A Índia, uma grande potência?
Com uma população superior a mil milhões, a aproximar-se
da da China, e com uma taxa de crescimento económico acima da
média mundial, a Índia é hoje identificada frequentemente
como uma das prováveis grandes potências do século XXI.
Neste artigo proponho-me questionar esse prognóstico, já que me
parece que estão longe de estar asseguradas as condições
necessárias para que a Índia venha a ser uma grande
potência.
As minhas dúvidas residem no facto de que a Índia independente
não encarou de frente um dos mais importantes desafios, o da
transformação radical das estruturas herdadas do capitalismo
colonialista. É verdade que a classe governante da Índia
independente decidiu enxertar um plano nacional burguês nesta
herança, a qual foi preservada na sua maior parte. Analisando os
sucessos, as limitações e também os fracassos deste
projecto, vou colocar as questões às quais o discurso liberal
modernista dominante tem fugido desde o início: estará a
Índia burguesa condenada à 'compradorização'
[1]
inerente ao estatuto das estruturas capitalistas periféricas do
país e, em consequência, será impossível que a
Índia aceda ao estatuto de uma grande potência moderna, sem passar
primeiro por uma verdadeira revolução social?
A HERANÇA COLONIALISTA
Na essência, a colonização britânica transformou a
Índia num país capitalista, dependente da agricultura. Para o
conseguir, a Inglaterra implantou sistematicamente formas de propriedade
privada das terras agrícolas, o que impediu o seu acesso à maior
parte dos camponeses. Esta política deu origem à
formação de grandes propriedades dominantes no norte do
país, sendo menos desvantajosa para as propriedades de dimensão
média dos camponeses do sul que, em comparação, eram mais
abastados. A maioria dos camponeses viu-se transformada numa classe pobre,
praticamente sem terras. O preço desta medida capitalista
assimétrica no desenvolvimento agrícola foi as
condições de pobreza extrema em que vive a maioria da
população indiana.
O modo universal de organização da gestão da terra
não é a propriedade privada, como pensam automaticamente as
mentes deformadas pelo eurocentrismo mas, pelo contrário, é a
propriedade que emana duma comunidade política. Na Índia
pré-colonialista, as terras eram repartidas pelas comunidades das
aldeias, de forma proporcional (com base em princípios altamente
desiguais, baseados no sistema de castas hierárquicas). Estas
comunidades, por seu turno, estavam sujeitas a uma comunidade política
superior, o estado (que cobrava impostos às comunidades sob a sua
autoridade). Os ingleses promoveram à categoria de proprietários
privados, com diversos graus de autoridade, os responsáveis por esta
gestão política, impondo assim o seu próprio modelo do
capitalismo ocidental. Este padrão foi seguido por outros europeus, quer
na América quer nas colónias da Ásia e da África.
Nos dias de hoje, os funcionários do Banco Mundial não
dispõem dos meios intelectuais que lhes permitam entender que aquilo que
têm recomendado como sendo a única solução universal
(a propriedade privada da terra), é apenas uma via sem exemplo, cujo
sucesso numa pequena parte do mundo esconde o facto de que ela constitui um
impasse no resto do mundo.
No início, os comunistas indianos dos anos 30, preconizavam o combate a
esta herança e subscreviam o programa de reforma agrária mais
radical - a terra a quem a trabalha, ou seja, praticamente para
todos os camponeses. Os burgueses do Partido do Congresso nunca o puseram em
prática e a Índia independente reduziu as promessas feitas aos
camponeses a um simulacro de reforma agrária sem qualquer impacto. O que
é certo é que, tanto em Bengala ocidental como em Kerala, se
registaram resultados positivos em termos sociais e económicos e se
reforçou o apoio popular aos reformadores, quando as forças
comunistas parlamentares locais foram um pouco mais longe, tanto quanto a
constituição indiana o permitia.
