Analogias entre a agressão à Jugoslávia e à
Ucrânia
por Stephen Karganovic
[*]
Repetem-se as "revoluções coloridas", as "armas de
destruição massiva", os argumentos para demonizar
adversários, o recurso ao banditismo e aos grupos neo-nazis ou
fundamentalistas. Se o imperialismo, por falta de imaginação (ou
por arrogância em excesso) actua repetidamente segundo uma mesma matriz,
isso proporciona uma significativa vantagem estratégica. Permite
antecipar as suas acções e prever contramedidas efectivas.
Peritos russos vêm analisando de perto as similaridades entre a forma
como a coligação ocidental está a gerir a crise ucraniana
- que criou e que conduziu a um ponto de conflito selvagem - e as
estratégias que os mesmos actores empreenderam nos anos noventa gerando
as condições para uma brutal guerra civil e atiçando o
conflito cujo resultado foi a destruição da ex-Jugoslávia.
Abundam as razões para que essa atenção seja justificada.
Desde logo, se o teu opositor, por falta de imaginação (ou por
arrogância em excesso) actua repetidamente segundo uma mesma matriz, isso
proporciona-te uma significativa vantagem estratégica. Permite-te,
dentro de uma larga margem, antecipar as suas acções e prever
contramedidas efectivas.
Embora a presunção dos estrategas ocidentais facilite a tarefa de
combater os seus objectivos é importante, em qualquer caso e
não obstante o carácter flagrante que as analogias possam assumir
definir cuidadosamente tanto as maiores semelhanças como as
diferenças entre as situações a comparar, de modo a
não cair na armadilha de combater a guerra anterior em vez da que
está efectivamente em curso.
1- Fragmentação étnica e religiosa. A
identificação de tensões sociais susceptíveis de
ser exploradas, e sua sistemática exacerbação para que
funcionem como detonadores da crise pretendida.
Isso significa o afastamento umas das outras de comunidades
constituídas, empolando aquilo que as separa e desvalorizando o que
possam ter em comum.
Na Jugoslávia este processo teve início muito antes do eclodir da
crise através da manipulação de novas identidades
étnicas (muçulmana, montenegrina, macedónia) e do
encorajamento das aspirações separatistas das existentes
(croatas, eslovenos). A identidade ucraniana é também uma
construção artificial, que se define a si própria
não de forma positiva mas sobretudo como contraposição
militante ao russo. Na Ucrânia, tal como na Jugoslávia, a clivagem
religiosa católicos/ortodoxos é diligentemente explorada no
sentido de exacerbar animosidades existentes.
2- Manufactura de incentivos materiais ilusórios para incentivar a
conduta politicamente desejada.
Na ex-Jugoslávia, que no final dos anos 80 tinha um padrão de
vida decente, a perspectiva de uma vida ainda mais próspera que
presumivelmente resultaria da dissolução do estado socialista foi
utilizada como isco para motivar tendências separatistas. Ao ocidente
católico foi prometida uma acrescida prosperidade através da
separação e da concretização de uma
"opção civilizacional" (praticamente uma
formulação idêntica à que veio a ser lançada
na Ucrânia) a favor da junção aos países do vizinho
bloco ocidental. Aos muçulmanos da Bósnia e do Kosovo foram
prometidos benefícios resultantes do alinhamento com os países
islâmicos ricos. Na Ucrânia foi a ilusão de uma
rápida incorporação na União Europeia que foi
invocada. A maioria do povo na Ucrânia ocidental e central que respondeu
positivamente a esta falsa perspectiva era bastante desconhecedora das reais
condições económicas e sociais existentes e, mais
importante ainda, das tendências de evolução da UE e agiu
sobre premissas sem fundamento.
3- Controlo dos fluxos de informação nos países-alvo de
forma a condicionar a percepção e a conduta das massas.
Na ex-Jugoslávia, a penetração do espaço
mediático por interesses vinculados ao ocidente, cujo ponta de
lança era George Soros teve início logo a partir do momento em
que a liberalização política dos anos 80 a tornou
possível. No início dos anos 90, quando o conflito vinha sendo
activamente atiçado do exterior, amplos sectores dos media locais em
todas as repúblicas da Jugoslávia estavam já sob controlo
de proprietários ocidentais. Um processo semelhante de moldagem da
esfera mediática teve lugar na Ucrânia no decurso das
últimas duas décadas, com todos os maiores grupos de
comunicação sob o firme controlo de oligarcas apoiados pelo
ocidente. Todos propagaram uma quase idêntica e factualmente falsa
narrativa acerca dos benefícios que decorreriam do alinhamento
político com a NATO e a UE e do afastamento em relação
à Rússia.
