Imperialismo e lutas sociais
Desde a queda da URSS e do campo socialista na Europa de Leste, encontramos no
essencial, no
establishment
do imperialismo norte-americano, duas atitudes que ocasionalmente se
sobrepõem. Primeiro, na década de noventa a mitologia da
globalização e do neoliberalismo como soluções
óptimas para o conjunto do planeta. E, mais tarde, as
declarações mais ou menos abertas que reclamam o direito e a
necessidade do poder imperial dos Estados Unidos sobre o resto do mundo,
até aos anos recentes em que muitos já se não dão
ao trabalho de esconder, sob fórmulas enganosas, o propósito
imperialista do grande poder norte-americano, mas declaram abertamente que de
facto os Estados Unidos são um poder imperial ou imperialista e que essa
situação é correcta e desejável para o planeta e
para o futuro da humanidade, e é mesmo uma maneira de os Estados Unidos
cumprirem aquilo que se considera as suas responsabilidades internacionais.
Este reclame pró-imperialista é a posição que
encontramos, apresentada de maneira argumentada, entre muitos teóricos
dos
think tanks
como Haass e o seu artigo de referência
Imperial America
(de 2000), e está também presente mesmo nos artigos de fundo e
editoriais de alguns jornais importantes dos Estados Unidos.
Nos anos de Clinton, a ideologia da nova ordem mundial afirmava que com a
globalização não existiam já no planeta lugares
diferenciados e que toda a gente razoável tinha tendência para se
comportar da mesma forma; nessas condições, continuava a sua
argumentação, e esclarecidos pelos conselhos dos especialistas de
Harvard e dos conselheiros financeiros de Goldman Sachs, a economia russa, por
exemplo, evoluiria ela também pelas vias já confirmadas do
main stream.
Nessa época de optimismo neoliberal e globalizador, prevalecia a
opinião de que toda a gente acabaria por se parecer de maneira natural
com toda a gente. Segundo essa lógica, a prosperidade económica
inevitável conduziria, também de maneira natural, à
democracia liberal e esta, por sua vez, transformaria os russos e demais
membros do antigo campo socialista da Europa de Leste em membros entusiastas da
comunidade internacional. Qualquer coisa como todos habitantes do Wisconsin,
mas "com um regime alimentar mais rico em beterraba".
Define-se claramente uma ideia central deste pensamento, e muitas poderiam ser
as citações que esboçam a mesma tese, que consiste em
considerar que no modelo económico do capitalismo neoliberal a
humanidade no seu conjunto encontraria, a partir dos postulados que
caracterizam o modelo de sociedade dos Estados Unidos (onde por certo
não se praticam exactamente os princípios desse neoliberalismo
que se impõe noutras latitudes), o único futuro possível,
o único modelo a imitar. É claro que o fundamento de semelhante
projecto assentava nesse glorificado modelo neoliberal, mas o propósito
geral tinha uma aspiração mais vasta, e projecta-se como
contrário à política, à cultura e ao modo de viver
de outras nações e povos. É importante por isso ter
presente que, embora seja a mundialização económica
imperialista o facto prioritariamente determinante, as
mundializações são na realidade de tipo múltiplo,
formando um conjunto amplo e complexo de interacções
diversificadas e de redes complexas. No contexto do imperialismo neoliberal,
fica cada vez mais distante a justiça social, e, no plano das culturas,
ameaça torná-las homogéneas num processo que destruiria,
assim, paulatinamente a riqueza e a diversidade do planeta.
A Casa Branca daqueles anos estava preocupada com as crises, a sua
extensão e as suas diversas repercussões, mas interessava-se em
particular pelas prováveis consequências ideológicas que
tais crises poderiam provocar na consecução dos seus interesses.
Robert Rubin (então secretário americano do Tesouro) dava a
conhecer de forma específica essas preocupações. Comentava
esse colaborador de Clinton: "Estou profundamente preocupado e
posso dizer-lhes que o presidente partilha essas preocupações
com o enfraquecimento do apoio público à
globalização num momento em que os interesses económicos,
de segurança nacional e geopolíticos do país requerem o
oposto".
As reflexões desta citação evidenciam que o aspecto
significativo daquele momento do desenvolvimento imperialista radicava
precisamente na passividade, e em alguns casos até no entusiasmo, com
que as próprias vítimas da mundialização neoliberal
tinham acolhido esse processo, e até que ponto tinha penetrado e
não apenas entre os políticos submissos a ilusão
sobre as virtudes da mundialização neoliberal. Essa ilusão
foi sem dúvida muito favorável para que se abandonasse como
caduca a ideia da existência do imperialismo, então esquecido
tanto na terminologia como nas ideologias dominantes que chegaram a penetrar
nas esquerdas e em parte do movimento revolucionário. De facto,
chegou-se a negar e própria existência do imperialismo e
desqualificavam-se os académicos e estudiosos que ousavam ainda
referir-se a ele.