Embora, inicialmente, a questão fundamental da propriedade das terras
agrícolas fosse uma das principais áreas de debate no seio dos
comunistas e também noutros sectores (burgueses democráticos e
populistas), a influência da ideologia liberal (mesmo antes do seu
triunfo aparentemente total no final do século) conseguiu impor as
noções erradas de que era fundamental a propriedade privada da
terra, de que não havia alternativa à solução
ocidental (onde a classe camponesa vai desaparecendo à medida que
é absorvida pelo desenvolvimento urbano capitalista) e que, portanto, a
exigência de uma reforma agrária era obsoleta. O Banco Mundial
introduziu a revolução verde e as formas de reforma
agrária sustentada pelo mercado, como lhe chamou. A
implementação de tal reforma acabou sempre num desastre no
reforço da desigualdade social e na submissão dos produtores
agrícolas ao capital dominante (na realidade, era este o verdadeiro
objectivo, embora oculto, destas políticas). A Índia é um
óptimo exemplo disso. Sabemos que as reformas agrárias
sustentadas pelo mercado, implementadas pelo Banco Mundial desde o Brasil
à África do Sul também acabaram numa farsa. Infelizmente,
grande parte da esquerda, onde se incluem importantes sectores dos partidos
comunistas indianos, está hoje contaminada por este disparate propalado
pela ideologia liberal. Os tradicionalistas, que pretendem implantar aquilo que
julgam ter sido a verdadeira ordem original, têm o cuidado de não
desafiar este legado colonialista que beneficia as minorias privilegiadas! Na
Índia, os nacionalistas hindus, assim como os defensores do Islão
político um pouco por toda a parte (em especial no Paquistão),
submetem-se à expansão do capitalismo periférico
dependente.
Na Índia, o obstáculo que esta herança colonialista
representa para o progresso é agravado pela manutenção do
sistema de castas. As castas inferiores (designadas hoje por
dalits
) e as populações tribais que têm o mesmo estatuto,
constituem um quarto da população da Índia (cerca de 250
milhões de pessoas). Privados do acesso à terra, formam uma massa
de trabalhadores disponíveis para qualquer tarefa e qualquer
horário de trabalho, em troca dum salário de miséria. A
manutenção desta situação reforça as ideias
reaccionárias e o comportamento dos outros e leva a que o
exercício do poder seja feito por e a favor de uma minoria privilegiada.
Desempenha o papel de atenuar e até mesmo de neutralizar qualquer
protesto da maioria explorada que está entalada entre a minoria
exploradora e a situação oprimida dos
dalits
e das comunidades tribais.
Claro que a colonização britânica teve o maior cuidado em
não combater o sistema de castas, escondendo-se por detrás do
argumento hipócrita do respeito pela tradição (o que
não fizeram quando isso não lhes convinha como, por exemplo,
quando privatizaram a propriedade das terras!). Simultaneamente, o poder
colonialista manipulou a situação em seu próprio
beneficio, ao permitir que uns quantos
dalits,
com acesso à educação, pudessem aceder a cargos
colaboracionistas. Podemos dizer que, na Índia independente, os poderes
continuaram esta prática, a qual só foi seriamente posta em causa
durante o curto período de tempo em que esteve no poder a aliança
de esquerda liderada por V.P. Singh (e apoiada pelos parlamentares comunistas).
A direita hindu, claro, não se pronuncia sobre esta questão! E
os Estados Unidos, actualmente utilizando como intermediárias as
ONG que proclamam defender os direitos humanos tentam manobrar os
protestos da comunidade
dalit
e mantê-la confinada a áreas que sejam inofensivas para a
gestão do capitalismo como um todo.
Felizmente, esta situação pode estar em vias de ser ultrapassada,
dada a radicalização da luta, sob a forma de
insurreições encabeçados principalmente pelos camponeses
maoistas naxalistas. É verdade que estas insurreições
têm sido sufocadas, no sentido em que ainda não conseguiram criar
e estabilizar regiões libertadas, de poder popular. No entanto, a
resistência armada, liderada pelos maoistas, ao começar por
combater as estruturas da propriedade, herdadas do colonialismo, e do sistema
de castas, pavimentou o caminho para futuras mobilizações
revolucionárias. A entrada dos dalits na cena política, um
acontecimento sem par nas duas últimas décadas, é sem
dúvida, pelo menos em parte, produto do naxalismo.
