A periferia e as crises no centro
por José Valenzuela Feijóo
[*]
CAPITALISMO: CRESCIMENTO E DESIGUALDADE
O poder dinâmico do capitalismo é um facto histórico
indesmentível. Mesmo Marx e Engels, esses grandes inimigos do sistema,
não hesitaram em o reconhecer em muitas célebres páginas
do
Manifesto Comunista.
O capital expandiu-se até às regiões mais recônditas
do planeta e, ao mesmo tempo, foi capaz de impulsionar as forças
produtivas do trabalho a níveis nunca antes alcançados e nem
sequer sonhados.
Consideremos, por exemplo, o caso da Europa. Maddison
[1]
calculou que entre o ano 500 d.C. e 1500 (ou seja, um período dominado
basicamente pelo modo de produção feudal), o produto interno
bruto (PIB) e a população terão crescido anualmente 0,1 %;
por conseguinte, o PIB
per capita
não se teria alterado, situando-se na ordem dos 215 dólares
(dólares de 1970). Até 1700, o PIB
per capita
teria atingido 265 dólares (crescendo a 0,1 % ao ano entre 1500 e 1700)
e até 1820 teria rondado os 411 dólares. Logo, entre 1820 e
1980, anos de claro domínio da forma capitalista, o rendimento
per capita
cresceu em média 1,6 % ao ano, chegando a um nível de 5210
dólares em 1980. Em resumo, as taxas percentuais de crescimento do
rendimento
per capita
seriam:
500-1500
..
.....0.0
1500-1700
..0.1
1700-1820
..0.2
1820-1980
..1.6
A aceleração é clara e impressionante. E se bem que a
Europa tenha sido uma região privilegiada em matéria de
crescimento, o resto do mundo também cresceu a ritmos nunca antes
conhecidos. No século XX, por exemplo, estima-se que o PIB mundial se
multiplicou por 19; a população multiplicou-se quase por 4 e em
consequência, o PIB por habitante terá sido multiplicado quase por
cinco.
[2]
De facto, temos que no quarto de milénio decorrido desde que o
capitalismo iniciou, aproximadamente, a sua marcha triunfal, o rendimento
per capita
se teria elevado, em termos absolutos, na ordem de 6 vezes mais que tudo o
conseguido na história anterior.
[3]
Decerto que as estimativas quantitativas desta ordem são
reconhecidamente complicadas e podem ser pouco seguras. Não obstante,
mais ajustes, menos ajustes, é indiscutível o tremendo impacto
dinamizador do capitalismo.
Deparamo-nos ainda com outro traço do sistema que não é
menos importante. Desde o seu início, o capitalismo revela uma forte
vocação de expansão e domínio universal. Ou seja, a
partir dos seus locais de origem na Europa ocidental vai-se
estendendo
a praticamente todos os lugares do globo terrestre. Mas, ao fazê-lo,
não vai dinamizando e igualando os níveis de desenvolvimento das
diversas regiões do planeta. Muito pelo contrário, vai provocando
uma desigualdade crescente, a ponto de que termina por "cindir o mundo
capitalista em dois grandes pólos: o desenvolvido e o
subdesenvolvido". Há dois séculos, por exemplo, o
desnível de rendimentos entre as zonas hoje desenvolvidas e as que hoje
formam o denominado Terceiro Mundo, situava-se, quando muito, na ordem de um
para
dois. Mas esta relação poderá ser exagerada: Maddison,
sobre a base de uma pequena amostra de países, defende que até
1760, o rendimento
per capita
do pólo subdesenvolvido pode ser
da ordem dos 77 por cento do vigente em França e na Grã-Bretanha.
[4]
Pior ainda, segundo Bairoch, "é muito provável que em
meados do século XVIII o nível de vida médio na Europa
fosse um pouco mais baixo que no resto do mundo"
[5]
. Hoje, chegou-se a um desnível que se situa à volta de 1 para
12 ou mais. Se nos apoiarmos em dados do FMI, podemos comparar o rendimento
per capita
das principais regiões atrasadas com o do país mais adiantado em
cada momento (Reino Unido em 1870 e Estados Unidos em 2000) e obtemos o que
mostra o quadro 1.
Quadro 1- Desníveis de desenvolvimento
ano
|
1870
|
2000
|
País mais adiantados
|
100,0
|
100,0
|
América Latina
|
23,3
|
20,1
|
Ásia (excepto China e Japão)
|
19,0
|
8,3
|
África
|
14,7
|
4,8
|
Fonte: FMI.
Em suma, no decurso do seu desenvolvimento histórico o capitalismo foi
evidenciando dois traços muito distintivos:
a) elevados ritmos de crescimento, completamente desconhecidos na
história
anterior;
b) padrões de distribuição do rendimento cada vez mais
regressivos. Ou seja, crescente desigualdade económica entre as
nações. Por isso, trata-se de um sistema cindido em dois
pólos: o desenvolvido (ou "centro") e o subdesenvolvido (ou
periferia ).
A PERIFERIA E A SUA CONDIÇÃO SUBORDINADA
Desenvolvimento e subdesenvolvimento não funcionam como compartimentos
estanques. As conexões entre ambos os pólos sempre foram vastas,
densas e muito importantes para o funcionamento de um e do outro.
[6]
No plano económico, o dado mais decisivo reside na constante
transferência de excedentes do pólo subdesenvolvido para o
pólo desenvolvido do sistema, o que facilita o crescimento do segundo e
dificulta bastante a acumulação e o crescimento na periferia. Ou
seja, gera-se uma situação em que operam relações
que impulsionam poderosamente a reprodução da bipolaridade
mencionada. Não cabe no âmbito deste trabalho discutir este
conjunto de problemas, mas para os nossos propósitos, bastaria sublinhar
o seguinte: o crescimento dos países subdesenvolvidos é
subordinado ao crescimento dos países desenvolvidos. E isto não
apenas no sentido qualitativo que indicamos. Também num sentido
quantitativo mais restrito e directo. Ou seja, o pólo desenvolvido
funciona como locomotiva e o subdesenvolvido como um vagão, que
avança pelo menos mais rápido (ou mais lento) conforme a
locomotiva circule mais depressa (ou mais devagar). Usando outra
expressão, podemos dizer que o pólo desenvolvido funciona como
variável independente e o pólo subdesenvolvido como
variável dependente. Em suma, a dinâmica da periferia subordina-se
à dinâmica dos grandes centros capitalistas.
