O populismo: antecâmara do fascismo (1)
por Daniel Vaz de Carvalho
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Sabe Vossa Excelência qual é o nosso mal? Não é
má vontade dessa gente; é muita soma de ignorância.
Não sabem nada. Eles não são maus, mas são umas
cavalgaduras!
Os Maias, Eça de Queiroz.
Não sei se são estúpidos por serem maus, se são
maus por serem estúpidos.
Anónimo
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1 A POLÍTICA AO SERVIÇO DO LOGRO E DA
EXPLORAÇÃO
O populismo é sem dúvida um dos maiores perigos para os povos.
Ontem como hoje, perante o descalabro económico e social a que
conduziram as crises capitalistas a tentação fascizante
está presente, o populismo é o seu veículo. As elevadas
taxas de abstenção representam um triunfo do discurso populista
contra os "políticos" para que as reais alternativas sejam
escamoteadas, não passem para a opinião pública,
não se tornem suas.
Convém, precisar o sentido das palavras. O populismo, sendo uma
máscara, assume formas diversas, nem sempre é de
caracterização fácil. Os fascismos, as cruéis
ditaduras sul-americanas, asiáticas ou africanas foram e são
populismos ao serviço das oligarquias, tentando iludir as
contradições que o próprio sistema gera com mitos como os
"desígnios nacionais", "choque de
civilizações", o ódio racial e anticomunista.
Os protagonistas das políticas de direita, perdidos nas suas mentiras,
apelidam de populista a defensa dos interesses populares e da soberania
nacional. Hugo Chavez, Maduro, Evo Morales, foram e são qualificados de
"populistas". Também, perante o descalabro da UE e do seu
euro, construídos na base de mentiras e falsificações,
já sem argumentos, as propostas consequentes contra a moeda única
e as políticas da UE são acusadas de "populistas" e
"extremistas".
Uma política progressista distingue-se do populismo pelo apelo à
participação e à iniciativa popular institucionalizada nas
suas organizações de classe e de base, contribuindo ativamente
nos processos de reconstrução nacional anti-monopolista e
anti-imperialista. O populismo visa o contrário.
Concretamente, o populismo ignora ou contesta a existência de classes e
camadas sociais com reais interesses diferenciados, contraditórios e
muitas vezes antagónicos. Estas contradições seriam, na
sua versão, criadas por elementos acusados de retrógrados,
antissociais e extremistas ao defenderem os seus direitos e a soberania
nacional numa perspetiva de progresso social.
O populismo é a máscara a que as oligarquias recorrem para adiar
a sua liquidação e manterem os povos sob o seu domínio. O
populismo corresponde, pois, ao enunciar de propostas e objetivos aparentemente
sedutores, atraentes para o comum das pessoas, mas sem que haja real
intenção de os levar à prática.
Dá à expressão "povo" um sentido abstrato,
desligado das condições materiais de existência,
construindo um discurso demagógico, alimentando divisões entre as
diversas camadas sociais e entre os povos, escondendo nuns casos
intenções imperialistas, noutros a subserviência perante o
imperialismo,
A verdadeira natureza do populismo revela-se na omissão ou na
rejeição de tudo o que de perto ou de longe possa melindrar o
grande capital e a finança. Nestas alturas, aparece o seu verdadeiro
rosto de intolerância e arrogância classista.
Populistas são Passos Coelho mentindo despudoradamente quando candidato
ou P. Portas, o Paulinho das feiras, prometendo tudo a todos. São-no
à semelhança de outros líderes da UE, de Sarkozy a
Hollande, passando por Berlusconi, sejam da direita ou da
social-democracia/socialismo reformista, proclamando "crescimento e
emprego", ao mesmo tempo que juram submissão aos compromissos para
com a agiotagem internacional expressa nos tratados da UE, no BCE, no euro,
enfim no neoliberalismo.
2 OS MIXORDEIROS DA POLÍTICA
O populista é o mixordeiro da política. A mesma mistela das
milagrosas soluções neoliberais é diariamente servida: o
falso mercado perfeito, a austeridade sobre os que menos têm e sobre as
camadas médias.
Proclamam bons princípios, equidade, justiça social, a sua moral
centra-se no "nivelar por baixo". Há trabalhadores com mais
regalias que outros? A "justiça social" faz-se então
retirando-as a todos. Não ter precariedade laboral é um
"privilégio", os populistas são contra os
privilégios mas apenas para quem trabalha: nivele-se então
por baixo e que a precariedade seja a condição geral.