EXCESSOS E LIMITAÇÕES DO PROJECTO NACIONAL POPULISTA
Os governos do Partido do Congresso na Índia independente levaram
à prática um plano nacional que, de forma típica para a
época, foi influenciado pelas vitórias dos movimentos nacionais
de libertação na Ásia e na África após a II
Guerra Mundial. Os partidos agora no poder (as forças políticas
que se mobilizaram durante esta luta pela independência, pela
modernização e pelo desenvolvimento), gozavam de uma legitimidade
inegável, mas os planos que puseram em prática foram minados
pelas ambiguidades que caracterizavam esses mesmos movimentos de
libertação. Esses planos eram anti-imperialistas, visto que
consideravam com justiça que a modernização e o
desenvolvimento exigiam acima de tudo a independência nacional. Mas
pararam aí, convencidos que poderiam impor ao sistema global dominante
(o capitalismo mundial) os ajustamentos necessários para permitir que as
nações da Ásia e da África se constituíssem
como parceiros iguais e poderem assim ultrapassar progressivamente os
handicaps
do seu atraso. Apesar de bem sucedidos numa dimensão
apreciável, não conseguiram atingir o sucesso final e cedo
esbarraram nas limitações das suas ideias estratégicas.
Os debates dessa época tanto na Índia como por todo o lado
na Ásia e na África centravam-se especificamente nestas
ideias estratégicas. Seria essa uma fase necessária, descrita no
calão marxista da época como uma fase burguesa
democrática revolucionária que se preparava para se
aproximar da esquerda, voltando-se para a construção do
socialismo?
Para além da sua implantada dimensão nacional, o plano dos que
estavam no poder incluía medidas de maior ou menor alcance, que lhes
tinham sido impostas pela grande aliança do povo contra o imperialismo,
impostas mesmo àqueles das classes dominantes que só conseguiam
ver os benefícios do capitalismo. No meio das diversas
situações, todos os legítimos poderes que tinham surgido
da libertação nacional estavam ligados por um denominador comum:
ou seja, o seu carácter populista toda (ou a maioria) a sociedade
partilhava, por um lado, o empenho em assegurar os benefícios do
desenvolvimento e, por outro lado, o desejo de controlar o processo, impedindo
as classes dominantes de se organizarem fora do seu controlo.
Os comunistas demonstraram frequentemente uma clara consciência desta
contradição e das limitações que ela impunha quanto
aos empreendimentos do sistema mas, por diversas razões que não
vou aqui discutir, tal como acontecia com outros sob a influência dos
soviéticos (e das atitudes que estes recomendavam, postas em termos de
solução não capitalista), a maior parte dos
comunistas na Ásia e na África acabaram por se tornar, em maior
ou menor grau, em forças de apoio crítico aos planos
nacionais populistas em causa. A cisão que opunha os maoistas aos
soviéticos moderava, por vezes, a dimensão deste apoio,
principalmente na Ásia. Os comunistas indianos mantinham-se distantes,
em diversos graus, do plano nacional populista do Partido do Congresso. Os
partidos e as tendências dominantes dos comunistas indianos actuais
diferenciam-se pelo grau desse distanciamento. Quanto à dimensão
desse distanciamento, os comunistas tinham uma forte posição
dentro da sociedade, a qual não pode ser comparada, por exemplo, com a
dos comunistas árabes, cujos partidos se aliaram quase
incondicionalmente ao populismo dos seguidores de Nasser, do Baath e de
Bumediene.
Apesar das suas limitações, os sucessos do plano nacional
populista indiano de Jawaharlal Nehru e de Indira Ghandi foram significativos,
quer económica quer politicamente.
Logo de início, a colonização levou a cabo uma
desindustrialização da Índia, avançada na altura,
em beneficio da Grã-Bretanha que estava em vias de
industrialização. Por isso, a Índia independente deu
prioridade à sua industrialização, o que foi encarado com
um alto grau de sistematização, pelo menos inicialmente. Para
além disso, promoveu-se a combinação do grande capital
privado indiano com as empresas do sector público, para colmatar as
falhas do sistema de produção herdado da
colonização, acelerar o crescimento e reforçar as
indústrias básicas.