[7]
Se nos situarmos na perspectiva do pólo subdesenvolvido,
constatações como as atrás esboçadas (que
aliás, são muito elementares), desembocam numa exigência
clara: a adequada compreensão das nossas realidades
"terceiro-mundistas" obriga-nos a entender também as
realidades que operam no pólo desenvolvido do sistema. E isto por uma
razão muito simples e que nada tem que ver com ocos afãs de
erudição, de enciclopedismo ou outros. A exigência é
simplesmente pragmática: dado o impacto que o centro tem na periferia,
se não entendemos o que acontece no centro, pouco ou nada entenderemos
sobre o que acontece na periferia. Quer dizer, nos nossos mundos, nas nossas
economias.
[8]
Temos à mão um exemplo em curso: a economia mexicana, na
proposta presidencial, devia ter crescido na ordem dos 5 por cento ou mais
durante 2001, mas de facto, entrou numa forte recessão e o PIB
começou a descer. A razão directa fundamental (que não a
única) é a quebra da actividade económica nos Estados
Unidos. Ou seja, a recessão estadunidense (que se traduz em menores
importações de produtos mexicanos pelos Estados Unidos) arrastou
o México, provocando no país um impacto negativo multiplicado.
Para este impacto, o movimento "externo" encontrou ainda um campo
muito propício no interior da nossa economia, ou seja, no seu
padrão de funcionamento actual.
[9]
No que atrás notamos radica por certo uma das
motivações deste livro: é imprescindível
compreender o curso que segue a economia nos países centrais para
entender o que acontece e virá a acontecer nas nossas
próprias economias.
AS CRISES: CÍCLICAS E ESTRUTURAIS
No desenvolvimento do sistema, manifesta-se outro dado ou traço
substantivo que convém assinalar. Falamos das "crises": as
de ordem cíclica e as de carácter estrutural.
Se observamos a história dos países capitalistas, há algo
que salta à vista: a trajectória da economia faz lembrar o
perfil da montanha russa. Há momentos em que o nível da
actividade económica se eleva mais e mais para logo passar a uma fase em
que o rendimento nacional estagna ou cai. Ou seja, encontramo-nos face a uma
sucessão contínua de fases de "auge" e fases de
"recessão". Por isso se fala de comportamento cíclico
e de "crises cíclicas", entendendo por estas aquele momento em
que se dá o ponto ou momento de inflexão da curva
económica, se cancela o auge e se entra na fase recessiva.
Naquele auge operam certos processos -- como a baixa do desemprego, o maior
crescimento dos salários até um nível em que
começam a subir mais que a produtividade, a consequente descida da taxa
de mais-valia, uma eventual menor disciplina de fábrica, o preço
mais elevado das matérias-primas, uma deterioração das
posições financeiras de empresas e famílias, etc
que,
ao fim de certo lapso, desembocam numa descida da taxa de lucro. Esta baixa
arrasta a acumulação e, por esta via, o PIB acaba por descer. Em
resumo, é o próprio auge que produz a crise e a consequente
recessão. Mas o processo não pára aqui; um dos seus
traços mais evidentes é o facto de a fase recessiva, pelas suas
próprias características (como o grande aumento do desemprego, a
queda do preço das matérias-primas, etc), usualmente diluir as
condições que precipitaram a queda da taxa de lucro.
[10]
Ou seja, recompõe-na e por este meio, regenera o sistema, volta-se a
estimular a acumulação e a economia lança-se para um novo
pico. Neste sentido, também se pode dizer que a recessão acaba
por engendrar um novo pico. Assim, uma e outra vez. A chave da questão
reside na taxa de lucro, a qual funciona como regulador de todo o movimento. Em
termos muito simples, no pico a sequência básica seria do tipo:
D
Lucro (taxa)
à
D
Investimento
à
D
PIB
à
D
Emprego
à
D
Salários
Logo, o aumento salarial e outros factores acabam por "reduzir" a
taxa de lucro. Movimento, valha a verdade, que se pode precipitar por muito
diversas vias, pois, na taxa de lucro, influem diversos factores.
[11]
Mas, uma vez verificada esta baixa, tem início uma sequência
parecida com a atrás indicada, se bem que com uma direcção
diferente: cai o investimento, cai o PIB, cai o emprego e caem os
salários, etc. No entanto, é este mesmo processo de quebra e de
atonia que começa a preparar as condições da
recuperação. Como notam Bowles e Edwards, as recessões
têm uma importante missão a cumprir: manter os lucros. As
recessões produzem-se quando milhares de empresas tomam decisões
independentes de não investir, devido a que a taxa de lucro esperada
não é suficientemente elevada. A recessão produz
desemprego, uma menor procura de matérias-primas importadas e outras
transações; tudo isso serve para restabelecer a expectativa de
maiores lucros no futuro.
[12]
Se as coisas se passam assim, fala-se de um ciclo "bem comportado",
ou seja, a recessão permite inaugurar um novo auge. Não
obstante, de vez em quando, a recessão falha no cumprimento das suas
funções, a taxa de lucro não melhora se:
1- a melhoria nas condições de custo não consegue superar
o impacto negativo gerado pelo decréscimo da procura global e, por isso,
o investimento não reage;
2- as condições dos custos não melhoram (ou não o
fazem na medida necessária) durante a recessão. Logo, "em
ambos os casos a recessão pode piorar a situação, em vez
de a melhorar; esta situação é similar à que sucede
com o corpo humano quando o sistema imunológico deixa de funcionar e em
vez de combater uma infecção, a alimenta e a difunde".
