O ajuste de contas com o 25 de Abril
por Daniel Vaz de Carvalho
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Por que são os tempos tão escuros. Que os homens não se
conhecem uns aos outros.
Mas os governos mudam. De mal a pior, como se vê? O tempo passado era bem
melhor.
Que reina? A aflição e o desgosto. A justiça e a lei
não se aplicam
Poema de Eustache Deschamps (1340-1406)
[1]
Não tenham ilusões meus senhores acerca do vosso papel. Os
senhores não são mais que uma reação e nem sequer
tendes a gloríola de a ter provocado. (
) Compreenderam claramente
que essas liberdades não podem exercer-se senão em detrimento da
vossa situação pessoal.
O Drama de João Barrois, Roger Martin du Gard, Ed Ulisseia, p. 332 e 333.
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1 - QUEM NÃO QUER SER FASCISTA NÃO LHE VESTE A PELE
Eis um ditado que se aplica ao neoliberalismo e portanto à
política do governo PSD-CDS. O branqueamento do fascismo está bem
expresso nas palavras de Passos Coelho ao considerar que o PSD é o
herdeiro da "ala liberal" da Assembleia Nacional fascista. Ou
então nas de Durão Barroso sobre o "regime anterior"
(sic) considerando que "apesar de algumas liberdades cortadas",
"havia na escola uma cultura de mérito, dedicação e
trabalho". A exclusão social, a baixíssima taxa de
escolaridade, elevado analfabetismo, perseguições a professores e
estudantes, passam a "cultura de mérito".
Quando a ministra das Finanças diz que não vamos voltar ao
país que tínhamos, expressa o ajuste de contas com o 25 de Abril.
O primeiro-ministro fala da nova "normalidade". A normalidade da
recessão e estagnação económica, do subemprego, da
precariedade, do empobrecimento, da desigualdade crescente, dos salários
de miséria, da arbitrariedade patronal, do fim do "Estado
Social".
Normal é, pois, os sucessivos Orçamentos de Estado serem
anticonstitucionais. Normal é governar contra a
Constituição, mentir no que se promete e não haver
eleições que reponham uma real normalidade democrática.
Normalidade que o PR assume. Que diz o PR? Prosseguir a
"austeridade"
para regressar aos "mercados". Mas os
"mercados" não são nenhuma solução,
são o problema!
Declarações de membros do governo, acerca dos chamados
"bolseiros", atingem a boçalidade fascista. Pires de Lima
diria que é preciso "tirar as pessoas da sua zona de
conforto". E o conforto para o grande capital?
"Como ocorreu no mundo inteiro, o neoliberalismo, do ponto de vista
social, significou uma vingança de classe da burguesia contra os
trabalhadores"
[2]
Passos Coelho, os seus ministros e propagandistas não se chocam com o
"conforto" da fraude consentida às oligarquias, os
benefícios, perdões e prescrições fiscais ou as
transferências de lucros e rendimentos para paraísos fiscais,
cujas consequências depauperam o Estado e recaem sobre trabalhadores e
pensionistas.
O ovo da serpente fascista vem enfeitado de boas intenções. O
"menos Estado", para liquidar funções sociais e se
constituir como garante do predomínio da oligarquia financeira e
monopolista e da repressão sobre os trabalhadores, com o argumento de
que não há alternativas.
Neste processo fascizante, os portugueses são divididos em
funcionários públicos e privados; novos e velhos; os mais pobres
que não pagam impostos e que têm direito a educação
e saúde, o que nas conceções vigentes é de
gravidade extrema. No salazarismo não se pensava de maneira diferente.
À frente dos governos a oligarquia promove meros atores, assessorados
por consultores de imagem e comunicação, que se limitam a
declamar o guião que lhes é preparado, preenchendo um
cenário de ilusões para o público votante.
"Público", porque o conceito de cidadania está
subvertido pelas desigualdades, pela precariedade, pela pobreza.
Ao mesmo tempo que no seu papel de serventuários da troika apregoam
"êxitos", diz-se que a austeridade é para continuar.
É como quem diz: "Isto está melhor, mas não é
para vocês". De facto, como se sabe, o rendimento dos
multimilionários aumentou em 11%.
Portugal sob a ingerência da troika e os tratados da UE tão
desejados pela direita, assemelha-se ao país de Liliput: pigmeus
políticos exibem no governo e na presidência a sua
irrelevância. As intervenções do PM na AR têm o ar de
rábulas. Passos Coelho, como Barroso, Draghi, Rajoy, Hollande,
representam o guião neoliberal, debitam as mesmas frases sem nexo com a
realidade, com tiques do "actor's studio" e a convicção
própria de ignorantes, inconscientes ou oportunistas.
O sr. Medina Carreira já falou da "conflitualidade criada por certa
intelectualidade por aí", considerando que "só se
dá a volta a isto com outro sistema e outra política"
(TVI-24, Olhos nos Olhos 13/01/2014). Certamente um sistema que nada tenha que
ver com a Constituição, próximo do "rigor" dos
anos 60 que tanto parece apreciar. São teses análogas às
difundidas nos EUA pelo neofascista "tea party".