As macropolíticas de regulamentação implementadas nessa
altura tinham como objectivo servir este plano de modernização.
Utilizou-se o controlo dos preços e dos câmbios, os
subsídios, a regulamentação das empresas estrangeiras e a
importação de tecnologia, para assegurar o principal objectivo de
proteger a indústria indiana contra os efeitos devastadores do
domínio do capital imperialista nos mercados mundiais. Só em
segundo plano é que essa regulamentação visava objectivos
sociais a redistribuição da riqueza e, sobretudo, a
redução da pobreza extrema das classes populares. Este plano de
modernização industrial acelerada, acompanhado por um plano para
o desenvolvimento da produção agrícola (cereais
principalmente), baseado na revolução verde (que substituiu a
reforma agrária posta de lado a revolução
vermelha!) tinha como objectivo principal tornar o país auto-suficiente
em matéria de alimentos. A intenção era canalizar todas
as receitas da exportação exclusivamente para cobrir as
importações necessárias à sua indústria.
Todo este plano era verdadeiramente capitalista por natureza, no sentido em que
os benefícios da produção e as tecnologias escolhidas
não contestavam a base lógica fundamental do capitalismo, embora
se possa dizer a este respeito que a experiência do socialismo realmente
existente (mesmo na China, até certo ponto) não era assim
tão diferente quanto parecia, apesar da natureza exclusiva da
propriedade pública. No entanto, o plano indiano era nitidamente menos
radical, na medida em que o grau de separação do seu sistema de
produção em relação ao sistema mundial dominante
era menos sistemático do que o era na União Soviética ou
na China, onde os salários e os preços planeados
teoricamente não se podiam comparar com os do sistema capitalista
global. Esta característica do plano indiano, que pode ser encontrada
noutras experiências nacionais populistas não-comunistas (no mundo
árabe, por exemplo), estava intimamente relacionada com a ausência
de contestação das estruturas sociais herdadas da
colonização.
A dimensão exacta desta estreita relação revelou-se na
opção pela revolução verde que, como sabemos,
reforçou a posição das classes rurais dominantes e os
grandes latifundiários em especial, em vez de os enfraquecer.
Estas diferenças entre o modelo nacional indiano e o da China comunista
são responsáveis pelas diferenças visíveis nos seus
resultados. A taxa de crescimento da produção industrial e
agrícola na Índia não era má nessa época,
era significativamente mais alta do que tinha sido durante os tempos
colonialistas e superior à média mundial no capitalismo
pós-guerra mas, no seu conjunto, as taxas de crescimento mantinham-se em
níveis consideravelmente mais baixos que as da China. Para além
disso, enquanto que o crescimento na China era acompanhado por uma acentuada
melhoria do nível de vida das classes populares, isso não
acontecia na Índia onde o crescimento beneficiava exclusivamente as
novas classes médias (que eram uma minoria, embora num período de
30 anos tenham aumentado de 5 para 15 por cento da população
total do país). A pobreza das classes populares dominantes mantinha-se
inalterada, ou mesmo ligeiramente agravada.
O discurso liberal não toma em conta estas realidades básicas. E
é por isso que não concordo com as conclusões optimistas
tiradas por muitos futurólogos, de que a Índia está
prestes a atingir um crescimento acelerado que a elevará à
condição duma grande potência mundial, seguindo o exemplo
da China. Até agora, a China tem a vantagem do legado da sua
revolução radical enquanto que a Índia está
prejudicada pelo legado incontestado da sua colonização. É
por isso que o crescimento económico na China, sustentado por sistemas
de investimento que são mais favoráveis ao desenvolvimento de
todo o sistema de produção, continua a prevalecer, comparado com
o crescimento na Índia. É verdade que, se a China vier a
tornar-se demasiado liberal, e se continuar no caminho ultra-liberal dos
últimos 15 anos, veremos o crescimento afrouxar. Na minha
opinião, no âmago do desafio que ambos os países enfrentam
actualmente está a questão agrária, ou seja, a
questão fundamental do acesso de todos os camponeses à terra e
à produção, acesso que as pessoas ainda hoje têm na
China (mas até quando?) mas que sempre foi recusado à
Índia.
