A periferia e as crises no centro

por José Valenzuela Feijóo [*]

. CAPITALISMO: CRESCIMENTO E DESIGUALDADE

O poder dinâmico do capitalismo é um facto histórico indesmentível. Mesmo Marx e Engels, esses grandes inimigos do sistema, não hesitaram em o reconhecer em muitas célebres páginas do Manifesto Comunista. O capital expandiu-se até às regiões mais recônditas do planeta e, ao mesmo tempo, foi capaz de impulsionar as forças produtivas do trabalho a níveis nunca antes alcançados e nem sequer sonhados.

Consideremos, por exemplo, o caso da Europa. Maddison [1] calculou que entre o ano 500 d.C. e 1500 (ou seja, um período dominado basicamente pelo modo de produção feudal), o produto interno bruto (PIB) e a população terão crescido anualmente 0,1 %; por conseguinte, o PIB per capita não se teria alterado, situando-se na ordem dos 215 dólares (dólares de 1970). Até 1700, o PIB per capita teria atingido 265 dólares (crescendo a 0,1 % ao ano entre 1500 e 1700) e até 1820 teria rondado os 411 dólares. Logo, entre 1820 e 1980, anos de claro domínio da forma capitalista, o rendimento per capita cresceu em média 1,6 % ao ano, chegando a um nível de 5210 dólares em 1980. Em resumo, as taxas percentuais de crescimento do rendimento per capita seriam:

500-1500…..…….....0.0
1500-1700…………..0.1
1700-1820…………..0.2
1820-1980…………..1.6

A aceleração é clara e impressionante. E se bem que a Europa tenha sido uma região privilegiada em matéria de crescimento, o resto do mundo também cresceu a ritmos nunca antes conhecidos. No século XX, por exemplo, estima-se que o PIB mundial se multiplicou por 19; a população multiplicou-se quase por 4 e em consequência, o PIB por habitante terá sido multiplicado quase por cinco. [2] De facto, temos que no quarto de milénio decorrido desde que o capitalismo iniciou, aproximadamente, a sua marcha triunfal, o rendimento per capita se teria elevado, em termos absolutos, na ordem de 6 vezes mais que tudo o conseguido na história anterior. [3] Decerto que as estimativas quantitativas desta ordem são reconhecidamente complicadas e podem ser pouco seguras. Não obstante, mais ajustes, menos ajustes, é indiscutível o tremendo impacto dinamizador do capitalismo.

Deparamo-nos ainda com outro traço do sistema que não é menos importante. Desde o seu início, o capitalismo revela uma forte vocação de expansão e domínio universal. Ou seja, a partir dos seus locais de origem – na Europa ocidental – vai-se estendendo a praticamente todos os lugares do globo terrestre. Mas, ao fazê-lo, não vai dinamizando e igualando os níveis de desenvolvimento das diversas regiões do planeta. Muito pelo contrário, vai provocando uma desigualdade crescente, a ponto de que termina por "cindir o mundo capitalista em dois grandes pólos: o desenvolvido e o subdesenvolvido". Há dois séculos, por exemplo, o desnível de rendimentos entre as zonas hoje desenvolvidas e as que hoje formam o denominado Terceiro Mundo, situava-se, quando muito, na ordem de um para dois. Mas esta relação poderá ser exagerada: Maddison, sobre a base de uma pequena amostra de países, defende que até 1760, o rendimento per capita do pólo subdesenvolvido pode ser da ordem dos 77 por cento do vigente em França e na Grã-Bretanha. [4] Pior ainda, segundo Bairoch, "é muito provável que em meados do século XVIII o nível de vida médio na Europa fosse um pouco mais baixo que no resto do mundo" [5] . Hoje, chegou-se a um desnível que se situa à volta de 1 para 12 ou mais. Se nos apoiarmos em dados do FMI, podemos comparar o rendimento per capita das principais regiões atrasadas com o do país mais adiantado em cada momento (Reino Unido em 1870 e Estados Unidos em 2000) e obtemos o que mostra o quadro 1.

Quadro 1- Desníveis de desenvolvimento
ano 1870 2000
País mais adiantados 100,0 100,0
América Latina 23,3 20,1
Ásia (excepto China e Japão) 19,0 8,3
África 14,7 4,8
Fonte: FMI.

Em suma, no decurso do seu desenvolvimento histórico o capitalismo foi evidenciando dois traços muito distintivos:
a) elevados ritmos de crescimento, completamente desconhecidos na história anterior;
b) padrões de distribuição do rendimento cada vez mais regressivos. Ou seja, crescente desigualdade económica entre as nações. Por isso, trata-se de um sistema cindido em dois pólos: o desenvolvido (ou "centro") e o subdesenvolvido (ou “periferia” ).