Reduzam-se salários e prestações sociais, aumentem-se os
impostos, anulem-se os direitos laborais, nisto se resume a política
neoliberal. Nada de mexer na fiscalidade ao grande capital, nem nos
intocáveis benefícios fiscais das SGPS, nos juros agiotas, nas
PPP, nos SWAP. Aceita-se, é claro, alguma retórica e alguma
cosmética sobre o tema. O ruído inconsequente faz parte da
estratégia populista.
Populistas proclamam a intransigente defesa dos interesses nacionais, podem
usar bandeirinhas na lapela, Portas queria que se cantasse o hino nacional nas
escolas, mas promovem a desnacionalização económica, a
entrega de sectores básicos e empresas economicamente
estratégicas a grupos transnacionais.
Seguem a mais canónica das tradições conservadoras e
reacionárias. Publicamente querem parecer inconformados, rebeldes, com
as suas "reformas estruturais" o seu "ímpeto
reformista". Na realidade, defendem tenazmente o
status quo
neoliberal.
O populismo pretende iludir o descalabro das políticas do capital, pela
procura de culpados, seja o movimento sindical, seja o Tribunal Constitucional,
sejam a contratação coletiva, tudo serve desde que com o aparato
emocional de encenada indignação.
Por muito que se queiram apresentar como da "modernidade" ou
"reformistas", o seu ideal é o "bom povo" venerador
e obediente aos seus "chefes"; alheado da
"política", permanentemente entorpecido com ilusões, a
acreditar que "os sacrifícios são para todos"; que a
culpa é dos outros trabalhadores que não merecem o que
ganham, por isso é que se ganha pouco sem que se ouça que
Portugal é dos países da OCDE com maior nível de
desigualdades.
O que o populismo promete é sempre anulado pelos condicionalismos que
defende ou põe em prática e que representam o seu
contrário. È ocaso do famigerado tratado orçamental da UE,
suprema contradição dos autoproclamados partidos do "arco da
governação".
O populista quando pretende atingir um dado objectivo, procede à sua
camuflagem com palavras e ações de sinal contrário. Assim,
o seu discurso vale-se de contradições nos termos (oximoros). Por
exemplo: pretender "crescimento e emprego" com políticas de
austeridade; sem proteção à produção
nacional e com livre circulação de capitais; querer proteger as
famílias e defender a flexibilidade laboral. E assim por adiante.
Apesar da intensa retórica e verbalismo, as reais
intenções dos populistas ficam evidenciadas pela forma rebuscada
como no parlamento justificam as votações contra propostas que em
nada contradizem o que perante a opinião pública veementemente
defendem ou defenderam. Parafraseando Shakespeare, as suas promessas são
sempre: "muito barulho para coisa nenhuma", ou antes, para fazer o
contrário.
3 COMO SE FAZ UM FASCISTA
Não é difícil. São o subproduto do populismo.
Reduz-se o entendimento da realidade a simplismos,
[1]
transforma-se a frustração em ódio, canaliza-se esse
ódio para alegados culpados, tal como se açulam cães de
fila. Trata-se de fazer interiorizar esses ódios desenvolvendo uma
identidade que, embora negativa, funciona como espírito de
pertença a um grupo que se supõe superior, mas totalmente
alienado da realidade objetiva.
É a integração do indivíduo marginalizado no
processo que o marginaliza, a passagem do oprimido para o que tem possibilidade
de oprimir. Sabe-se como a vítima de agressão pode tornar-se
agressor, reproduzindo comportamentos de que foi vítima, como forma de
recuperar uma certa auto-estima feita de ódios e recalcamentos.
Para que as vítimas da exploração e
marginalização percam a consciência de classe, é
necessário que passem a considerar os da sua condição como
causa do que lhes ocorre. Trata-se de encontrar culpados entre os conhecidos e
aceitar que "são os que menos trabalham os que têm mais
direitos". O objetivo é convencer reformados, desempregados no
limite da subsistência e camadas sociais intermédias em
condições de insegurança, que a culpa das suas
dificuldades é dos sindicalistas, dos "comunistas", da
própria democracia.