Os sucessos políticos da Índia independente são de facto
significativos. A Índia é muito mais heterogénea que a
China. Foi precisamente por jogar com a diversidade dos povos (e dos estados)
indianos que a colonização inglesa conseguiu impor o seu poder.
Deve-se agradecer ao movimento de libertação nacional o seu
sucesso em manter a unidade da nação federal indiana. A
razão para este sucesso é o laicismo do estado indiano, que nem
mesmo a vaga do culturalismo hindu conseguiu minar. A diferença entre o
comportamento dos governos indianos e da maioria da sociedade indiana em
relação à sua minoria muçulmana, e o comportamento
dos governos e sociedades dominadas por muçulmanos, demonstra o valor do
laicismo. Este progresso democrático não se encontra noutras
regiões do mundo (especialmente no mundo árabe e
muçulmano). É certo que esta afirmação tem que ser
qualificada. Há provas abundantes (que incluem os sikhs por um lado e
as lutas nacionais dos povos do nordeste, por outro) das
limitações da capacidade do regime para resolver correctamente as
questões nacionais.
A experiência da Índia de hoje demonstra a superioridade
inquestionável da democracia e a futilidade dos argumentos a favor da
gestão autocrática que frequentemente é apregoada como
mais eficaz. Isto mantém-se uma verdade, apesar das
limitações evidentes e do conteúdo de classe da democracia
burguesa em geral, e da sua realidade na experiência indiana. Dando
crédito ao movimento de libertação nacional (Congresso e
comunistas), esta opção era provavelmente a única forma
eficaz de gerir os diversos interesses sociais e regionais (mesmo se limitados
aos das classes privilegiadas). Era também a única maneira de
ganhar o apoio popular para o plano da minoria que formava o bloco
hegemónico.
Na cena internacional, a Índia independente dedicou-se a dar forma
à frente sul da época, o Movimento dos Não-Alinhados,
cujas origens provêm da Conferência Afro-Asiática realizada
em Bandung (1955). Nem mesmo a colisão frontal da Índia com a
China pôs em risco esta estratégia abertamente anti-imperialista.
OS DESVIOS LIBERAIS E CULTURALISTAS
A erosão do plano nacional populista era tão inevitável na
Índia como em qualquer outro lado dadas as suas limitações
e contradições inerentes. Este facto e a
deslegitimação do poder que o acompanhou deu azo a uma ofensiva
das forças obscurantistas apoiadas pela classe dominante 'compradora' e
por uma grande parte das classes médias (cuja expansão estava a
diminuir e cada vez mais cercada de dificuldades) motivadas pelo discurso e
pelas manobras do imperialismo dos Estados Unidos. A viragem em 1991 para o
liberalismo levou à liderança os 'compradores' do Partido do
Congresso, mas os seus beneficiários políticos, como noutros
sítios, eram culturalistas que encontravam um auditório aberto
às suas ilusões irracionais quanto às tensões
sociais e à miséria sempre presentes nas reformas liberais.
Na Índia, estas ilusões obscurantistas têm um nome:
Hindutva. Este termo designa a afirmação da prioridade da
adesão à religião hindu, definida como a identidade
real das populações do país, por
oposição ao conceito de Bharatva que se refere
à nação. Com efeito, esta afirmação hindu
não contesta o legado colonialista quanto à propriedade da terra
nem, em particular, quanto ao respeito pelo sistema hierárquico de
castas. Quanto a isto, como os comunistas indianos não deixaram de
assinalar, as ilusões obscurantistas servem perfeitamente os interesses
dos poderes dos 'compradores' e imperialistas. As especificidades
de que está recheado o seu discurso pseudo nacional ou mesmo quase
anti-imperialista, não têm qualquer valor. Alimentam uma
renovação do comunitarismo separatista (neste caso
anti-muçulmano) que o poder colonialista utilizava, nos seu tempo, para
combater as aspirações nascentes da libertação
laica, democrática e modernista.