A PERIFERIA E A SUA CONDIÇÃO SUBORDINADA

Desenvolvimento e subdesenvolvimento não funcionam como compartimentos estanques. As conexões entre ambos os pólos sempre foram vastas, densas e muito importantes para o funcionamento de um e do outro. [6] No plano económico, o dado mais decisivo reside na constante transferência de excedentes do pólo subdesenvolvido para o pólo desenvolvido do sistema, o que facilita o crescimento do segundo e dificulta bastante a acumulação e o crescimento na periferia. Ou seja, gera-se uma situação em que operam relações que impulsionam poderosamente a reprodução da bipolaridade mencionada. Não cabe no âmbito deste trabalho discutir este conjunto de problemas, mas para os nossos propósitos, bastaria sublinhar o seguinte: o crescimento dos países subdesenvolvidos é subordinado ao crescimento dos países desenvolvidos. E isto não apenas no sentido qualitativo que indicamos. Também num sentido quantitativo mais restrito e directo. Ou seja, o pólo desenvolvido funciona como locomotiva e o subdesenvolvido como um vagão, que avança pelo menos mais rápido (ou mais lento) conforme a locomotiva circule mais depressa (ou mais devagar). Usando outra expressão, podemos dizer que o pólo desenvolvido funciona como variável independente e o pólo subdesenvolvido como variável dependente. Em suma, a dinâmica da periferia subordina-se à dinâmica dos grandes centros capitalistas. [7]

Se nos situarmos na perspectiva do pólo subdesenvolvido, constatações como as atrás esboçadas (que aliás, são muito elementares), desembocam numa exigência clara: a adequada compreensão das nossas realidades "terceiro-mundistas" obriga-nos a entender também as realidades que operam no pólo desenvolvido do sistema. E isto por uma razão muito simples e que nada tem que ver com ocos afãs de erudição, de enciclopedismo ou outros. A exigência é simplesmente pragmática: dado o impacto que o centro tem na periferia, se não entendemos o que acontece no centro, pouco ou nada entenderemos sobre o que acontece na periferia. Quer dizer, nos nossos mundos, nas nossas economias. [8] Temos à mão um exemplo em curso: a economia mexicana, na proposta presidencial, devia ter crescido na ordem dos 5 por cento ou mais durante 2001, mas de facto, entrou numa forte recessão e o PIB começou a descer. A razão directa fundamental (que não a única) é a quebra da actividade económica nos Estados Unidos. Ou seja, a recessão estadunidense (que se traduz em menores importações de produtos mexicanos pelos Estados Unidos) arrastou o México, provocando no país um impacto negativo multiplicado. Para este impacto, o movimento "externo" encontrou ainda um campo muito propício no interior da nossa economia, ou seja, no seu padrão de funcionamento actual. [9]

No que atrás notamos radica – por certo – uma das motivações deste livro: é imprescindível compreender o curso que segue a economia nos países centrais para entender o que acontece – e virá a acontecer – nas nossas próprias economias.

AS CRISES: CÍCLICAS E ESTRUTURAIS

No desenvolvimento do sistema, manifesta-se outro dado ou traço substantivo que convém assinalar. Falamos das "crises": as de ordem cíclica e as de carácter estrutural.

Se observamos a história dos países capitalistas, há algo que salta à vista: a trajectória da economia faz lembrar o perfil da montanha russa. Há momentos em que o nível da actividade económica se eleva mais e mais para logo passar a uma fase em que o rendimento nacional estagna ou cai. Ou seja, encontramo-nos face a uma sucessão contínua de fases de "auge" e fases de "recessão". Por isso se fala de comportamento cíclico e de "crises cíclicas", entendendo por estas aquele momento em que se dá o ponto ou momento de inflexão da curva económica, se cancela o auge e se entra na fase recessiva.

Naquele auge operam certos processos -- como a baixa do desemprego, o maior crescimento dos salários até um nível em que começam a subir mais que a produtividade, a consequente descida da taxa de mais-valia, uma eventual menor disciplina de fábrica, o preço mais elevado das matérias-primas, uma deterioração das posições financeiras de empresas e famílias, etc – que, ao fim de certo lapso, desembocam numa descida da taxa de lucro. Esta baixa arrasta a acumulação e, por esta via, o PIB acaba por descer. Em resumo, é o próprio auge que produz a crise e a consequente recessão. Mas o processo não pára aqui; um dos seus traços mais evidentes é o facto de a fase recessiva, pelas suas próprias características (como o grande aumento do desemprego, a queda do preço das matérias-primas, etc), usualmente diluir as condições que precipitaram a queda da taxa de lucro. [10] Ou seja, recompõe-na e por este meio, regenera o sistema, volta-se a estimular a acumulação e a economia lança-se para um novo pico. Neste sentido, também se pode dizer que a recessão acaba por engendrar um novo pico. Assim, uma e outra vez. A chave da questão reside na taxa de lucro, a qual funciona como regulador de todo o movimento. Em termos muito simples, no pico a sequência básica seria do tipo:


