Biologia sintética: a vida descartável

por Silvia Ribeiro [*]

. A biologia sintética é uma nova rubrica científica e industrial cujo objectivo é criar formas de vida artificiais a fim cumprir tarefas ao gosto do desenhador. Não satisfeitos com os problemas criados com os transgenicos – seres vivos nos quais se inserem genes de outras espécies –, trata-se agora de construir organismos vivos a partir do zero, desenhados à la carte, a partir da fabricação de módulos de ADN artificial, programados para serem montados uns com os outros. Não é ficção científica e sim uma realidade que se está a desenvolver para além de todo controle social e responsabilidade ética.

Segundo uma investigação do Grupo ETC, existem pelo menos 39 empresas, com financiamento privado e público – exércitos inclusive –, que se dedicam a fabricar ADN artificial ou partes deste. A Codon Devices (Cambridge, Massachussets), por exemplo, foi fundada este ano por investigadores de universidades públicas e empresas. Oferece troços de ADN sintetizado, que os compradores podem montar conforme o que queiram construir.

Diferentes grupos de investigadores sintetizaram vírus completos: bacteriófagos, vírus da pólio e outros. Recentemente reconstruíram o vírus que provocou a epidemia da gripe espanhola em 1918. Ainda que os "avanços" sejam rápidos, os cientistas estão longe de controlar tudo o que acontece nestes processos. Os seres vivos criados artificialmente muitas vezes actuam de maneira inexplicável para eles. A vida, apesar dos esforços destes cientistas, não se pode reduzir a tijolos montáveis nem a programa de computação.

Em 2004 a revista Nature afirmava num editorial: "Se de facto os biólogos estão em vésperas de sintetizar novas formas de vida [já o haviam feito então], as possibilidades de usos mal intencionados ou desastres involuntários poderiam ser enormes". O risco de utilizar a biologia sintética para construir vírus malignos, como armas biológicas, é enorme e real. Imaginem que se utilize a informação do mapa genómico dos mexicano – colocado na Internet, acessível a qualquer um – na construção de vírus sintéticos que só afectam determinados grupos étnicos. Estes problemas não parecem tirar o sono nem impedir os investigadores de prosseguirem.

Uma das criações mais alarmantes é a realizada por duas equipes de cientistas na Califórnia e na Florida, os quais tomando os "modelo" das quatro bases que compõem o ADN de todos os seres vivos (chamadas C, G, T, A), construíram uma quinta e a seguir uma sexta base, e conseguiram que se montassem com as outras quatro e se reproduzissem. Isto abre a porta a criar espécies totalmente desconhecidas, de incrível complexidade e um espectro de impactos insuspeitados, totalmente imprevisíveis sobre a vida, a biodiversidade e suas interacções.

Craig Venter, o magnata da genómica – que criou sua própria empresa para competir com o mapeamento público do genoma humano –, fundou em 2005 a Synthetics Genomics para criar, entre outros, micro-organismos artificiais que produzam energia ou absorvam dióxido de carbono "para mitigar os efeitos da mudança climática". Os resultados da interacção dos organismos vivos artificiais com o ambiente são incertos e de potencial catastrófico se se libertassem, por exemplo, no mar. Mas o governo dos Estados Unidos, que financiou as investigações de Venter mediante o Departamento de Energia, poderia fazer exactamente isso. Em 25 de Maio último George W. Bush declarou em The New York Times: "Deixemos o debate sobre os gases de efeito estufa são causados pela humanidade ou por razões naturais; vamos focar-nos só na tecnologias que possam resolver o assunto". Referia-se à energia nuclear o qualquer outra que surja como solução. Não importa que no caminho se criem problemas ainda piores.

Para tentar impedir que a informação pública sobre a biologia sintética gere uma resistência igual ou maior à que apresentam os transgénicos, um grupo de cientistas que trabalha neste campo reuniu-se entre 20 e 22 de Maio em Berkeley, California, na conferência Synthetic Biology 2.0 . Propõem impor uma "auto-regulação" das suas actividades, criando um código de conduta definido por eles mesmos.

O modelo é a conferência de Asilomar, de 1975, sobre engenharia genética. Com a história à vista, esta só serviu para dar aos cientistas uma falsa imagem de confiabilidade, atrasando de maneira desastrosa o envolvimento do público e qualquer controle regulatório real sobre suas actividades. Quando começaram a redigir-se leis de biosegurança, estas fizeram-se favorecendo as empresas dominantes do sector, o que se tornou ineficiente para a verdadeira segurança da população e do ambiente. Agora, além disso, são totalmente incapazes de regular os novos impactos potenciais da biologia sintética.

Pelo menos 39 organizações de ambientalistas, cientistas e da sociedade civil declararam em 19 de Maio último seu alerta frente à tecnologia sintética e sua firme oposição a qualquer proposta de "auto-regulação". Assinalara que o indispensável é um amplo debate social, para além da biosegurança, e que de modo algum pode ser dirigido por aqueles que estão directamente envolvidos, inclusive mediante interesses comerciais.

O debate social é necessário, mas antes de tudo necessitamos travar aquels que em nome da ciência e a servir os seus próprios interesses, sejam "cientistas" ou empresas", arrogam-se o direito de manipular a vida, ainda que à custa de colocar em risco a de todos os demais.

02/Junho/2006

[*] Investigadora do Grupo ETC

Mais informação em Alarma sobre biología sintética: coalición global demanda debate público y supervisión inmediata


O original encontra-se em http://www.jornada.unam.mx/2006/06/02/a09a1cie.php


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
05/Jun/06