4- Tanto na Ucrânia como na ex-Jugoslávia um núcleo
fundamental da população insistiu em permanecer fiel à sua
própria narrativa.
Rejeitou radicalmente as falsas percepções que vinham sendo
encorajadas como prelúdio à aceitação de uma
recomposição política orquestrada pelo ocidente. Sucedeu
assim com o leste russófono na Ucrânia, e com os sérvios na
Jugoslávia.
A recusa destes grupos em aceitar pacificamente a perda da sua identidade
cultural e da sua autonomia política conduziu ao conflito em ambos os
casos. A pergunta que requer uma resposta clara é se o conflito armado
(embora sendo basicamente previsível) foi também uma
consequência pretendida dos processos postos em marcha. No caso da
Ucrânia é bastante duvidoso que assim fosse, porque a
intenção dos instigadores da mudança de regime era
não a imediata fragmentação política mas claramente
um inequívoco realinhamento pró-ocidental do país inteiro
no bloco NATO/UE, sob o comando de uma subserviente autoridade central em Kiev.
No caso da Jugoslávia é possível argumentar que fazia
definitivamente parte do plano um conflito que culminasse com a derrota militar
dos sérvios, mas pode ser que de início fosse prevista uma
campanha mais rápida e com maior sucesso. Mas o que veio a suceder foi
que os instigadores da crise jugoslava, ao darem rédea solta aos seus
protegidos croatas e muçulmanos, podem ter inadvertidamente criado uma
clara ameaça à própria sobrevivência dos
sérvios, dispersos por toda a ex-Jugoslávia, que endureceu
grandemente a sua resistência e prolongou o conflito para além
daquilo que estava inicialmente previsto. Para além disso pode
também ter tido uma outra consequência não desejada: o
sério questionamento na Rússia da aliança (ainda por cima
subalterna) de Yeltsin com o ocidente. Este questionamento culminou por altura
da guerra do Kosovo resultando, como reacção à
situação, na ascensão de Putin e da sua visão
política.
Na Ucrânia, qualquer que possa ter sido o projecto inicial (possivelmente
inclinando-se para a fragmentação cultural mas preservando a
integridade política geral do país, ainda que com o mais
confiável elemento ocidental subjugando o menos confiável leste
do país), parece ter entrado em colapso logo que a força bruta
foi empregue no processo de subjugação. Tal como analistas
informados têm sublinhado, compromissos de partilha de poder entre Kiev e
o leste russófono que há dois ou três meses poderiam ter
sido possíveis deixaram de o ser após a destruição
e o caos desencadeado pelas forças da junta golpista. Está em
rápido desenvolvimento uma situação em que as
regiões com uma identificação cultural russa predominante
são intransigentes na sua recusa em ter seja o que for a ver com Kiev,
quaisquer que fossem as formas que um eventual compromisso assumisse. Nesse
sentido, está a formar-se na Ucrânia uma situação
fortemente análoga ao espírito de resistência
inflexível com que os sérvios bósnios e croatas actuaram.
Em ambos os casos é concebível que um comportamento inicial mais
subtil e flexível por parte dos intervenientes apoiados pelo ocidente
relativamente às populações sérvias e russas que
pretendiam submeter ao seu domínio pudesse ter impedido a
radicalização da violência. E poderia até ter tido
sucesso, porque em ambos os casos pelo menos os resistentes claramente
não tinham qualquer intenção de recorrer à
força.
5- O ocidente não tem quaisquer pruridos em utilizar os elementos mais
desqualificados como instrumento para atingir os seus objectivos.
Na Bósnia, o pacto do diabo do ocidente com o Irão
(reminiscência do Irão-contras) e com outros actores mais ou menos
fundamentalistas a fim de reforçar as forças muçulmanas
locais alinhadas com os interesses NATO/UE e lutando pelo controlo em toda a
extensão do país tem sido amplamente documentado. Em certa
medida, foi também tolerada a participação de elementos de
extrema-direita europeus no esforço de guerra ao lado do regime
direitista de Tudjman na Croácia. Um padrão semelhante pode ser
observado no Médio-Oriente, com facções islamitas radicais
a serem instrumentalizadas para o derrube de regimes seculares que o ocidente
considera pouco amigáveis.