A roupagem de globalização com que então se vestia o
imperialismo serviu-lhe, entre outras coisas, para fazer passar a ideia de que
se alguma vez esse imperialismo tinha existido, na nova etapa do processo
histórico já tinha sido superado. Só o capitalismo,
rebaptizado por muitos como "sociedade de mercado", e a sua
mundialização eram inelutáveis e constituíam o
único caminho para o desenvolvimento e o bem-estar. Conseguiu
implantar-se a ampla ilusão, muito estimulada pelo então ainda
próximo êxito dos chamados dragões ou tigres
asiáticos, de que o elevado nível de vida dos países
industrializados se tornaria então acessível com a
globalização, e que o gueto em que permanecia encerrada a
periferia do sistema teria finalmente a possibilidade de ser abandonado.
O neoliberalismo, que tivera o seu antecedente imediato na ditadura
sanguinária de Pinochet, chegou a converter-se num mito e tornou-se
extremamente forte na América Latina, e foi assim que acompanhou os
processos de democratização (entenda-se de democracia liberal)
que se seguiram ao fim da última vaga de ditaduras do continente. Na
realidade, o mito de que a democracia burguesa resolveria os inúmeros e
enormes problemas do continente antecedeu o mito da globalização
como fenómeno inelutável e positivo, e de facto contribuiu,
juntamente com outros factores (como por exemplo a queda do socialismo do Leste
europeu) para a sua aceleração. É óbvio que o
reinado do mercado, as privatizações desenfreadas e o processo de
financeirização facilitaram o processo da
mundialização económica neoliberal, aumentando assim as
já enormes desigualdades sociais. Os últimos anos testemunharam o
fracasso do modelo neoliberal imposto à América Latina
(Argentina, Equador e Bolívia são conhecidos alvos de
referência), com o concurso das próprias oligarquias locais, e um
consequente ascenso do movimento popular em quase todo o continente.
Não seria de excluir a ideia de que essa outra ilusão que inundou
a América Latina nos últimos quinze anos sobre as virtudes
intrínsecas da sociedade civil, como oponente ao Estado, não
tenha desempenhado também uma certa função nesse processo.
Já que essa sociedade civil (que, deve-se recordar, inclui a esfera
económica) tende a ser vista como fora do controlo dos grupos de poder,
como uma zona de objectividade, alheia às lutas de classes. Alguns
chegam mesmo a identificá-la de maneira quase unívoca como uma
esfera da expressão popular e como território de defesa dos
interesses dos marginalizados e oprimidos. É assim que se deixa de lado
o facto de a sociedade civil ser, na realidade, um terreno de fortes lutas
sociais onde actua tanto a burguesia e outros grupos oligárquicos como
as restantes classes e grupos sociais; uma visão desse tipo gera de modo
natural o confusionismo político e ideológico que tanto pode
perturbar a marcha das lutas sociais combativas de resistência e de
mudança.
Por outro lado, não se pode deixar de ter em conta que os mais
sérios economistas e estudiosos mostram como a crescente
interdependência e internacionalização constituem um
processo histórico inevitável; mas evidencia-se também
(nos casos dos críticos do sistema) que a globalização de
tipo neoliberal e imperialista não é inelutável.
Deve-se então destacar uma ideia central: a luta contra o capitalismo
mundializado passa hoje, pelo menos na América Latina, pela luta contra
o neoliberalismo. Poder-se-ia identificar aqui um primeiro ponto chave de
partida nas lutas e resistências. Haveria que derrotar primeiro o
neoliberalismo, cujos resultados desastrosos se tornaram cada vez mais
evidentes para as massas populares e cujos perigos de instabilidade
crónica (que por sua vez produz formas de ingovernabilidade) inquieta e
perturba tanto os seus próprios defensores dos países da
periferia como os grupos imperialistas dominantes no plano mundial.
Não é menos certo que caberia adiantar, pelo contrário,
que precisamente o neoliberalismo acabaria por desembocar em crises enormes que
produziriam então condições para ofensivas radicais de
tipo revolucionário clássico, como as que conhecemos
anteriormente. É evidente que esta última é uma
alternativa que se não pode excluir
a priori;
mas não é menos certo também que a história
demonstrou que as instabilidades extremas não garantem por si sós
e em abstracto, necessariamente, a mudança revolucionária. Uma
vez mais a premonição de Rosa Luxemburg, de
inspiração engelsiana se apresenta em toda a sua real
brutalidade: socialismo ou barbárie. Dada a situação no
complexo contexto do mundo de hoje, é de recear que o desespero das
massas populares desemboque antes em explosões desorientadas e
até irracionais, e que seja uma vez mais a barbárie imperial a
conseguir impor-se, tal como aconteceu na Europa dos anos trinta. Para tudo
isso contribuiu ainda, como factor muito negativo, o fracasso da
experiência socialista no Leste da Europa e o Termidor soviético,
o que significou, entre outras coisas é claro, que a perspectiva
socialista apareça como fechada ou inexistente aos olhos de amplas
maiorias dos sectores mais populares.