"É fácil controlar alguém quando o mantemos
esfomeado. Eu tinha interiorizado as suas fantasias psicopáticas
há muito tempo, elas eram a minha realidade"
[2]
É o que se passa em situações no limite da
subsistência ou com a perda de identidade social pelo desemprego, pela
insegurança, por uma reforma invetivada como forma de parasitismo.
O indivíduo é encaminhado para ligações sociais
feitas na base de recalcamentos, que as próprias
contradições da sociedade capitalista promovem e induzem contra
outras vítimas. Com isto procura-se que as pessoas fiquem
disponíveis para aceitar como sem alternativa e sem
reivindicações, as regras ditadas pelos monopólios e pela
finança, deixando funcionar o "mercado" e a "livre
empresa". O resto viria por si. Esta tem sido a receita dos mais poderosos
para tudo dominarem em função dos seus exclusivos interesses.
São os mecanismos da alienação a funcionar.
Nos espaços de "antena aberta" das rádios e TV
não é raro ouvirem-se indivíduos vociferar contra a
"democracia", "os sindicalistas esses malandros", "os
trabalhadores que não querem trabalhar, só querem receber
ordenado", "que se recusam a fazer horas
extraordinárias".
A realidade é-lhes tão agressiva e estranha que deixou de ser
tida em conta, entram no domínio do irracional: isso dá-lhes uma
sensação de poder e por paradoxal, de liberdade: a liberdade de
deixarem de pensar nas contradições de que também
são vítimas. È um raciocínio análogo ao do
toxicodependente ao afirmar que sob ação do psicotrópico
"sou livre, não penso em nada". Não era capaz de
reconhecer a sua escravidão.
O objetivo do populismo como veículo fascizante consiste em reduzir as
camadas populares na sua precariedade e insegurança a
"lúmpen proletariado": "esse produto passivo das camadas
mais baixas da velha sociedade. Em virtude das suas condições de
vida está bem mais disponível para vender-se à
reação, para servir as suas manobras". (Marx)
Trata-se de criar outra realidade para as pessoas considerarem normal o que
é doentio e perverso; adotarem os sentimentos odiosos do fascismo, como
o racismo e o anticomunismo, como porta de saída para as
frustrações que o próprio sistema cria. A capacidade de
discernimento é colocada num nível extremamente baixo, mudando a
compreensão sobre o que ocorre consigo próprio e com a sociedade.
É fácil odiar o vizinho sindicalista, o judeu, o
muçulmano, o comunista, difícil é atribuir o que
está mal aos oligarcas com fortunas nos paraísos fiscais,
escondidos pela "mão invisível" dos
"mercados". A abstração é um processo mental
complexo.
Jovens desenraizados, socialmente frustrados, desprovidos materialmente,
vão encontrar no populismo fascista uma razão para a sua
existência, mas também meios para viver, como se passou com as SA
nazis, e se passa com os mercenários na Venezuela que a
comunicação social controlada designa como
"estudantes", ou com a Guarda Nacional nazi na Ucrânia
[3]
, ou com os mercenários na Síria e em outras partes do mundo.
Perguntando-se a mestre Aquilino Ribeiro o que era para si o cúmulo da
miséria moral do célebre questionário de Proust
disse então: "é ser um cão tinhoso da plebe,
curvar-se perante o rei, beijar o anel do bispo, segurar a espada do nobre e
mesmo assim ter medo do Inferno".
É este o ideal de ser humano que o populismo, como antecâmara do
fascismo, promove.
Notas
[1] Usamos o termo "simplismo" com o sentido de defeito de
raciocínio que consiste em encarar um problema pelo seu aspeto
aparentemente mais simples, pondo de parte dados fundamentais. Neste sentido,
as declarações do PR Cavaco Silva sobre os "consensos
partidários" e o "interesse nacional" resumem-se a
simplismos.
[2} 3096 Dias, Natash Kampush, Ed. ASA, p.167, 168. Relato da menina
austríaca sequestrada dos 10 aos 18 anos por um neonazi, sofrendo como
uma prisioneira de campo de concentração.
[3] Para formação da qual e criação de
condições para a sua atuação, os EUA gastaram 5 mil
milhões de dólares. Além do despendido por ONGs como a
Fundação Adenauer.
[*]
Autor de
Girassóis,
uma história de antes, durante e depois do 25 de Abril.
A obra pode ser obtida na secção
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