D Lucro (taxa) à D Investimento à D PIB à D Emprego à D Salários

Logo, o aumento salarial e outros factores acabam por "reduzir" a taxa de lucro. Movimento, valha a verdade, que se pode precipitar por muito diversas vias, pois, na taxa de lucro, influem diversos factores. [11] Mas, uma vez verificada esta baixa, tem início uma sequência parecida com a atrás indicada, se bem que com uma direcção diferente: cai o investimento, cai o PIB, cai o emprego e caem os salários, etc. No entanto, é este mesmo processo de quebra e de atonia que começa a preparar as condições da recuperação. Como notam Bowles e Edwards, as recessões têm uma importante missão a cumprir: manter os lucros. As recessões produzem-se quando milhares de empresas tomam decisões independentes de não investir, devido a que a taxa de lucro esperada não é suficientemente elevada. A recessão produz desemprego, uma menor procura de matérias-primas importadas e outras transações; tudo isso serve para restabelecer a expectativa de maiores lucros no futuro. [12] Se as coisas se passam assim, fala-se de um ciclo "bem comportado", ou seja, a recessão permite inaugurar um novo auge. Não obstante, de vez em quando, a recessão falha no cumprimento das suas funções, a taxa de lucro não melhora se:
1- a melhoria nas condições de custo não consegue superar o impacto negativo gerado pelo decréscimo da procura global e, por isso, o investimento não reage;
2- as condições dos custos não melhoram (ou não o fazem na medida necessária) durante a recessão. Logo, "em ambos os casos a recessão pode piorar a situação, em vez de a melhorar; esta situação é similar à que sucede com o corpo humano quando o sistema imunológico deixa de funcionar e em vez de combater uma infecção, a alimenta e a difunde". [13] Neste contexto fala-se de um "ciclo perverso" ou mal comportado. A recessão cíclica não é capaz de regenerar a acumulação, e isto nos indica que o sistema requer uma cirurgia de maior alcance, impulsionando mudanças de ordem estrutural. Mantém-se naturalmente, a matriz capitalista básica (por isso não falamos de crise do sistema ou "crise terminal" do modo de produção), mas é preciso avançar de uma etapa a outra. Se quisermos, entra na transição de um determinado "padrão de acumulação" a outro padrão de acumulação. Neste caso, falamos de "crise estrutural" e, pela mesma razão, de "mudança estrutural".

Em muitas ocasiões, a crise estrutural sobrepõe-se a uma crise cíclica e, pela mesma razão, esta se agudiza e assume características mais graves. Por exemplo, a famosa grande crise de 1929-1933, engloba ambos os processos. No fim, o sistema entra numa nova forma de funcionamento ou novo padrão de acumulação, o que dominará os "anos dourados" do pós-guerra (anos 50 e 60 do século XX).

Para o objectivo deste trabalho, queríamos destacar quatro pontos determinantes.

Primeiro - recordar que as crises cíclicas têm origem nos países centrais e se transmitem daí à periferia. Neste sentido, podemos falar de um "ciclo importado". Durante estas crises, os nossos países não só sofrem as consabidas fortes quedas nos níveis de actividade económica. Juntamente, acentua-se o mecanismo dos "termos de intercâmbio não equivalentes" e, pelos mesmos motivos, a transferência de excedentes a favor do centro. Quer dizer, as crises reproduzem de forma ampliada a bipolaridade centro-periferia atrás mencionada.

Segundo - a emergência de crises estruturais nos países centrais não provoca apenas transformações estruturais - i.e. emergência de novos padrões de acumulação - nesses países. Por sua vez, geram-se modificações substanciais na relação centro-periferia e modificações no padrão de acumulação periférico. Por exemplo, a crise de 1929-1933 acaba por precipitar em boa parte dos países latino-americanos o cancelamento do modelo "primário-exportador" e a emergência de um padrão de substituição, conhecido como "industrialização baseada na substituição de importações" ou modelo de "desenvolvimento para dentro". Neste sentido, bem podemos pensar que se no centro se precipitar uma crise de maiores proporções, de carácter estrutural, a emergência de uma nova ordem também acarretará a liquidação do padrão neoliberal na América Latina.