E a barbárie que hoje ameaça generalizar-se é precisamente
a que provém da nova etapa do imperialismo num momento em que este se
manifesta com particular agressividade. Nesta fase, o imperialismo evita o
controlo directo de tipo colonial dos territórios submetidos à
sua hegemonia, e não duvida, como nos velhos tempos, em usar o seu
poderio militar por meio de intervenções e guerras de todo o tipo
e em qualquer lugar "obscuro do mundo". Diferentemente do
imperialismo da etapa anterior, chamado clássico, este tem um centro do
centro imperial, lugar claramente ocupado pelos Estados Unidos, enquanto os
restantes poderes ou países imperialistas (a Europa e o Japão, os
outros componentes da Tríade) constituem um imperialismo subordinado com
tendência para a vassalagem política. Isto não quer dizer
que não existam contradições inter-imperialistas, mas
estas tornam-se mais relativas, não atingem o grau de antagonismo de
outros tempos e tendem antes a funcionar em coordenação e
harmonia enquanto esta seja possível. Alguns dos promotores desse
imperialismo chamam-lhe "imperialismo benigno", ou, como diz a
fórmula enganosa de Madeleine Albright,
"assertive multeralism".
Os ideólogos do imperialismo defendem o direito e a necessidade
deste imperialismo unipolar norte-americano e reclamam que se trata de os
Estados Unidos cumprirem as suas responsabilidades internacionais. Muitos
intelectuais do país e a elite política estão a
abraçar com entusiasmo e publicamente aquilo que consideram a
missão imperial, imperialista ou neo-imperialista dos Estados Unidos. Um
dos seus defensores mais destacados fora do território, Tony Blair,
considera mesmo que essa função e o uso da força militar
que a acompanha são necessários para manter a ordem de coisas
existente, quer dizer, que os imperialismos subordinados necessitam do poderio
militar do centro do centro em benefício do imperialismo da
Tríade.
Assim a luta contra o imperialismo, que nunca deixou de ser uma necessidade,
adquire agora particular urgência e volta a passar para os primeiros
planos da cena internacional. Assim a luta contra o neoliberalismo
deverá avançar para abarcar também a
oposição ao imperialismo, extremamente agressivo, da nova etapa.
As esquerdas, desnecessário será dizê-lo, serão
promotoras e parte fundamental do movimento de luta generalizada. Mas
não existe, em geral, uma convicção clara de que o
socialismo continua a ser o objectivo estratégico inelutável. As
alternativas realistas ao neoliberalismo e ao imperialismo não implicam
a rejeição da mundialização como tal, mas a tese de
que este pode ser levado a cabo sobre bases totalmente diferentes, e que
finalmente se trataria de alcançar a nova sociedade engendrada pelas
próprias contradições do capital.
Há no entanto o risco de considerar que bastaria a
superação do neoliberalismo, e de que este esforço se
transforme, assim, de finalidade de um primeiro momento de luta, em objectivo
estratégico definitivo, e se esqueça ou passe por alto com isso
que a verdadeira e única meta, se realmente se quer um mundo mais justo
e equitativo, é a liquidação do capitalismo e a
transformação socialista consequente.
É possível conceber a luta contra a mundialização
imperialista em duas projecções que se ligam e
entrelaçam: com a ajuda dos movimentos de classe e populares de
resistência e luta como actores, e através dos próprios
Estados nacionais, quer individualmente (como é o caso da Venezuela em
que Estado e movimentos populares se unem num objectivo comum), quer de maneira
conjugada com outros Estados. No primeiro caso, pode-se conceber uma ampla
aliança dos sectores revolucionários e progressistas. A segunda
projecção (que não está separada da primeira)
conduz à complexa e mistificada problemática da
relação entre a economia e a política nas
condições da nova etapa imperialista.
Contrariamente ao que alguns pensam, parece imprescindível que se
estabeleça a mais estreita
articulação
entre os movimentos sociais e as organizações e partidos
políticos, e entre próprios movimentos sociais de diversos perfis
num processo de lutas continuadas contra o imperialismo que vá
conformando um novo sujeito revolucionário para os tempos actuais. E,
nesse contexto, o peso e a função dos diversos fóruns
sociais é da maior importância. A força das massas destes
fóruns é chamada a transformar-se numa arma de luta de grandes
repercussões, e eles constituem um instrumento adequado para encaminhar
as lutas populares.