[13]
Neste contexto fala-se de um "ciclo perverso" ou mal comportado. A
recessão cíclica não é capaz de regenerar a
acumulação, e isto nos indica que o sistema requer uma cirurgia
de maior alcance, impulsionando mudanças de ordem estrutural.
Mantém-se naturalmente, a matriz capitalista básica (por isso
não falamos de crise do sistema ou "crise terminal" do modo de
produção), mas é preciso avançar de uma etapa a
outra. Se quisermos, entra na transição de um determinado
"padrão de acumulação" a outro padrão de
acumulação. Neste caso, falamos de "crise estrutural"
e, pela mesma razão, de "mudança estrutural".
Em muitas ocasiões, a crise estrutural sobrepõe-se a uma crise
cíclica e, pela mesma razão, esta se agudiza e assume
características mais graves. Por exemplo, a famosa grande crise de
1929-1933, engloba ambos os processos. No fim, o sistema entra numa nova forma
de funcionamento ou novo padrão de acumulação, o que
dominará os "anos dourados" do pós-guerra (anos 50 e 60
do século XX).
Para o objectivo deste trabalho, queríamos destacar quatro pontos
determinantes.
Primeiro -
recordar que as crises cíclicas têm origem nos países
centrais e se transmitem daí à periferia. Neste sentido, podemos
falar de um "ciclo importado". Durante estas crises, os nossos
países não só sofrem as consabidas fortes quedas nos
níveis de actividade económica. Juntamente, acentua-se o
mecanismo dos "termos de intercâmbio não equivalentes"
e, pelos mesmos motivos, a transferência de excedentes a favor do centro.
Quer dizer, as crises reproduzem de forma ampliada a bipolaridade
centro-periferia atrás mencionada.
Segundo -
a emergência de crises estruturais nos países centrais
não provoca apenas transformações estruturais
- i.e.
emergência de novos padrões de acumulação - nesses
países. Por sua vez, geram-se modificações substanciais na
relação centro-periferia e modificações no
padrão de acumulação periférico. Por exemplo, a
crise de 1929-1933 acaba por precipitar em boa parte dos países
latino-americanos o cancelamento do modelo
"primário-exportador" e a emergência de um padrão
de substituição, conhecido como
"industrialização baseada na substituição de
importações" ou modelo de "desenvolvimento para
dentro". Neste sentido, bem podemos pensar que se no centro se precipitar
uma crise de maiores proporções, de carácter estrutural, a
emergência de uma nova ordem também acarretará a
liquidação do padrão neoliberal na América Latina.
Terceiro -
em cada padrão de acumulação uma determinada
fracção do capital se situa sempre em posições
hegemónicas no bloco de poder, e isso em função das mesmas
características do padrão de acumulação vigente. A
razão é simples, os interesses de cada fracção
podem ser convergentes ou não, adequados ou não, com o
funcionamento do padrão. No caso do padrão neoliberal, o que
vemos é o largo predomínio do capital financeiro especulativo.
Ao mesmo tempo, a não menos clara subordinação do capital
industrial e produtivo. Logo, se se vai avançar para um novo
padrão de acumulação, também podemos esperar que
junto com a anulação do padrão até agora vigente
seja anulado o lugar de direcção que tem vindo a ser ocupado pela
fracção financeira do capital. Ou seja, assistiríamos ao
desalojar da fracção dominante no cume do poder. Pela mesma
razão, poderia esperar-se que o segmento industrial voltasse a retomar o
controle do poder. Ou seja que o sistema procure abandonar a sua actual
propensão parasitária e especulativa e passe a favorecer a
acumulação produtiva.
Quarto -
as crises e mudanças de ordem estrutural que se sucedem nos
países centrais, em não poucas ocasiões provocam a
substituição da potência hegemónica. A crise de
1929-1933, por exemplo, acaba por sepultar definitivamente a hegemonia
britânica (que estava já muito posta em causa desde o
início do século), substituindo-a pela hegemonia estadunidense.
Neste contexto, convém acrescentar que a crise e os deslocamentos
hegemónicos pressupõem uma séria
"redefinição de esferas de influência" entre as
grandes potências imperiais. Trata-se, por isso, de momentos de grande
tensão, em que se agudizam as contradições e conflitos e
emergem -- com a força de uma verdadeira lei --, os conflitos militares
abertos. Quer dizer, a guerra na sua acepção mais
clássica: como continuação da política por outros
meios. Ou ainda, se quisermos usar uma fórmula mais
contemporânea: a guerra dos mísseis em substituição
da guerra das mercadorias e capitais.
APROXIMA-SE UMA GRANDE CRISE MUNDIAL?
A crise de 1929-1933 e a quase imediata Segunda Guerra Mundial marcam a
transição para um novo ordenamento capitalista. Roosevelt fala
de um
New Deal
e Keynes propõe uma nova teoria e novas formas de abordar a
política económica. O sistema, nas décadas que sucedem
à Segunda Guerra Mundial, vive uma bonança nunca antes conhecida
na história do capitalismo, que os historiadores começaram
já a denominar de "anos dourados". Os ritmos de crescimento
são elevados, a produtividade e os salários crescem e inclusive o
movimento cíclico parece notavelmente suavizado. E como seria de
esperar, alguns começam a defender que o ciclo e as crises são
coisas do passado. Ao longo dessas décadas, a Europa ocidental
reconstroi-se e cresce a taxas muito elevadas. No Japão, a velocidade
do crescimento é descomunal e apenas comparável à obtida
por países submetidos a uma gestão planificada, como a URSS e
outros de natureza semelhante. Os próprios Estados Unidos, embora
cresçam bastante menos, fazem-no aos ritmos mais altos da sua
história.
Os anos setenta marcam uma transição e nos anos oitenta emerge um
quadro bastante diferente. O crescimento abranda e o desemprego aumenta.