Terceiro - em cada padrão de acumulação uma determinada fracção do capital se situa sempre em posições hegemónicas no bloco de poder, e isso em função das mesmas características do padrão de acumulação vigente. A razão é simples, os interesses de cada fracção podem ser convergentes ou não, adequados ou não, com o funcionamento do padrão. No caso do padrão neoliberal, o que vemos é o largo predomínio do capital financeiro especulativo. Ao mesmo tempo, a não menos clara subordinação do capital industrial e produtivo. Logo, se se vai avançar para um novo padrão de acumulação, também podemos esperar que junto com a anulação do padrão até agora vigente seja anulado o lugar de direcção que tem vindo a ser ocupado pela fracção financeira do capital. Ou seja, assistiríamos ao desalojar da fracção dominante no cume do poder. Pela mesma razão, poderia esperar-se que o segmento industrial voltasse a retomar o controle do poder. Ou seja que o sistema procure abandonar a sua actual propensão parasitária e especulativa e passe a favorecer a acumulação produtiva.

Quarto - as crises e mudanças de ordem estrutural que se sucedem nos países centrais, em não poucas ocasiões provocam a substituição da potência hegemónica. A crise de 1929-1933, por exemplo, acaba por sepultar definitivamente a hegemonia britânica (que estava já muito posta em causa desde o início do século), substituindo-a pela hegemonia estadunidense. Neste contexto, convém acrescentar que a crise e os deslocamentos hegemónicos pressupõem uma séria "redefinição de esferas de influência" entre as grandes potências imperiais. Trata-se, por isso, de momentos de grande tensão, em que se agudizam as contradições e conflitos e emergem -- com a força de uma verdadeira lei --, os conflitos militares abertos. Quer dizer, a guerra na sua acepção mais clássica: como continuação da política por outros meios. Ou ainda, se quisermos usar uma fórmula mais contemporânea: a guerra dos mísseis em substituição da guerra das mercadorias e capitais.

APROXIMA-SE UMA GRANDE CRISE MUNDIAL?

A crise de 1929-1933 e a quase imediata Segunda Guerra Mundial marcam a transição para um novo ordenamento capitalista. Roosevelt fala de um New Deal e Keynes propõe uma nova teoria e novas formas de abordar a política económica. O sistema, nas décadas que sucedem à Segunda Guerra Mundial, vive uma bonança nunca antes conhecida na história do capitalismo, que os historiadores começaram já a denominar de "anos dourados". Os ritmos de crescimento são elevados, a produtividade e os salários crescem e inclusive o movimento cíclico parece notavelmente suavizado. E como seria de esperar, alguns começam a defender que o ciclo e as crises são coisas do passado. Ao longo dessas décadas, a Europa ocidental reconstroi-se e cresce a taxas muito elevadas. No Japão, a velocidade do crescimento é descomunal e apenas comparável à obtida por países submetidos a uma gestão planificada, como a URSS e outros de natureza semelhante. Os próprios Estados Unidos, embora cresçam bastante menos, fazem-no aos ritmos mais altos da sua história.

Os anos setenta marcam uma transição e nos anos oitenta emerge um quadro bastante diferente. O crescimento abranda e o desemprego aumenta. Mesmo assim, nas cimeiras da economia observa-se que o capital financeiro assume um papel cada vez mais dominante. Os Estados Unidos quase não crescem e a Europa também cai numa quase estagnação. O Japão cresce também menos, mas a ritmos entre 4 e 5 por cento, que à escala mundial são elevados. Ao mesmo tempo, os "tigres" do sudeste asiático, manejando um modelo bastante semelhante ao japonês, crescem a ritmos "impróprios" para o Terceiro Mundo. Em boa medida, são estes países (incluindo o Japão, a China e a Índia) que funcionam como locomotivas e impulsionam, de algum modo o crescimento mundial. Nos anos noventa, a economia japonesa desaba ou, melhor dizendo, entra num longo período de letargia. A Europa também não cresce e até os "tigres" mergulham numa crise profunda. E, de maneira um tanto surpreendente, assistimos ao relançamento da economia estadunidense. Especialmente na segunda metade da década, o crescimento dos Estados Unidos alcança níveis que se aproximam dos 4 por cento. Não se trata, apesar dos reclames publicitários e/ou das fantasias delirantes, de um crescimento muito espectacular, mas bastou para impedir que a economia mundial se precipitasse numa recessão profunda. Em suma, dos grandes centros económicos mundiais: a Zona Euro, Japão e sudeste asiático, os Estados Unidos foram os únicos que impulsionaram a economia mundial.

As últimas duas décadas do século passado caracterizaram-se por tempos de crescimento relativamente lento. Mas, se para cima (o dinamismo) não há muito o que admirar, verifica-se que para baixo (a estagnação) não ocorreram crises de ordem maior. Do ponto de vista do crescimento, podemos constatar que o sistema, de uma maneira ou de outra, contou com a existência de algumas regiões económicas que foram capazes de gerar algum dinamismo. Ou, o que vem a ser quase equivalente, não se registaram crises sincronizadas ou fases de estagnação convergentes. Quando emerge a crise de 1991, por exemplo, o PIB cai nos Estados Unidos, mas o Japão, o sudeste asiático e mesmo a Alemanha, mantêm um crescimento firme. Logo, como já fizemos notar, nos anos noventa caíram a Europa e o Japão, mas os Estados Unidos passaram a funcionar como força motriz. Ou seja, transmitiram dinamismo e compartilharam com o resto do mundo, em algum grau, os frutos do seu longo auge.