Os fóruns sociais abarcam um amplo espectro de posições
ideológicas; são sem dúvida heterogéneos, pois que
neles confluem uma grande variedade de organizações e grupos.
Estão presentes tanto aqueles que lutam pela transformação
radical da sociedade capitalista, como os que limitam as suas
aspirações à rejeição do neoliberalismo e,
em geral, a mudanças moderadas na sociedade. Nessas
condições, não é de esperar uma unidade de
objectivos estratégicos económicos nem políticos. Ao mesmo
tempo, subestimar a força desses formidáveis movimentos de massas
seria um grave erro, pois que a luta contra a globalização
neoliberal e contra a dívida externa e as guerras imperiais, sustentada
por tendências das mais diversas cores ideológicas, constitui uma
poderosa arma a que se não deve renunciar.
É certo que a divisa dos fóruns de que "Outro mundo é
possível" é um tanto ambígua, mas ela corresponde
à abordagem que visa unificar forças em torno do elemento que os
une que é a rejeição do modelo existente. Os fóruns
não se baseiam num programa político nem num projecto de
sociedade, mas expressam a necessidade de agrupar forças poderosas que
obstaculizem o processo de globalização neoliberal. Não se
pode também imaginar que os fóruns se mantenham estáticos
nas suas posições, sem ter em conta as mudanças no mundo
que nos rodeia, em particular as formas tão agressivas que o
imperialismo norte-americano está a assumir neste momento. As palavras
de ordem limitadas que mantiveram até agora correspondem em geral a um
momento histórico específico, mas com as condições
criadas pela forte ofensiva imperialista dos últimos anos eles
serão obrigados a radicalizar-se se não quiserem ficar atrasados
em relação ao tempo histórico real. Também se
não deveria subestimar, apesar da sua ambiguidade, o valor da tese de
que "Outro mundo é possível" na rejeição
do modelo de dominação e exploração dominante. Se,
por outro lado, se tiver em conta que as alternativas são
múltiplas, no sentido de que os caminhos serão diversos e que
nenhum processo de mudança será exactamente igual a outro,
então essa certa ambiguidade deixa precisamente aberta a questão
das alternativas.
Os fóruns são zonas de intercâmbio,
coordenação e articulação de elementos variados que
se concentram no debate e na elaboração e execução
de acções. Trata-se de procurar, nesse contexto, a radicalidade
possível e efectiva. Mas também não se deve imaginar que
é de evitar o debate e o esforço pela radicalização
dos fóruns com vista a que abracem, pelo menos, a causa
anti-imperialista.
Não será especificamente através dos fóruns que se
produzirão as mudanças, nem tão-pouco se pode imaginar que
eles constituam o motor dessa mudança, mas que constituem hoje um factor
concomitante de peso nesses objectivos. Não são tão-pouco
um instrumento para a tomada do poder, mas têm as suas
funções próprias, pois que neles confluem tanto os
revolucionários que aspiram à liquidação do
capitalismo, como os que apenas procuram superar o capitalismo selvagem e a sua
globalização neoliberal. O avanço ideológico dos
fóruns passa necessariamente por irem além dos reformismos e
tomarem uma posição clara contra o militarismo, as formas de
dominação económica e os intuitos imperialistas em geral.
Para conseguirem cumprir um papel preponderante no mundo de hoje, parece que os
fóruns devem superar os seus preconceitos em relação
à política, e compreender que sem a política esse outro
mundo não será possível. A realidade brutal dos tempos que
se vivem deve contribuir para que eles acabem por abraçar abertamente
posições anti-imperialistas e enfrentar as expressões mais
agressivas da etapa actual do imperialismo e as suas guerras preventivas e a
militarização das relações internacionais.
Por último, há que destacar a dimensão internacionalista
dos fóruns. Juntamente com outras experiências, eles significam a
expressão de novas formas de internacionalismo que é preciso
desenvolver. Isto não implica, no entanto, a renúncia à
herança internacionalista anterior, que é um legado precioso que
ainda alimenta os movimentos revolucionários e progressistas do mundo.
Uma correcta postura dialéctica conduziria antes à
integração e ao enriquecimento das novas formas com as
tradições de longa e vigorosa estirpe.
[*]
Professora de filosofia na Universidade de Havana,
Prémio nacional de ciências sociais 1998
, Directora da revista
Marx Ahora
. Comunicação apresentada no
Encontro Internacional "Civilização ou Barbárie"
,
Serpa, 23-25/Set/2004.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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