Mesmo assim, nas cimeiras da economia observa-se que o capital financeiro
assume um papel cada vez mais dominante. Os Estados Unidos quase não
crescem e a Europa também cai numa quase estagnação. O
Japão cresce também menos, mas a ritmos entre 4 e 5 por cento,
que à escala mundial são elevados. Ao mesmo tempo, os
"tigres" do sudeste asiático, manejando um modelo bastante
semelhante ao japonês, crescem a ritmos "impróprios"
para o Terceiro Mundo. Em boa medida, são estes países
(incluindo o Japão, a China e a Índia) que funcionam como
locomotivas e impulsionam, de algum modo o crescimento mundial. Nos anos
noventa, a economia japonesa desaba ou, melhor dizendo, entra num longo
período de letargia. A Europa também não cresce e
até os "tigres" mergulham numa crise profunda. E, de maneira
um tanto surpreendente, assistimos ao relançamento da economia
estadunidense. Especialmente na segunda metade da década, o crescimento
dos Estados Unidos alcança níveis que se aproximam dos 4 por
cento. Não se trata, apesar dos reclames publicitários e/ou das
fantasias delirantes, de um crescimento muito espectacular, mas bastou para
impedir que a economia mundial se precipitasse numa recessão profunda.
Em suma, dos grandes centros económicos mundiais: a Zona Euro,
Japão e sudeste asiático, os Estados Unidos foram os
únicos que impulsionaram a economia mundial.
As últimas duas décadas do século passado
caracterizaram-se por tempos de crescimento relativamente lento. Mas, se para
cima (o dinamismo) não há muito o que admirar, verifica-se que
para baixo (a estagnação) não ocorreram crises de ordem
maior. Do ponto de vista do crescimento, podemos constatar que o sistema, de
uma maneira ou de outra, contou com a existência de algumas
regiões económicas que foram capazes de gerar algum dinamismo.
Ou, o que vem a ser quase equivalente, não se registaram crises
sincronizadas ou fases de estagnação convergentes. Quando emerge
a crise de 1991, por exemplo, o PIB cai nos Estados Unidos, mas o Japão,
o sudeste asiático e mesmo a Alemanha, mantêm um crescimento
firme. Logo, como já fizemos notar, nos anos noventa caíram a
Europa e o Japão, mas os Estados Unidos passaram a funcionar como
força motriz. Ou seja, transmitiram dinamismo e compartilharam com o
resto do mundo, em algum grau, os frutos do seu longo auge.
Não obstante:
-
a Europa não consegue sair do torpor e a Alemanha começa a
entrar num novo momento crítico;
-
o Japão não consegue superar os seus problemas. Parece ter-se
transformado num exemplo vivo do "estado estacionário" que
imaginaram os grandes clássicos (Ricardo, Mill, etc) e no último
ano começa a cair numa recessão
sensu stricto;
-
a parte mais grave do filme: o "bom rapazinho" adoeceu
e caiu em estado de coma. Os Estados Unidos começam a precipitar-se na
recessão e esta poderá ser profunda e bastante longa.
Em suma, assistimos a uma "convergência de crises" entre as
grandes potências do sistema. Pela mesma razão, a partir deste
simples facto em que as crises nacionais se retro-alimentam, podemos desde
já prognosticar a emergência de um período muito duro. Em
especial, como sempre sucedeu, para os países do bloco subdesenvolvido.
Convém acentuar mais uma vez: a recessão no centro desloca-se
muito rapidamente para a periferia.
[14]
Ao caírem os níveis de actividade económica
v.gr.
nos Estados Unidos, baixam também as suas importações,
[15]
o que se traduz num forte decréscimo das exportações
latino-americanas, além de uma deterioração nos seus
termos de troca (ou seja, o preço das nossas exportações
cai, enquanto o preço do que importamos não se move ou aumenta).
Logo, o decréscimo da nossa capacidade para importar traduz-se num
decréscimo generalizado da actividade económica: o rendimento
ajusta-se ao menor nível das nossas importações. A crise,
assim engendrada, será tanto mais profunda quanto mais frágeis
forem as correspondentes economias nacionais. A fragilidade, por sua vez,
costuma associar-se à penetração do dogma neoliberal. E
se o país afectado for relativamente grande, o "efeito de
contágio" será tanto mais devastador. Pensemos, por
exemplo, no caso da Argentina, um país pateticamente embarcado
num tipo de política económica (cambial, sobretudo) que é
simplesmente suicida. O rompimento da paridade cambial fixa (esse desastrado
regresso ao padrão ouro ensaiado naquele país) é
inevitável e provocará um verdadeiro maremoto no Brasil, no
Uruguai, Paraguai, Bolívia, Chile
[16]
e outros países latino-americanos. Mas também terá um
forte efeito de ricochete nos próprios Estados Unidos. Resumindo, a
periferia também pode passar a desempenhar um papel importante no
agravamento da crise mundial.
Na crise, podemos esperar que a variável financeiro-especulativa
desempenhe um papel destacado. Esta intervenção não
é novidade: é antes uma espécie de regra, pois aparece,
de um ou de outro modo, em praticamente todos os fenómenos de crise.
Não obstante, assistimos nas últimas décadas a uma brutal
expansão do capital fictício e dos movimentos especulativos que
lhe são próprios. Como, por outro lado, se vem dando um
notório processo de "desregulação financeira", a
volatilidade destes capitais transmite-se em forma amplificada ao resto da
economia. Este factor joga agora como um factor de
desestabilização adicional e que deveria aprofundar tanto a
duração, como a amplitude da crise.
O problema, em todo o caso, não se limita à crise entendida como
um fenómeno puramente económico. Também se pode detectar
(mesmo que não seja ainda muito visível) o paulatino
desenvolvimento de interesses objectivos, cada vez mais opostos, entre as
grandes potências, como por exemplo entre os Estados Unidos e o
Japão. Na crise, o que pode ser a via de saída para uns, pode ser
mortal para o outro
[17]
e vice-versa. Isto acarreta uma consequência iniludível e
bastante explosiva: a combinação ou mistura do conflito
político com o conflito económico.