Na Ucrânia o pacto com o diabo foi celebrado com alguns dos mais odiosos
elementos fascistas locais, literalmente relíquias colaboracionistas do
período da II Guerra Mundial. A sua tarefa foi disponibilizar a tropa de
choque com a qual os políticos e oligarcas apoiados pelo ocidente
demoliriam os seus opositores e consolidariam o seu domínio. Tanto na
situação jugoslava como na ucraniana o cálculo parece ter
sido "utilizamo-los para nos vermos livres do opositor principal agora, e
tratamos deles depois". A possibilidade de que estivessem a criar
Frankensteins que não seriam passíveis de fácil
dissolução uma vez desempenhado o seu papel parece não ter
passado pela cabeça dos seus criadores. A implantação
depois da guerra do islão radical na Bósnia, onde anteriormente
nunca existira, e a consolidação de uma forte corrente fascista
em crescimento na Croácia constituem prova suficiente disso. No que diz
respeito aos movimentos e milícias de inspiração nazi na
Ucrânia, não parece existir qualquer plano claro para os colocar
sob controlo uma vez superado o conflito e em que presumivelmente tenham
desempenhado a sua função.
Tanto na ex-Jugoslávia como na Ucrânia os instrumentos que o
ocidente amoralmente utilizou para atingir os seus limitados objectivos
deixaram as sementes de uma instabilidade de longo prazo e não mostram
qualquer disposição para permanecerem subservientes aos seus
criadores por muito tempo. A perversa semente plantada pelo ocidente com a sua
oportunista ingerência na Ucrânia transporta um fruto amargo que
representa um sério desafio para a Rússia. Irá sem
dúvida embaraçar a eventual integração plena da
Ucrânia no quadro do conceito de "mundo russo" que a actual
política russa concebe, por mais fluído que tal conceito possa
ser.
6- O apoio sub-reptício aos favoritos ocidentais ao mesmo tempo que se
proclama uma política de "não-ingerência" que na
prática se aplica apenas aos outros.
Uma outra significativa semelhança reside em que em ambas as crises o
ocidente decretou o embargo de armas e apoios logísticos às
forças em confronto, mas contorna-os regularmente a favor dos seus
clientes locais. Um volumoso conjunto de provas reunido após os anos
noventa não deixa qualquer margem de dúvida acerca do facto de
que forças muçulmanas e croatas na Jugoslávia receberam
generosas quantidades de armas e de treino, e depois valioso apoio
logístico também, enquanto Belgrado era regularmente criticado
por qualquer apoio prestado aos seus compatriotas na Bósnia ou na
Croácia.
De forma análoga, a Rússia é objecto de um processo de
demonização por prestar não apenas assistência
militar, mas mesmo assistência humanitária, às
regiões russófonas da Ucrânia. Os patrocinadores ocidentais
assumem um quase ilimitado direito a apoiar os seus clientes ao mesmo tempo que
recusam a Belgrado nos anos noventa e a Moscovo agora uma prerrogativa
semelhante. A sua insistência num "terreno de jogo nivelado"
(uma frase frequentemente utilizada no conflito bósnio) mostra aquilo
que realmente é: pura hipocrisia.
7- Uma diferença importante: Moscovo tem objectivos políticos
claramente definidos.
Pode argumentar-se que uma das principais razões do insucesso da
resistência sérvia na Croácia, e do seu sucesso apenas
parcial na Bósnia, residiu na ausência de uma
concepção política clara tanto nas suas fileiras como em
Belgrado, que os apoiava. É possível que a análise russa
dessa experiência tenha sido importante para garantir que Moscovo e os
seus aliados ucranianos orientais não se vejam envolvidos num conflito
sem uma clara definição dos seus objectivos e dos meios para os
alcançar. É indubitável que o Presidente Putin não
quer imitar Slobodan Miloeviæ, que fez um brilhante discurso na
televisão, com um perspicaz e profundo entendimento das manobras dos
seus opositores ocidentais, mas numa ocasião que não poderia ter
sido de pior dias antes de ser derrubado.
Parece que os acontecimentos nos Balcãs tiveram um efeito moderador na
política russa em dois aspectos. Primeiro, em finais dos anos noventa a
guerra do Kosovo e o bombardeamento da Jugoslávia claramente
desencadearam um amplo alarme que contribuiu para a mudança de
liderança que trouxe Vladimir Putin e a sua visão para um lugar
de destaque. Mas os efeitos nefastos da sinuosa política que
Miloeviæ empreendeu no apoio aos seus protegidos na Bósnia e
Croácia ensinaram aos russos uma outra enormemente importante
lição. Que é que se não se dispõe de uma
ampla visão estratégica e da capacidade para conseguir a sua
realização, é preferível evitar por completo estas
complexas e arriscadas embrulhadas.
20/Setembro/2014
[*]
Advogado, participou em julgamentos do Tribunal de Haia (2001-2008), também
conhecido como Tribunal da NATO. É co-autor de
Rethinking Srebrenica,
ed. Unwritten History, 2013, 368 p., ISBN: 0970919832
O original encontra-se em
vineyardsaker.blogspot.pt/
e em
www.odiario.info/?p=3404
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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