Neste aspecto esta regressão não se diferencia daquela que aflige
outras sociedades periféricas que são vítimas da mesma
erosão do plano nacional populista, em especial as sociedades
árabes e muçulmanas. É claro o paralelo com o
Islão político.
No entanto, este desvio adverso não parece necessariamente ser
tão marcado na Índia como nos países árabes e
muçulmanos. A explicação para isto reside sem
dúvida no facto de que os partidos comunistas indianos mantêm as
suas distâncias em relação ao plano do Partido do Congresso
para a Índia independente, enquanto que os dos países
árabes e muçulmanos se aliaram quase incondicionalmente com
planos populistas semelhantes. Em resultado disso, os comunistas na
Índia têm mantido (ou mesmo alargado) um grau de popularidade que
protege a sociedade de uma regressão à época em que quase
todos os movimentos comunistas estavam a entrar numa fase de declínio.
Por conseguinte, este declínio foi acompanhado aqui pela
radicalização renovada das lutas sociais. Podemos ver provas
disso na ofensiva naxalista que, apesar de erros tácticos de
apreciação, despertou a consciência revolucionária
entre os camponeses em vastas áreas da Índia (aproximadamente um
terço). Podemos encontrar outras provas disso na brutal entrada dos
dalits
no combate político e social (este, sem dúvida,
consequência da radicalização da classe camponesa) e no
apoio confirmado das classes médias à democracia.
Isto explica porque é que o colapso da legitimidade que o Partido do
Congresso desfrutara quase com exclusividade não produziu uma
vitória definitiva para a direita. O primeiro governo da ala direita
foi derrubado por uma aliança eleitoral da ala esquerda liderada por
V.P. Singh que trouxe aos comunistas uma maior influência na vida
política do país. Esta aliança ainda frágil foi
incapaz de evitar a recuperação eleitoral da direita mas, por seu
turno, esta segunda experiência de um governo hindu-'comprador' que se
submetia inteiramente aos ditames do imperialismo na ofensiva (acelerando a
liberalização económica) fracassou. Nas
eleições de 2004 as premissas do culturalismo e do liberalismo
hindu promovidas pela burguesia 'compradora' e pelos seus mestres imperialistas
foram consideradas como responsáveis pela catástrofe social por
parte da maioria do eleitorado indiano. Uma associação destas
não se faz em qualquer parte, especialmente nos mundos árabes e
muçulmanos.
Mas o combate está longe de ter sido ganho pela esquerda indiana.
São tremendos os problemas de organização que o dividido
movimento comunista indiano enfrenta. Uma cooperação eficaz na
luta requer um esforço maciço para ultrapassar obstáculos
históricos, dos quais as formas de organização
antidemocráticas não são os menores.
A LONGA E DIFÍCIL MARCHA PARA A ALTER-GLOBALIZAÇÃO
O discurso liberal dominante não só considera que não
há alternativa para o liberalismo económico e para a forma de
globalização que o acompanha, mas também proclama que o
apoio a esta escolha é progressista e que todas as pessoas dotadas de um
espírito empreendedor acabam por vencer. Não basta reconhecer que
isto é um disparate, que foi desmentido pelos factos e que não
resiste a qualquer reflexão teórica séria. A
construção de uma alternativa social progressista que faria parte
duma integração global diferente completamente separada da
política, da economia e da ideologia mundial neo-liberal (isto é,
uma alter-globalização de facto) é ainda difícil e
a marcha nessa direcção será longa.
No que diz respeito à Índia, a criação de uma tal
alternativa significa obrigatoriamente que tenham de se encontrar respostas
adequadas para atingir os seguintes quatro principais objectivos:
1- Encontrar uma solução radical para o problema dos camponeses
indianos, baseada no reconhecimento do direito de todos os camponeses à
terra, em condições o mais igualitárias possível.
Isto, por sua vez, significa a abolição do sistema de castas e da
ideologia que o legitima. Por outras palavras, a Índia tem que evoluir
para uma revolução tão radical como a da China.