Não obstante:

  • a Europa não consegue sair do torpor e a Alemanha começa a entrar num novo momento crítico;
  • o Japão não consegue superar os seus problemas. Parece ter-se transformado num exemplo vivo do "estado estacionário" que imaginaram os grandes clássicos (Ricardo, Mill, etc) e no último ano começa a cair numa recessão sensu stricto;
  • a parte mais grave do “filme”: o "bom rapazinho" adoeceu e caiu em estado de coma. Os Estados Unidos começam a precipitar-se na recessão e esta poderá ser profunda e bastante longa.

Em suma, assistimos a uma "convergência de crises" entre as grandes potências do sistema. Pela mesma razão, a partir deste simples facto em que as crises nacionais se retro-alimentam, podemos desde já prognosticar a emergência de um período muito duro. Em especial, como sempre sucedeu, para os países do bloco subdesenvolvido. Convém acentuar mais uma vez: a recessão no centro desloca-se muito rapidamente para a periferia. [14] Ao caírem os níveis de actividade económica v.gr. nos Estados Unidos, baixam também as suas importações, [15] o que se traduz num forte decréscimo das exportações latino-americanas, além de uma deterioração nos seus termos de troca (ou seja, o preço das nossas exportações cai, enquanto o preço do que importamos não se move ou aumenta). Logo, o decréscimo da nossa capacidade para importar traduz-se num decréscimo generalizado da actividade económica: o rendimento ajusta-se ao menor nível das nossas importações. A crise, assim engendrada, será tanto mais profunda quanto mais frágeis forem as correspondentes economias nacionais. A fragilidade, por sua vez, costuma associar-se à penetração do dogma neoliberal. E se o país afectado for relativamente grande, o "efeito de contágio" será tanto mais devastador. Pensemos, por exemplo, no caso da Argentina, um país pateticamente embarcado num tipo de política económica (cambial, sobretudo) que é simplesmente suicida. O rompimento da paridade cambial fixa (esse desastrado regresso ao padrão ouro ensaiado naquele país) é inevitável e provocará um verdadeiro maremoto no Brasil, no Uruguai, Paraguai, Bolívia, Chile [16] e outros países latino-americanos. Mas também terá um forte efeito de ricochete nos próprios Estados Unidos. Resumindo, a periferia também pode passar a desempenhar um papel importante no agravamento da crise mundial.

Na crise, podemos esperar que a variável financeiro-especulativa desempenhe um papel destacado. Esta intervenção não é novidade: é antes uma espécie de regra, pois aparece, de um ou de outro modo, em praticamente todos os fenómenos de crise. Não obstante, assistimos nas últimas décadas a uma brutal expansão do capital fictício e dos movimentos especulativos que lhe são próprios. Como, por outro lado, se vem dando um notório processo de "desregulação financeira", a volatilidade destes capitais transmite-se em forma amplificada ao resto da economia. Este factor joga agora como um factor de desestabilização adicional e que deveria aprofundar tanto a duração, como a amplitude da crise.

O problema, em todo o caso, não se limita à crise entendida como um fenómeno puramente económico. Também se pode detectar (mesmo que não seja ainda muito visível) o paulatino desenvolvimento de interesses objectivos, cada vez mais opostos, entre as grandes potências, como por exemplo entre os Estados Unidos e o Japão. Na crise, o que pode ser a via de saída para uns, pode ser mortal para o outro [17] e vice-versa. Isto acarreta uma consequência iniludível e bastante explosiva: a combinação ou mistura do conflito político com o conflito económico.

Mas há mais. Se examinamos com um mínimo de cuidado o período que precedeu a grande crise de 1929-1933, encontraremos semelhanças mais que inquietantes com a situação actual. Temos uma distribuição do rendimento muito regressiva (assente em muito elevadas taxas de mais-valia, sérios problemas do lado da procura efectiva, alto peso do capital especulativo e uma confiança suicida nas virtudes do "livre mercado". Por vezes, tanto hoje como no passado, cremos estar ouvindo de novo o doutor Pangloss. Hoje, os economistas neoclássicos continuam a defender que o sistema se ajusta espontaneamente ao pleno emprego e alguns deles (para não dizer todos), negam que a bolsa esteja a ser assediada por uma vaga especulativa de grandes proporções. Como para recordar o muito insigne Irving Fisher (que é como quem diz o pai ou avô dos actuais Barro, Lucas e companhia), que dois ou três dias antes da quarta-feira negra de Wall Street em 1929, assegurou que os valores bolsistas já tinham encontrado um piso "firme e permanente".