Mas há mais. Se examinamos com um mínimo de cuidado o
período que precedeu a grande crise de 1929-1933, encontraremos
semelhanças mais que inquietantes com a situação actual.
Temos uma distribuição do rendimento muito regressiva (assente em
muito elevadas taxas de mais-valia, sérios problemas do lado da procura
efectiva, alto peso do capital especulativo e uma confiança suicida nas
virtudes do "livre mercado". Por vezes, tanto hoje como no passado,
cremos estar ouvindo de novo o doutor Pangloss. Hoje, os economistas
neoclássicos continuam a defender que o sistema se ajusta
espontaneamente ao pleno emprego e alguns deles (para não dizer todos),
negam que a bolsa esteja a ser assediada por uma vaga especulativa de grandes
proporções. Como para recordar o muito insigne Irving Fisher
(que é como quem diz o pai ou avô dos actuais Barro, Lucas e
companhia), que dois ou três dias antes da quarta-feira negra de Wall
Street em 1929, assegurou que os valores bolsistas já tinham encontrado
um piso "firme e permanente".
Surge então uma "possibilidade": que se desencadeie uma crise
de maiores proporções. Esta, podemos esperar, deveria abarcar
não só a esfera económica, como também a
política e a militar. E não apenas o Primeiro Mundo, mas
também o Terceiro. Mais ainda, se pensarmos que as grandes
potências vêm praticando cada vez com mais força o que
podemos chamar conflitos "hipócritas" e "limpos".
Hipócritas porque não lutam directamente nos próprios
territórios, mas nos campos de batalha do Terceiro Mundo. Limpos, entre
aspas, porque depois da dura lição do Vietnam
não
são os seus soldados que vão ao campo de batalha (excepto como
aviadores), mas sim os novos
gurkas
do século actual: albaneses, croatas, alguns árabes, turcos,
etc. Ou seja, as guerras dos de cima, como nos tempo da Mãe Coragem,
assolam e degolam os de baixo. Em conclusão: poderíamos estar a
chegar a uma situação de transformação estrutural,
de redefinição de esferas de influência e de
possíveis conflitos militares de primeira ordem. Sublinhemos: trata-se
de uma possibilidade. Não de algo fatal.
Tentarei de seguida analisar as vias que conduziram à
situação actual e, pela mesma razão, avaliar as
possibilidades que o presente encerra.
A CRISE E A MUDANÇA ESTRUTURAL NA PERIFERIA
Na América Latina, os anos oitenta e noventa são anos de
predomínio neoliberal e também de crescimento muito lento.
Existem razões de sobra para supor que a quase estagnação
da economia é determinado pelas características mais
intrínsecas do modelo neoliberal.
[18]
Quando se examina este padrão de funcionamento, hoje tão
expandido, existe bastante consenso sobre o facto que aprofundou a desigualdade
da norma distributiva na região, alargando ao mesmo tempo o raio de
abrangência da pobreza. Inclusive os defensores do padrão, tendem
a reconhecer este problema. Pelo contrário, quando se fala de
crescimento económico, podemos observar que inclusive alguns detractores
do modelo pensam que neste aspecto não há problemas. Não
obstante, é bastante claro (para além da grande e ruidosa
propaganda) que em termos de acumulação produtiva e ritmos de
crescimento, os resultados são muito deficientes.
[19]
Por exemplo, entre 1950 e 1973 anos em que domina o padrão da
industrialização de substituição (das
importações - NT), padrão que os neoliberais consideram
"populista", "ineficiente" e outras coisas , o PIB per
capita da região latino-americana cresceu em média 2,5 por cento
ao ano (nos Estados Unidos, no mesmo período, a taxa de crescimento foi
de 2,4 por cento). A seguir, entre 1973 e 2000, anos em que tende a predominar
o esquema neoliberal, o PIB per capita cresce a uns mirrados 0,8 por cento de
média anual (nos Estados Unidos, a taxa de crescimento foi de 1,85 por
cento ao ano). Com os ritmos do "populismo", o PIB por habitante
duplica ao fim de 28 anos. Aos ritmos neoliberais, duplica ao fim de 88 anos.
Além disso, se no período anterior o ritmo da região
acompanhava o dos Estados Unidos, podemos ver que no período neoliberal
se acentua a disparidade com a grande potência do norte.
Poder-se-ia pensar que no dito período, a estagnação e/ou
crescimento lento foi a norma. Assim foi, de certo modo. Mas, em todo o caso,
a região latino-americana encolhe-se ainda mais. No quadro seguinte
comparamos o PIB per capita da América Latina com o dos Estados Unidos
(a "grande potência" da época) e com o da China
continental, um país que não sendo já socialista, em todo
o caso representa um
regime económico em que o Estado ainda tem uma intervenção
e peso muito elevados.
Quadro 2 - A América Latina e o seu atraso relativo na fase neoliberal *
|
1973
|
2000
|
Incremento (%)
|
Taxa anual de crescimento (%)
|
Estados Unidos
|
16 607
|
27 272
|
64,2
|
1.85
|
China
|
1 063
|
6 273
|
590,0
|
5.9
|
América Latina
|
4 384
|
5 481
|
25,0
|
0.8
|
Fonte: FMI.
*PIB per capita, em dólares dos Estados Unidos de 1990.
Como vemos, a América Latina cresce bastante menos que os Estados Unidos
neste sentido, poderíamos dizer que a região se
"sub-desenvolve" e muitíssimo menos que a China
continental. Portanto, podemos concluir que o neoliberalismo não
só piora a distribuição do rendimento, como também
provoca ritmos de crescimento muito baixos.