2- Criar uma frente de trabalhadores unidos que integre segmentos das classes
trabalhadoras relativamente estabilizadas com aqueles que não o
estão. Este desafio é comum a todos os países do mundo
moderno, principalmente aos da periferia do sistema, caracterizados pelos
efeitos extremamente destrutivos da nova pobreza (desemprego maciço,
falta de segurança de trabalho, e excrescência de
condições miseráveis no sector informal). É dever
dos sindicalistas, dos comunistas e dos activistas dos movimentos populares
criar novas formas de luta que melhorem a democracia participativa e, em
conjunto, ser capazes de definir as fases duma estratégia a longo prazo.
3- Manter a unidade no subcontinente indiano, pela implantação de
governos autónomos democráticos locais, renovar as formas de
associação dos diversos povos que compõem a
nação indiana em bases democráticas reforçadas.
Para derrotar as estratégias do imperialismo que, como sempre, persegue
(para lá das suas opções tácticas) o seu objectivo
de retirar o poder aos grandes países, pois estes têm melhores
condições do que os micro países para fazer frente aos
assaltos do imperialismo.
4- Focar as opções políticas internacionais no objectivo
central de reconstruir uma frente dos povos do Sul (a solidariedade dos
países da Ásia e da África em primeiro e principal lugar)
duma forma, claro, que não seja a mesma que presidiu à
formação do Movimento dos Não-Alinhados na época de
Bandung (1955-1975). Dar a maior prioridade ao objectivo de fazer descarrilar o
plano dos Estados Unidos para o controlo militar do planeta e de sabotar as
manobras políticas de Washington cujo fim é impedir qualquer
aproximação séria entre a Índia, a China e a
Rússia.
São consideráveis as forças políticas e sociais que
impedem a Índia de se mover nas direcções acima
mencionadas. Elas formam um bloco hegemónico que abrange um quinto da
população são as grandes massas dos camponeses e
das classes médias abastadas, da alta burocracia e tecnocracia, por
detrás da burguesia da alta indústria, do comércio e das
finanças, e os grandes latifundiários. Estes 200 milhões
de indianos são os beneficiários exclusivos do plano nacional
implementado até agora. Sem dúvida, na época actual do
grande triunfo liberal, este bloco está a desmoronar-se sob o efeito,
entre outros, do fim da mobilidade social ascensional das classes médias
mais baixas, que estão ameaçadas com a perda da segurança
de trabalho e com o empobrecimento, ou mesmo a pobreza total. Esta
situação dá à esquerda a oportunidade de
desenvolver tácticas, se puder, para enfraquecer a coerência
destas forças reaccionárias em geral e em particular a sua
abordagem 'compradora' que é a correia de transmissão para o
domínio imperialista globalizado. Contudo, oferece também
oportunidades à direita hindu na eventualidade de a esquerda falhar.
Ouvimos muitas vezes a direita dizer que esta nação de 200
milhões de pessoas que, por si só constituem um mercado
enorme comparável a vários grandes países europeus,
é o futuro da Índia, enquanto que a maioria que atinge uns
800 milhões de indianos mergulhados na pobreza é apenas a
bola e a grilheta a que o país está acorrentado. Para
além de repugnante, esta opinião reaccionária é
perfeitamente estúpida. A minoria só é privilegiada
porque explora os recursos do país e os trabalhadores que são a
maioria.
A minoria que constitui este bloco está, assim, numa
situação que exclui na Índia a reprodução do
compromisso capital-trabalho sobre o qual a social-democracia ocidental foi
fundado. O discurso que compara o Fordismo periférico com o Fordismo
das regiões desenvolvidas está baseado numa incapacidade enorme
de compreender o impacto de cada uma destas duas fórmulas: o Fordismo
ocidental partilhava os benefícios da expansão capitalista com a
maioria das classes trabalhadoras, enquanto que o Fordismo periférico
funciona em benefício exclusivo das classes médias. A
Índia não é o único exemplo disto; o Brasil e a
China estão hoje em situação idêntica.
O facto de este bloco hegemónico governar sob uma democracia
política, tal como acontece na Índia, não diminui a sua
dimensão de classe reaccionária. Pelo contrário, é
a forma mais eficaz de a estabelecer.