A objurgatória de governantes e comentadores sobre as propostas de
renegociação da dívida, mostra como o retorno ao antes do
25 de Abril está no espírito da direita. Antes os problemas do
país não se podiam discutir, pois comprometia o
"esforço de guerra", agora "traumatiza" os mercados,
e no dizer do sr. Vítor Bento, pode afetar o seu "atual bom
temperamento" (?!). As opiniões discordantes não são
discutidas pelas suas ideias, mas atacadas por serem
"irresponsáveis" e "porem em causa a
situação do país".
A direita está como aqueles seres mentalmente perturbados das
tragédias de Shakespeare em que aparecem fantasmas, neste caso
são os "mercados". Ora estamos sem soberania, somos um
protetorado devido ao programa da troika, temos que nos libertar da troika; ora
se trata da "ajuda" pelos mesmos reclamada, negociada, aplaudida como
a salvação para a qual era necessário fazer ainda mais do
que o exigido. Ora é para cumprir custe o que custar, ora estamos a
fazer sacrifícios, a ter medidas muito duras e, como dizia a ministra
das Finanças, "queríamos ter um défice maior, mas os
mercados não deixaram".
O governo vive alternâncias ciclotímicas de euforia. Tanto exibe
"sucessos" na ida aos "mercados" como entra em pânico
pelo que os "mercados" podem pensar do que os portugueses livremente
expressem, da ação do Tribunal Constitucional ou se for criada
"instabilidade política", isto é, se a democracia
funcionar
mas "os mercados não deixam"! A
obsessão dos mercados tem que ver com o objetivo de submeter o
país a entidades e gente que não é eleita, que não
dispõe de representação popular.
A ideologia salazarista é assumida como fazendo parte da
"normalidade" para onde o governo e o PR querem conduzir o
país. As eleições e a democracia são para
"países ricos" e nós somos um "país
pobre", que começa a "viver de acordo com as suas
possibilidades". É o argumento salazarista da "boa dona de
casa" nas contas públicas. Um absurdo para encobrir as crescentes
desigualdades na repartição do rendimento.
Apoiantes das políticas do governo radicalizam-se em atitudes fascistas
atribuindo as desgraças que acontecem a inexistentes inimigos: os
sindicatos, os trabalhadores com direitos, os "privilégios"
dos funcionários públicos. É o irracionalismo, a
incapacidade de reconhecer as consequências das políticas que
apoiam.
2 - O AJUSTAMENTO ORÇAMENTAL: UM AJUSTE DE CONTAS POLÍTICO
Não, não se tratou nem se trata de nenhum ajustamento
orçamental, mas sim de um ajuste de contas político: destruir o
mais possível o que esteja relacionado com o 25 de Abril. Basta olhar
para os números desse "ajustamento": mais pobreza, mais
desemprego, menos atividades produtivas, mais dívida, país em
recessão ou estagnação, menos direitos no trabalho, mais
desigualdade, um país vergado à usura, mas muito mais riqueza
para uns quantos multimilionários e seus vassalos palacianos.
A agenda neoliberal foi implantada pela mentira à revelia da
lógica democrática. À hipocrisia salazarista da
"compaixão" pelos sacrifícios exigidos aos portugueses
aliou-se a estudada mentira de que terminariam com a saída da troika em
2014.
A redução de efetivos na Administração
Pública e a privatização ou concessão de empresas e
serviços públicos não têm apenas o objetivo de
entregar o máximo do rendimento nacional à oligarquia, mas
pretendem também liquidar direitos laborais, considerados uma
"imperfeição" do mercado.
São desta forma eliminadas camadas de trabalhadores com direitos, taxas
de sindicalização mais elevadas e experiência combativa.
Recorde-se que este processo foi seguido no salazarismo ao dispersar zonas
operárias como a de Alcântara em Lisboa.
O compromisso que o fascismo obrigava a ter de "ativo repúdio pelo
comunismo e todas as ideias subversivas" é substituído pela
ameaça da precariedade, pobreza, desemprego, exclusão social. Na
informação, o "critério editorial" ditado pelos
interesses oligárquicos e pela globalização fazem o papel
da antiga e mais canhestra censura.
O não dissimulado ódio à Constituição pela
direita é bem expresso pelo sr. Catroga ao dizer que o problema
não é o Tribunal Constitucional, é a
Constituição. É facto que na sua visão minimalista
o Tribunal Constitucional deixou passar 80% das medidas de austeridade.
Melíflua ou arrogantemente boçal a direita ataca
princípios dos mais básicos de qualquer
Constituição democrática, tudo em nome do
"ajustamento", na realidade um ajuste de contas com o 25 de Abril e o
seu espírito libertador. Vai-se ao ponto de dizer que a
"confiança no Estado" que o Tribunal Constitucional pretendeu
preservar, "é uma grande aldrabice."