Para os nossos objectivos, devemos destacar a quase estagnação
neoliberal. Neste contexto, convém trazer à colação
uma hipótese económico-política. Num sentido muito geral,
podemos postular que a burguesia, a industrial em particular, necessita de se
reproduzir em forma ampliada, o que implica altos ritmos de
acumulação e de crescimento. Por isso, se a economia não
cresce, deveríamos esperar uma recusa seca, ou oposição,
por parte da burguesia industrial. Por outro lado, os problemas de emprego
insuficiente, baixos salários e distribuição muito
regressiva do rendimento, devem transformar a classe operária industrial
numa classe activamente oposta ao modelo.
Por certo, um modelo que agrava a distribuição do rendimento e
que gera tendências à estagnação, dificilmente pode
legitimar-se e consolidar-se. Deveríamos então esperar:
-
uma oposição crescente e cada vez mais extensa;
-
que essa oposição seja encabeçada pela burguesia
industrial autóctone e/ou pela classe trabalhadora.
No entanto, temos que:
-
é verdade que a oposição se alarga, mas apenas como um
"estado de ânimo". Ou seja, não é capaz de se
transformar em força política decisiva;
-
as classes sociais que uma análise genérica nos indica como
potenciais sujeitos dirigentes da oposição ao neoliberalismo,
parecem diluir-se, tornam-se passivas e não revelam nenhuma capacidade
(nem sequer vontade) hegemónica.
De facto, temos que é o próprio sistema neoliberal que
decompõe e debilita os seus potenciais coveiros. Seduz a burguesia
industrial com o rebuçado dos baixos salários, incorpora-a nas
actividades especulativas e/ou comerciais
[20]
e vai-lhe cerceando a vocação produtora. Ou seja, começa
a transformá-la numa autêntica "burguesia
intermediária" (ou "compradora", como se dizia nos velhos
tempos). Quanto à classe operária, a débil
acumulação e a abertura externa irrestrita, reduz o peso dos
grandes conglomerados industriais e, por isso, o proletariado industrial perde
peso quantitativo e qualitativo. Acrescem a isto os fenómenos de
"flexibilização laboral"; ou seja, do trabalho
precário e temporário, que transforma os operários em
autênticos
free-lancer's,
desprovidos de toda a força política.
Neste contexto, retomemos o problema da crise e do seu impacto. Se recordarmos
a crise de 1929-1933, podemos comprovar que em alguns países da
América Latina esta precipita a crise do modelo
"primário-exportador". Ou seja, uma mudança no
padrão de acumulação vigente na época. Mas tal
mutação não teve lugar em todos os países
latino-americanos. O México e os países do cone sul, incluindo o
Brasil, avançaram para a "industrialização
substitutiva". Mas os países centro-americanos,
verbigracia,
mantiveram-se nos velhos trilhos, o que evidencia o papel vital que
desempenham os factores internos na mudança estrutural. Neste sentido,
poder-se-ia sustentar que:
i) se a crise for dura e suficientemente longa;
ii) se existirem condições internas adequadas,
poder-se-ia esperar que a crise mundial precipitasse em alguns países da
América Latina "a crise e o cancelamento do modelo neoliberal".
Mas, quais seriam essas "condições internas adequadas"?
Primeiro, dispor de certa base industrial e, como mínimo, ter tido a
experiência de um desenvolvimento industrial prévio. E advirta-se
que os maiores países da região, Argentina, Brasil e
México, cumprem sobejamente esta condição. Segundo, uma
situação de "crise nacional"; ou seja, de repulsa
generalizada do
statu quo.
Terceiro, a existência de classes sociais, como a burguesia industrial
e/ou o proletariado industrial, capazes de engendrar um projecto nacional, de
criar uma ampla frente ou bloco peIa mudança e de dirigir e hegemonizar
esse bloco. Poderia pensar-se que na ausência da terceira
condição nada se pode esperar, e apontamos o estado de virtual
"catalexia" em que parecem ter caído os potenciais
"coveiros" do modelo. Não obstante, a mesma experiência
da América Latina com a crise de 1929-1933, mostra-nos alguns
comportamentos que convém reter. Com a sua habitual lucidez,
Aníbal Pinto apontava que a crise colocou um dilema muito claro e
dramático às economias latino-americanas: resignar-se à
crise e "encolher" os seus sistemas, em conformidade com a
restrição das transacções externas ou buscar outro
emprego para os seus recursos ociosos a fim de gerar rendimentos e satisfazer
em alguma medida os níveis e componentes da procura
pré-existente. Num primeiro momento, parece ter havido uma
inclinação para o primeiro caminho. E uma prova disso pode
encontrar-se na porfiada manutenção do esquema monetário
tradicional, que implicava transmitir e redobrar a depressão do
comércio externo à economia doméstica, via aperto
monetário, redução da despesa pública,
tolerância do desemprego maciço, liberdade para a fuga de
capitais, etc. Mas estas medidas provisórias, geralmente santificadas
sob as bandeiras da "defesa da moeda sã", "cumprimento
das obrigações externas" e outras similares, não
duraram muito -- tal como os governos que as sustentavam. Ao transtorno
económico seguiram-se as convulsões sócio-políticas
e a estas uma viragem nas orientações oficiais. O nosso autor
distingue duas grandes orientações: uma, racionalizar e
regulamentar o uso das muito escassas divisas. Outra, a
preocupação
em minorar as consequências da crise exterior, valendo-se para isso de
arbítrios como a aquisição de excedentes não
exportáveis, programas extraordinários de obras públicas,
expansão do crédito, atribuição de subsídios
sociais. Em último caso, como se compreende, todos derivavam para a
sustentação dos níveis de ocupação e
rendimento e, em consequência, da procura efectiva. À la monsieur
Jourdain, praticou-se o "keynesianismo" sem o saber.