Surge então uma "possibilidade": que se desencadeie uma crise de maiores proporções. Esta, podemos esperar, deveria abarcar não só a esfera económica, como também a política e a militar. E não apenas o Primeiro Mundo, mas também o Terceiro. Mais ainda, se pensarmos que as grandes potências vêm praticando cada vez com mais força o que podemos chamar conflitos "hipócritas" e "limpos". Hipócritas porque não lutam directamente nos próprios territórios, mas nos campos de batalha do Terceiro Mundo. Limpos, entre aspas, porque – depois da dura lição do Vietnam – não são os seus soldados que vão ao campo de batalha (excepto como aviadores), mas sim os novos gurkas do século actual: albaneses, croatas, alguns árabes, turcos, etc. Ou seja, as guerras dos de cima, como nos tempo da Mãe Coragem, assolam e degolam os de baixo. Em conclusão: poderíamos estar a chegar a uma situação de transformação estrutural, de redefinição de esferas de influência e de possíveis conflitos militares de primeira ordem. Sublinhemos: trata-se de uma possibilidade. Não de algo fatal.

Tentarei de seguida analisar as vias que conduziram à situação actual e, pela mesma razão, avaliar as possibilidades que o presente encerra.

A CRISE E A MUDANÇA ESTRUTURAL NA PERIFERIA

Na América Latina, os anos oitenta e noventa são anos de predomínio neoliberal e também de crescimento muito lento. Existem razões de sobra para supor que a quase estagnação da economia é determinado pelas características mais intrínsecas do modelo neoliberal. [18]

Quando se examina este padrão de funcionamento, hoje tão expandido, existe bastante consenso sobre o facto que aprofundou a desigualdade da norma distributiva na região, alargando ao mesmo tempo o raio de abrangência da pobreza. Inclusive os defensores do padrão, tendem a reconhecer este problema. Pelo contrário, quando se fala de crescimento económico, podemos observar que inclusive alguns detractores do modelo pensam que neste aspecto não há problemas. Não obstante, é bastante claro (para além da grande e ruidosa propaganda) que em termos de acumulação produtiva e ritmos de crescimento, os resultados são muito deficientes. [19] Por exemplo, entre 1950 e 1973 – anos em que domina o padrão da industrialização de substituição (das importações - NT), padrão que os neoliberais consideram "populista", "ineficiente" e outras coisas –, o PIB per capita da região latino-americana cresceu em média 2,5 por cento ao ano (nos Estados Unidos, no mesmo período, a taxa de crescimento foi de 2,4 por cento). A seguir, entre 1973 e 2000, anos em que tende a predominar o esquema neoliberal, o PIB per capita cresce a uns mirrados 0,8 por cento de média anual (nos Estados Unidos, a taxa de crescimento foi de 1,85 por cento ao ano). Com os ritmos do "populismo", o PIB por habitante duplica ao fim de 28 anos. Aos ritmos neoliberais, duplica ao fim de 88 anos. Além disso, se no período anterior o ritmo da região acompanhava o dos Estados Unidos, podemos ver que no período neoliberal se acentua a disparidade com a grande potência do norte.

Poder-se-ia pensar que no dito período, a estagnação e/ou crescimento lento foi a norma. Assim foi, de certo modo. Mas, em todo o caso, a região latino-americana encolhe-se ainda mais. No quadro seguinte comparamos o PIB per capita da América Latina com o dos Estados Unidos (a "grande potência" da época) e com o da China continental, um país que não sendo já socialista, em todo o caso representa um regime económico em que o Estado ainda tem uma intervenção e peso muito elevados.

Quadro 2 - A América Latina e o seu atraso relativo na fase neoliberal *
  1973 2000 Incremento (%) Taxa anual de crescimento (%)
Estados Unidos 16 607 27 272 64,2 1.85
China 1 063 6 273 590,0 5.9
América Latina 4 384 5 481 25,0 0.8
Fonte: FMI.
*PIB per capita, em dólares dos Estados Unidos de 1990.


Como vemos, a América Latina cresce bastante menos que os Estados Unidos – neste sentido, poderíamos dizer que a região se "sub-desenvolve" – e muitíssimo menos que a China continental. Portanto, podemos concluir que o neoliberalismo não só piora a distribuição do rendimento, como também provoca ritmos de crescimento muito baixos.

Para os nossos objectivos, devemos destacar a quase estagnação neoliberal. Neste contexto, convém trazer à colação uma hipótese económico-política. Num sentido muito geral, podemos postular que a burguesia, a industrial em particular, necessita de se reproduzir em forma ampliada, o que implica altos ritmos de acumulação e de crescimento. Por isso, se a economia não cresce, deveríamos esperar uma recusa seca, ou oposição, por parte da burguesia industrial. Por outro lado, os problemas de emprego insuficiente, baixos salários e distribuição muito regressiva do rendimento, devem transformar a classe operária industrial numa classe activamente oposta ao modelo.

