sistemáticas no âmbito do Movimento dos Não-Alinhados e do
G-77.
(ii) A ideia de regular o investimento estrangeiro ressurgiu.
Naturalmente, os países do Terceiro Mundo não ponderam fechar as
suas portas a todas as formas de investimento estrangeiro, como alguns fizeram
no passado. Ao contrário, investimentos directos são solicitados.
Mas os procedimentos para a recepção destes investimentos
são, novamente, sujeitos a reflexões críticas, às
quais permaneceram sensíveis alguns sectores governamentais do Terceiro
Mundo.
Em relação a esta regulação, o conceito de direitos
de propriedade intelectual e industrial, que a Organização
Mundial do Comércio (OMC) quer impor, é doravante contestada.
É entendido que, longe de promover uma concorrência
justa em mercados abertos, esse conceito pretendia antes fortalecer
os monopólios das empresas multinacionais.
(iii) Muitos dos países do Sul compreenderam novamente que não
podem passar sem uma política nacional de desenvolvimento
agrícola, que dê conta da necessidade de proteger os camponeses da
consequência devastadora da sua integração acelerada, sob a
influência da nova concorrência que a
Organização Mundial do Comércio quer promover neste
domínio, e para preservar a segurança alimentar ao nível
nacional.
De facto, a abertura dos mercados de produtos agrícolas, que permite aos
estados Unidos, Europa e uns poucos países do Sul (os do cone Sul da
América) exportar os seus excedentes para o Terceiro Mundo,
ameaça, de facto, dessa maneira, os objectivos da segurança
alimentar nacional, sem fornecer compensações, uma vez que as
produções dos camponeses do Terceiro Mundo deparam-se com
dificuldades insuperáveis nos mercados do Norte. E contudo, esta
estratégia liberal, desintegrando e acentuando a migração
destes camponeses das áreas rurais para os bairros de lata urbanos,
explica o reaparecimento de lutas campesinas no Sul, que constituem agora uma
fonte de ansiedade para as autoridades públicas.
A questão agrícola é frequentemente discutida em detalhe
na arena da OMC, apenas do ângulo dos subsídios que a Europa e os
Estados Unidos concedem não só à produção
dos seus agricultores, mas também às exportações
agrícolas dos seus agricultores. Este enfoque apenas na questão
do comércio mundial de produtos agrícolas eclipsa, imediatamente,
as grandes preocupações mencionadas acima. Cria, também,
estranhas ambiguidades, porque incita os países do Sul a defender
posições ainda mais liberais dos que as actualmente adoptadas
pelos governos do Norte, no meio dos aplausos do banco Mundial (mas, desde
quando é que o Banco Mundial defende os interesses dos países do
Sul contra os dos seus parceiros do Norte?). Nada impossibilita que se separem
os subsídios concedidos aos agricultores pelos seus governos (afinal, se
defendemos o princípio da redistribuição do rendimento no
Sul, os países do Norte também têm esse direito!) dos que
se destinam a sustentar o
dumping
de exportações agrícolas do Norte.
O falhanço da Conferência de Cancun da OMC (Setembro de 2003) deve
ser entendido como uma vitória dos povos envolvidos. O mero facto da
vasta maioria dos países do Sul ter rejeitado o
diktat
cozinhado pela OMC é, por si só, uma vitória. Mas
permanece limitada e, até, ambígua, na medida em que o que foi
rejeitado foi não o princípio do liberalismo (
i.e.
a abertura franca e recíproca de todos os mercados a todos), mas apenas
o plano escandaloso e tendencioso para a sua implementação. O Sul
deve perceber que tem de ir mais longe, uma vez que mesmo uma abertura generosa
e recíproca de todos os mercados a produtos agrícolas e
alimentares (com ou sem subsídios) seria catastrófica para as
suas sociedades camponesas.
(iv) A dívida já não é apenas considerada
economicamente insustentável. A sua legitimidade é agora posta em
causa. Uma reivindicação actualmente a tomar forma destina-se a
conseguir a renúncia unilateral de dívidas odiosas e
ilegítimas, como para abrir caminho para uma lei internacional da
dívida merecedora deste nome que ainda não existe.
Uma auditoria generalizada à dívida, possibilitaria, de facto,
apresentar uma proporção significativa de dívidas
ilegítimas, odiosas e, por vezes, até criminosas. E, ainda assim,
só os juros pagos por estas dívidas alcançaram tais
níveis, que a exigência, legalmente justificada, do seu reembolso
pode, realmente, ajudar a cancelar a dívida corrente e a revelar toda a
transacção como uma verdadeira forma primitiva de pilhagem. Para
esse efeito, a ideia de que as dívidas externas devem ser reguladas por
uma legislação normal e civilizada, tal como as dívidas
domésticas, deve ser apoiada através de um campanha pela
promoção da legislação internacional e pelo
reforço da sua legitimidade. Obviamente, é precisamente porque a
lei é omissa neste sector que a questão é resolvida apenas
pelo equilíbrio brutal de poder. Estas relações permitem,
por isso, legitimar dívidas internacionais, que trariam devedor e credor
a tribunal por associação criminosa se fossem
dívidas domésticas (e o credor e o devedor proviessem da mesma
nação e fossem regidos pelo respectivo sistema legal).
B. Na esfera política: a denúncia do novo princípio da
política dos Estados Unidos (guerra preventiva) e a
exigência pela evacuação de todas as bases militares
estrangeiras na Ásia, África e América latina.
A escolha de Washington das suas zonas de intervenções militares
ininterruptas desde 1990 é o Médio Oriente Árabe
Iraque e Palestina (para esta última, através do apoio
incondicional de Israel) , os Estados Balcânicos
(Jugoslávia, novas instalações dos EUA na Hungria,
Roménia e Bulgária), a Ásia Central e a região do
Cáucaso (Afeganistão, a Ásia Central ex-Soviética e
a região Caucasiana), Iraque.
Os objectivos seguidos por Washington compreendem vários aspectos: (i)
controlar a região produtora de petróleo mais importante do mundo
e exercer pressão sobre o processo, com vista a relegar a Europa e o
Japão para o estatuto de aliados subordinados; (ii) estabelecer bases
militares americanas permanentes no coração do Velho Mundo (a
Ásia Central é equidistante de Paris, Joanesburgo, Moscovo,
Pequim e Singapura) e assim preparar outras futuras guerras
preventivas, primordialmente contra os países poderosos, capazes
de se impor como parceiros com quem se tem de negociar (a China em
primeiro lugar, mas também a Rússia e a Índia). Este
objectivo pode ser conseguido através do estabelecimento de regimes
fantoches, impostos pelas forças armadas dos Estados Unidos, nos
países da região em questão. De Pequim a Deli e Moscovo,
está a tornar-se cada vez mais óbvio que as guerras
made in USA
constituem, em última análise, mais uma ameaça à
China, Rússia e Índia, do que às suas vítimas
imediatas, como o Iraque.
Regressando a Bandung, o programa do não às bases militares
americanas na Ásia e em África é agora uma
questão fulcral. Que comecemos a ouvir, de todas as partes do mundo, um
grito crescente: US Go Home!
Notas do tradutor:
[NT1] Pode ser uma gralha. O montante de lucro que se pretende
referir será certamente maior.
[NT2] A frase parece absurda. Há um problema de redacção.
[*]
Comunicacção apresentada ao Fórum Social Mundial, Mumbai, 2004.
Tradução de Tiago Redondo.
O original encontra-se em
http://next.u-paris10.fr/actuelmarx/index4.htm
.
Este ensaio encontra-se em
http://resistir.info/
.
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