[21]
Pois bem, os países que seguiram esta via (não foram todos)
terminaram por embarcar num novo padrão de acumulação. Mas
como sublinha Pinto, "não há projecto de
industrialização específico" e, por isso mesmo,
poderia falar-se de uma "fase de industrialização não
intencional". Mais ainda, diz-nos que
nos anos de crise e mesmo até ao final dos anos 30 é muito
difícil encontrar na literatura económica, académica ou
jornalística dos países actores, referências significativas
às transformações que se vinham operando. As
preocupações de curto prazo sejam as vinculadas à
balança de pagamentos, sejam as relacionadas com a defesa do emprego e
do rendimento dominam por completo.
[22]
A lição é clara: em certas circunstâncias,
não é necessário que opere um projecto político
explícito em favor de uma mudança estrutural. Simplesmente, a
defesa de posições económicas elementares vai provocando
um acumular de actos, medidas e consequências que desembocam num
reordenamento de maior envergadura. Aqui, bem poderia dizer-se, o mocho de
Minerva levanta voo bastante tarde. E o que já sucedeu na
história latino-americana bem poderia
mutatis mutandis
voltar a suceder. O caminho de saída, nas suas orientações
mais gerais, não é difícil de discernir: romper com a
liberalização das relações económicas
internas e externas, por em primeiro plano os interesses da indústria e
a acumulação produtiva, regular-controlar os movimentos do
capital dinheiro de empréstimo (nacional e internacional),
avançar para uma fase de industrialização mais pesada e
complexa. Em suma, retomar o projecto nacional burguês.
[23]
RECUPERAR E DESENVOLVER A TEORIA
Há um último aspecto
last, but not least
ao qual queríamos aludir. Uma simples descrição do
curso
económico costuma adiantar pouco. É a teoria, entendida como
"sistema", que faz falar os dados e que verdadeiramente nos permite
compreender a dinâmica dos processos económicos. Mas aqui, em
torno desta exigência vital, surgem pelo menos dois grandes problemas.
Primeiro, o relativo desdém com que nos nossos países
latino-americanos se costuma considerar a teoria. Muitas vezes ouvimos que
"na prática é outra coisa", que tal argumento é
"demasiado teórico" e frases semelhantes. A
incompreensão que por estes lados campeia é descomunal:
confunde-se a teoria com uma má teoria e, por isso, pouco ou nada se
capta das "tremendas vantagens práticas" que toda a boa teoria
pode acarretar. Na realidade, poderiamos perfeitamente defender que na
região, uma vida bastante jejuna no manejo de boas teorias em
resumo,
a ignorância é o que explica a escassa
valorização que se dá ao bem pensar. Em segundo lugar, e
quiçá cumprindo o papel mais destacado, está a nossa
mentalidade de "cidadãos dependentes", a qual se traduz numa
opinião muito comum, aquela que sustenta que a teoria é algo que
incumbe ao primeiro mundo e não a nós.
[24]
Ou seja, reproduzimos no plano intelectual o que também opera no plano
económico, quando pensamos que a produção de certos bens
de capital é algo que a nós não nos incumbe. Como nos diz
a lenga-lenga das "vantagens comparativas", os de Iá
produzindo máquinas e equipamentos de ponta e nós produzindo
tortillas,
frutas, petróleo e mão-de-obra barata. O problema que esta
dependência acarreta não é menor: as teorias que, no plano
económico, campeiam nos países centrais são teorias que em
boa medida têm como função esconder as realidades
económicas mais profundas e apresentar uma imagem adocicada e alienante
dos processos económicos.
[25]
Além de que, no fundamental, quando servem como focos orientadores das
estratégias e políticas económicas nos nossos
países, acabam por ser completamente funcionais na
reprodução do sistema de dominação e
subordinação hoje imperante à escala mundial. Em resumo,
são muito úteis para o interesse das grandes potências e
também muito daninhas aos interesses das grandes maiorias que vivem na
periferia. A moral disto é clara, ainda que nada fácil de
cumprir: da nossa situação ou perspectiva, devemos tentar
desenvolver, com o máximo rigor e ambição, o corpo
teórico capaz de iluminar as realidades mais profundas do mundo
contemporâneo. Pela mesma razão, pois uma coisa leva à
outra, temos de conseguir nos aproximar do "corpus teórico"
que, por ser verdadeiro, também nos sirva como "carta de
navegação" em águas que acabam por ser muito
tempestuosas. Nesta tarefa, note-se, não se trata de partir do zero e
renegar toda a herança acumulada pelo desenvolvimento das disciplinas
sociais, da economia em especial, o que seria perfeita loucura. Mas nesta
herança, há que saber discriminar entre os
corpus
que ajudam na tarefa e os que a dificultam ou impedem. Neste trabalho, a
opção é muito clara: apoiamo-nos nas grandes
contribuições da economia clássica e marxista, além
de assumir as contribuições dos grupos pós-keynesianos e
radicais contemporâneos. Desgraçadamente, na maioria dos
curricula
universitários, reproduz-se o pior dentre as visões mais
apologéticas ensinadas nos grandes centros do sistema. A
alienação aqui contida não é apenas brutal,
também assume uma conotação ridícula
lamentável, que recorda a do serviçal de libré que tenta
ir mais além do que o próprio patrão lhe exige.
Como já indicámos, neste livro defende-se que se aproximam tempos
tremendamente duros para a economia mundial. Por isso, como nos ensina a
experiência histórica, tempos ainda mais duros e turbulentos para
as sociedades periféricas, hoje mais desprotegidas que de costume diante
dos avatares da envolvente externa. Neste contexto, o esforço
teórico torna-se mais urgente que nunca. Do mesmo modo, a necessidade
de romper com os esgotados e completamente irrealistas paradigmas (como o
neoclássico), que dominam no "estabelecimento"
académico e político. O desafio é muito claro: ou o
assumimos, arrostando com as consequências práticas, ou
naufragaremos muito feiamente. E não se veja nisto um alarmismo
frívolo: o perigo e o alarme não estão nas nossas
cabeças, mas sim na própria realidade objectiva. É nela
que se tem vindo a incubar uma crise de grandes proporções e
seria muito lamentável que continuássemos como a boa
"avozinha" da história, aquela que tinha ouvidos e não
ouvia, que tinha olhos e não via.