Por certo, um modelo que agrava a distribuição do rendimento e que gera tendências à estagnação, dificilmente pode legitimar-se e consolidar-se. Deveríamos então esperar:

  • uma oposição crescente e cada vez mais extensa;
  • que essa oposição seja encabeçada pela burguesia industrial autóctone e/ou pela classe trabalhadora.

No entanto, temos que:

  • é verdade que a oposição se alarga, mas apenas como um "estado de ânimo". Ou seja, não é capaz de se transformar em força política decisiva;
  • as classes sociais que uma análise genérica nos indica como potenciais sujeitos dirigentes da oposição ao neoliberalismo, parecem diluir-se, tornam-se passivas e não revelam nenhuma capacidade (nem sequer vontade) hegemónica.

De facto, temos que é o próprio sistema neoliberal que decompõe e debilita os seus potenciais coveiros. Seduz a burguesia industrial com o rebuçado dos baixos salários, incorpora-a nas actividades especulativas e/ou comerciais [20] e vai-lhe cerceando a vocação produtora. Ou seja, começa a transformá-la numa autêntica "burguesia intermediária" (ou "compradora", como se dizia nos velhos tempos). Quanto à classe operária, a débil acumulação e a abertura externa irrestrita, reduz o peso dos grandes conglomerados industriais e, por isso, o proletariado industrial perde peso quantitativo e qualitativo. Acrescem a isto os fenómenos de "flexibilização laboral"; ou seja, do trabalho precário e temporário, que transforma os operários em autênticos free-lancer's, desprovidos de toda a força política.

Neste contexto, retomemos o problema da crise e do seu impacto. Se recordarmos a crise de 1929-1933, podemos comprovar que em alguns países da América Latina esta precipita a crise do modelo "primário-exportador". Ou seja, uma mudança no padrão de acumulação vigente na época. Mas tal mutação não teve lugar em todos os países latino-americanos. O México e os países do cone sul, incluindo o Brasil, avançaram para a "industrialização substitutiva". Mas os países centro-americanos, verbigracia, mantiveram-se nos velhos trilhos, o que evidencia o papel vital que desempenham os factores internos na mudança estrutural. Neste sentido, poder-se-ia sustentar que:

i) se a crise for dura e suficientemente longa;
ii) se existirem condições internas adequadas,
poder-se-ia esperar que a crise mundial precipitasse em alguns países da América Latina "a crise e o cancelamento do modelo neoliberal".

Mas, quais seriam essas "condições internas adequadas"? Primeiro, dispor de certa base industrial e, como mínimo, ter tido a experiência de um desenvolvimento industrial prévio. E advirta-se que os maiores países da região, Argentina, Brasil e México, cumprem sobejamente esta condição. Segundo, uma situação de "crise nacional"; ou seja, de repulsa generalizada do statu quo. Terceiro, a existência de classes sociais, como a burguesia industrial e/ou o proletariado industrial, capazes de engendrar um projecto nacional, de criar uma ampla frente ou bloco peIa mudança e de dirigir e hegemonizar esse bloco. Poderia pensar-se que na ausência da terceira condição nada se pode esperar, e apontamos o estado de virtual "catalexia" em que parecem ter caído os potenciais "coveiros" do modelo. Não obstante, a mesma experiência da América Latina com a crise de 1929-1933, mostra-nos alguns comportamentos que convém reter. Com a sua habitual lucidez, Aníbal Pinto apontava que a crise colocou um dilema muito claro e dramático às economias latino-americanas: resignar-se à crise e "encolher" os seus sistemas, em conformidade com a restrição das transacções externas ou buscar outro emprego para os seus recursos ociosos a fim de gerar rendimentos e satisfazer em alguma medida os níveis e componentes da procura pré-existente. Num primeiro momento, parece ter havido uma inclinação para o primeiro caminho. E uma prova disso pode encontrar-se na porfiada manutenção do esquema monetário tradicional, que implicava transmitir e redobrar a depressão do comércio externo à economia doméstica, via aperto monetário, redução da despesa pública, tolerância do desemprego maciço, liberdade para a fuga de capitais, etc. Mas estas medidas provisórias, geralmente santificadas sob as bandeiras da "defesa da moeda sã", "cumprimento das obrigações externas" e outras similares, não duraram muito -- tal como os governos que as sustentavam. Ao transtorno económico seguiram-se as convulsões sócio-políticas e a estas uma viragem nas orientações oficiais. O nosso autor distingue duas grandes orientações: uma, racionalizar e regulamentar o uso das muito escassas divisas. Outra, a preocupação

em minorar as consequências da crise exterior, valendo-se para isso de arbítrios como a aquisição de excedentes não exportáveis, programas extraordinários de obras públicas, expansão do crédito, atribuição de subsídios sociais. Em último caso, como se compreende, todos derivavam para a sustentação dos níveis de ocupação e rendimento e, em consequência, da procura efectiva. À la monsieur Jourdain, praticou-se o "keynesianismo" sem o saber. [21]