Este bloco hegemónico que governa a sociedade indiana está bem
integrado na racional da globalização capitalista dominante e
até agora não tem sido contestado por nenhuma das diversas
forças políticas através das quais se exprime. Contudo, o
projecto nacional indiano mantém-se frágil, incapaz pela sua
própria natureza, de se alargar a toda a sociedade, mesmo na forma
limitada de um capitalismo racionalizado.
Esta vulnerabilidade resulta no comportamento frequentemente oportunista da
classe política indiana, justificada a maior parte das vezes por
argumentos de política real a curto prazo. Confrontada com o plano dos
Estados Unidos para o total controlo (militar) do planeta e com o alinhamento
imperialista colectivo da tríade (Estados Unidos, Europa e
Japão), a classe política indiana tem sido incapaz até
agora de produzir e implementar as contra medidas necessárias. Seria
necessário impor a criação de uma frente que unisse a
Índia, a Rússia e a China, todas elas ameaçadas de igual
modo pela compradorização decorrente da
expansão do colectivo neo-imperialista. Também seria
necessário impor a prossecução mais sistemática
duma reaproximação à Europa, tanto maior quanto maior
fosse a distância a que esta última se mantivesse em
relação ao plano hegemónico de Washington. Os governantes
da Índia não dão o devido valor a esta perspectiva, mesmo
os que defendem formas de governo mais determinadas a minar o direito dos
'compradores' hindus. Pelo contrário, continuam a dar prioridade aos
seus conflitos com a China, encarada como um potencial adversário
militar e um perigoso rival financeiro nos mercados de capitalismo globalizado.
Acreditam mesmo que podem explorar uma possível
aproximação com os Estados Unidos para virem a ser o seu maior
aliado na Ásia.
Também outros países no terceiro mundo adoptaram um semelhante
raciocínio enganoso: o Brasil, a África do Sul e até a
China.
As medidas necessárias para refrear o desenvolvimento de um novo
imperialismo colectivo exigem a reconstrução duma frente dos
povos do sul. Aqui, de novo, a tarefa não é nada fácil. Os
conflitos entre os países do sul, principalmente na área entre a
Índia e o Paquistão, causados principalmente pelo desvio
culturalista-'comprador' (de que o Islão político é o
principal responsável), estão em primeiro plano e reforçam
os cálculos tácticos a curto prazo da classe política
indiana.
Este oportunismo não só destruirá a longo prazo as
condições necessárias para a construção duma
alternativa nacional progressista e duma alter-globalização que a
sustente, mas também cega os seus defensores ao ponto de os fazer perder
de vista a vulnerabilidade da unidade indiana e as manobras dum imperialismo
que procura destruí-la. Não haja ilusões nesta
área. Mesmo que a diplomacia de Washington optasse agora por
apoiar a Índia e a sua unidade durante algum tempo, por
razões tácticas, o seu plano a longo prazo é o de
incapacitar este grande país de tornar-se uma grande potência. A
submissão ao projecto de expansão do capitalismo global
reforça tendências centrífugas, já que esta
submissão acentua as desigualdades regionais de desenvolvimento. A
visão da Índia como uma grande potência é
inconsistente com as exigências severas de um capitalismo global sob a
hegemonia dos Estados Unidos.
_________
[1]
"burguesia compradora": classe improdutiva existente nos países
subdesenvolvidos que é constituída por agentes comerciais
representantes de interesses imperialistas e os clientes das suas mercadorias.
Sun Yat Sen, na China do princípio do século XX, foi
provavelmente um dos primeiros a utilizar esta expressão.
[*]
Samir Amin é o director do Fórum do Terceiro Mundo em Dakar,
Senegal. Os seus livros mais recentes incluem
Obsolescent Capitalism: Contemporary Politics and Global Disorder
(Zed Books, 2004) e
The Liberal Virus: Permanent War and the Americanization of the World
(Monthly Revue Press, 2004). São também do mesmo autor:
World Poverty, Pauperization & Capital Accumulation
U.S. Hegemony and the Response to Terror
The Political Economy of the Twentieth Century
O original deste artigo encontra-se em
http:www.monthlyreview.org/0205amin.htm
.
Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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