_________
NOTAS
(1) Angus Maddison,
Phases of Capitalist Development,
Oxford University Press, New York, 1982, cap. I.
(2) Ver FMI,
World Economic Outlook,
Maio 2000, Washington, 2000.
(3) Supomos que entre 1750 e 1900 o rendimento per capita mundial se elevou
cerca de 50 %. Ou seja, teria crescido a
0.27 % ao
ano. Se calcularmos 200 dólares para 1750, para 2000 teríamos um
rendimento da ordem dos 1300 a 1400 dólares.
(4) A. Maddison,
Problemas del crecimiento económico de Ias naciones,
Ariel, México, 1996, p. 174.
(5) Paul Bairoch, em P. Bairoch & M. Levy-Leboyer (eds.), "Disparities in
Economic Development since the Industrial Revolution", Londres, 1981, p.
7. Citado por Maddison,
Problemas del crecimiento
,
op. cit.
(6) A noção que
hoje
se utiliza sobre um mundo que "agora" se "globaliza"
é
muito
enganadora. O chamado Terceiro Mundo esteve desde sempre muito ligado ao
primeiro.
(7) Certamente, que são os teóricos da dependência os que na
América Latina enfatizaram com grande força esta
condição. Falamos de autores como Th. Dos Santos, Ruy M. Marini,
A.G. Franck e outros.
(8) "Não é por acaso que se diz que "se chove nos
Estados Unidos, é preciso abrir o guarda-chuva no México".
(9) Seja-nos permitido assinalar que é o modelo económico vigente
no país o que o torna terrivelmente dependente das
flutuações económicas nos Estados Unidos. Neste sentido,
se de culpas se tratasse, é bastante torpe eleger como culpável a
recessão estado-unidense. Situação semelhante poderia ser:
em pleno Inverno você sai para a rua com o seu bebé de um ano
quase nu. O bebé adoece gravemente e lançamos a culpa para o
clima.
(10 )"A recessão é necessária para recordar
periodicamente aos trabalhadores a sua vulnerabilidade ao desemprego e,
portanto, restabelecer o controlo dos empresários no centro de
trabalho". Cfr. Bowles y Edwards,
lntroducción a la economía,
Alianza Editorial, Madrid, 1990. p. 236.
(11) Vejam-se as desagregações manipuladas nos capítulos 2
e 3.
(12) Bowles y Edwards.
op. cit.,
p. 236.
(13)
Ibidem,
p. 237.
(14)
The Economist
recomenda que é necessário obter um paraquedas e assinala que o
"amplo descenso dos Estados Unidos já causou uma recessão,
quiçá ainda não nos Estados Unidos, mas sim no
México, em Singapura, Taiwan e outros lugares". Cfr.
The Economist,
25 de Agosto de 2001.
(15) As importações dos Estados Unidos caíram uns 0,5 por
cento no quarto trimestre de 2000; caíram uns 5,0 por cento no primeiro
trimestre de 2001 e voltaram a cair, uns 7,7 por cento, durante o segundo
trimestre de 2001. Dados anuais. Cfr. White House,
Economic Statistíc, Briefing Room,
página web.
(16) Neste país, há poucas semanas, foram completamente
suprimidos os controles existentes sobre o movimento de capitais de curto
prazo. Ou seja, quando vai rebentar a tormenta, deito o impermeável e o
guarda-chuva para o lixo.
(17) É sabido que quase sempre se procura aumentar as
exportações e diminuir as importações: o que antes
se denominava conseguir o pleno emprego à custa dos vizinhos. Decerto
que, quando todos procura o mesmo, desemboca-se numa guerra tarifária e
cambial, em que todos perdem ainda mais e ninguém ganha. Mas o problema
vai mais além e aponta, não para um puro conflito entre
políticas económicas conjunturais, mas sim entre
estratégias ou "modelos" de desenvolvimento, algo bastante
mais difícil de conciliar.
(18) Ver José Valenzuela Feijóo,
Crítica del modelo neoliberal.
Facultad de Economía, UNAM, México, 1991.
(19) Para um exame detalhado, veja-se José Valenzuela Feijóo,
"Crecimiento y distribución en la fase neoliberal".
Apartes.
revista da Faculdade de Economia, Universidade Autónoma de Puebla, ano
VI, núm. 16. Janeiro-Abril de 2001.
(20) Por exemplo. os que poderiam ser prósperos industriais de
calçado, acabam por ser grandes importadores de calçado italiano
e espanhol.
(21) Aníbal Pinto,
Política y desarrollo,
Editorial Universitaria, Santiago de Chile, 1968, pp.31-32.
(22)
Ibidem,
p. 33.
(23) Supondo que não será a classe trabalhadora quem passa a
dirigir o processo. Provavelmente, as condições para esta via,
bastante mais exigente, não estarão ainda maduras.
(24) O qual se chega a racionalizar alegando toscamente de que lá
são "frios e racionais", enquanto nós cá somos
"quentes e emocionais". A "divisão do trabalho"
é nítida: eles com o cérebro e nós com o
coração.
(25) "A falta de familiaridade com as belezas e ingenuidades da teoria
económica neoclássica é uma vantagem muito positiva para
compreender as relações monetárias e financeiras
internacionais", Cfr. reter Gowan,
The Global Cambie,
Verso, Londres, 1999, p. 5.
[*]
Economista chileno, professor da Universidade Metropolitana do México.
Tradução do Capítulo I do seu ensaio
"Dos Crisis: Japón y Estados Unidos",
Universidade Autónoma Metropolitana do México, 1ª
edição, Novembro de 2003, 235 pp., ISBN 970-701-401-6.
Tradução de Carlos Coutinho.
Este estudo encontra-se em
http://resistir.info/
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