O desprezo pela Constituição, manifesta-se ao passarem sem
protesto, antes concordando, palavras do Diretor da Fitch dizendo que o
Tribunal Constitucional pode atrasar a "consolidação".
Mas qual consolidação?! A troika exprime-se no mesmo sentido e
Durão Barroso não perdeu nenhuma oportunidade de mostrar o seu
desrespeito pelo nosso país e pela sua Constituição.
Os que conduziram ou apoiaram as políticas que levaram à crise,
ao retrocesso e à "austeridade", são os mesmos que
dão lições de "economia", de realismo e de
inevitabilidades. O programa da finança falhou em toda linha,
destrói o país, mas a democracia, a Constituição, o
Estado de direito são perigosos para a finança que tomou conta
das instâncias políticas colocando tecnocratas e políticos
fantoches ao seu serviço nos postos de decisão: "O Estado
sou eu" é como a oligarquia se qualifica através dos
"mercados" e da correspondente "reforma do Estado".
"A dívida é sustentável, todavia são precisas
medidas adicionais de austeridade para satisfazer os nossos compromissos"
diz com ar seráfico e sorridente o governador do Banco de
Portugal. A questão é que estes cavalheiros acham que não
têm nenhum compromisso com o povo português. São os mesmos
que diziam que com o euro Portugal deixava de ter problemas de liquidez e
financiamento.
Passos Coelho justifica a pobreza crescente, a emigração massiva,
o desemprego, com o argumento de que "os europeus" (?) nunca
aceitarão que uns poupem e tenham rigor e outros andem a gastar".
Isto foi dito no dia em que se tornou evidente que a situação de
crescente pobreza no país não é uma consequência,
faz parte do objetivo a nível europeu de "ajustamento", para
vergar os povos à lógica neoliberal.
Repetindo como "bom aluno" o que as instâncias financeiras e
seus delegados políticos pretendem, o PR insiste periodicamente num
"consenso" entre PS, PSD, CDS. Um "consenso" que seria a
atualização da UN de Salazar ou da ANP de Marcelo: o partido
único neoliberal, voltar à "democracia" marcelista de
antes do 25 de Abril.
O PS para além de inflamada retórica para a direita, não
dá mostras de se distanciar do "paradigma" neoliberal,
alheia-se das lutas populares e sindicais, ignora as consequências do
euro e dos tratados da UE, atacando substantivamente à sua esquerda.
Com a ajuda do PS, propagandeou-se "modernidade", "reformas
estruturais", "mudanças". Mudanças e
"reformas" cortando com o que de positivo tinha sido alcançado
anteriormente, com o objetivo de constituir um Estado oligárquico
neofascista.
A social-democracia/socialismo reformista deixou-se instrumentalizar, pelo
anticomunismo e pela tentação das sinecuras. O PS recusa-se a
assumir que o seu "europeísmo" e conceções de
governo não passam de fórmulas para impor uma ditadura
administrativa encarregada de aplicar as cláusulas leoninas do euro e
dos tratados da UE. O "crescimento e emprego", tornou-se a frase
mágica com que a direção da UGT gosta de ser seduzida,
para permitir a redução de salários e direitos e
promoverem-se ofensivas anti-sindicais será que a
contratação coletiva deixou de ser bandeira para a
direção UGT?
O germanófilo (como foi qualificado na Grécia) secretário
de Estado Maçães, repetindo Reagan, expressou no seu twiter a
filosofia de ódio ao 25 de Abril que predomina neste governo, ao dizer
que acabaram 35 anos de hegemonia socialista e que Portugal, se tornou um
exemplo de sucesso nas reformas. Sucesso que pretende até anular
direitos laborais conquistados antes do 25 de Abril.
Um dos militares da Revolução expressou-se considerando que
"o que se passa hoje no nosso país é uma
traição ao 25 de abril. Somos uma colónia da
Alemanha".
[3]
De facto, "Passámos a ser espectadores da política
alemã, uma política que só diz respeito aos interesses da
Alemanha, mas que esta disfarça sob a falácia da
construção europeia
[4]
.
Em todos os momentos historicamente relevantes do nosso país o povo foi
protagonista das transformações que nos trouxeram mais liberdade
e mais progresso. O 25 de Abril e o seu processo revolucionário foram
das mais exaltantes páginas da nossa História que os
serventuários das oligarquias se esforçam por apagar e reduzir a
insignificativas formalidades.
Será novamente o povo, mais cedo que a oligarquia e seus sequazes
pensam, a resistir e dar um verdadeiro novo rumo ao seu país, expulsando
da ribalta política os vendilhões da democracia e dos interesses
nacionais.
Notas
[1] Em "O declínio da Idade media", John Huizinger, Ed.
Ulisseia, 1985, p.36.
[2] Edmilson Costa, A Crise Económica Mundial, a
Globalização e o Brasil, Ed. ICP, São Paulo, 2013, p. 255.
[3] General Alfredo Assunção, RDP Antena 2, 04/03/2014
[4]
resistir.info/europa/sapir_05dez13_p.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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