Pois bem, os países que seguiram esta via (não foram todos) terminaram por embarcar num novo padrão de acumulação. Mas como sublinha Pinto, "não há projecto de industrialização específico" e, por isso mesmo, poderia falar-se de uma "fase de industrialização não intencional". Mais ainda, diz-nos que

nos anos de crise e mesmo até ao final dos anos 30 é muito difícil encontrar na literatura económica, académica ou jornalística dos países actores, referências significativas às transformações que se vinham operando. As preocupações de curto prazo – sejam as vinculadas à balança de pagamentos, sejam as relacionadas com a defesa do emprego e do rendimento – dominam por completo. [22]

A lição é clara: em certas circunstâncias, não é necessário que opere um projecto político explícito em favor de uma mudança estrutural. Simplesmente, a defesa de posições económicas elementares vai provocando um acumular de actos, medidas e consequências que desembocam num reordenamento de maior envergadura. Aqui, bem poderia dizer-se, o mocho de Minerva levanta voo bastante tarde. E o que já sucedeu na história latino-americana bem poderia – mutatis mutandis – voltar a suceder. O caminho de saída, nas suas orientações mais gerais, não é difícil de discernir: romper com a liberalização das relações económicas internas e externas, por em primeiro plano os interesses da indústria e a acumulação produtiva, regular-controlar os movimentos do capital dinheiro de empréstimo (nacional e internacional), avançar para uma fase de industrialização mais pesada e complexa. Em suma, retomar o projecto nacional burguês. [23]

RECUPERAR E DESENVOLVER A TEORIA

Há um último aspecto – last, but not least – ao qual queríamos aludir. Uma simples descrição do curso económico costuma adiantar pouco. É a teoria, entendida como "sistema", que faz falar os dados e que verdadeiramente nos permite compreender a dinâmica dos processos económicos. Mas aqui, em torno desta exigência vital, surgem pelo menos dois grandes problemas. Primeiro, o relativo desdém com que nos nossos países latino-americanos se costuma considerar a teoria. Muitas vezes ouvimos que "na prática é outra coisa", que tal argumento é "demasiado teórico" e frases semelhantes. A incompreensão que por estes lados campeia é descomunal: confunde-se a teoria com uma má teoria e, por isso, pouco ou nada se capta das "tremendas vantagens práticas" que toda a boa teoria pode acarretar. Na realidade, poderiamos perfeitamente defender que na região, uma vida bastante jejuna no manejo de boas teorias – em resumo, a ignorância – é o que explica a escassa valorização que se dá ao bem pensar. Em segundo lugar, e quiçá cumprindo o papel mais destacado, está a nossa mentalidade de "cidadãos dependentes", a qual se traduz numa opinião muito comum, aquela que sustenta que a teoria é algo que incumbe ao primeiro mundo e não a nós. [24] Ou seja, reproduzimos no plano intelectual o que também opera no plano económico, quando pensamos que a produção de certos bens de capital é algo que a nós não nos incumbe. Como nos diz a lenga-lenga das "vantagens comparativas", os de Iá produzindo máquinas e equipamentos de ponta e nós produzindo tortillas, frutas, petróleo e mão-de-obra barata. O problema que esta dependência acarreta não é menor: as teorias que, no plano económico, campeiam nos países centrais são teorias que em boa medida têm como função esconder as realidades económicas mais profundas e apresentar uma imagem adocicada e alienante dos processos económicos. [25] Além de que, no fundamental, quando servem como focos orientadores das estratégias e políticas económicas nos nossos países, acabam por ser completamente funcionais na reprodução do sistema de dominação e subordinação hoje imperante à escala mundial. Em resumo, são muito úteis para o interesse das grandes potências e também muito daninhas aos interesses das grandes maiorias que vivem na periferia. A moral disto é clara, ainda que nada fácil de cumprir: da nossa situação ou perspectiva, devemos tentar desenvolver, com o máximo rigor e ambição, o corpo teórico capaz de iluminar as realidades mais profundas do mundo contemporâneo. Pela mesma razão, pois uma coisa leva à outra, temos de conseguir nos aproximar do "corpus teórico" que, por ser verdadeiro, também nos sirva como "carta de navegação" em águas que acabam por ser muito tempestuosas. Nesta tarefa, note-se, não se trata de partir do zero e renegar toda a herança acumulada pelo desenvolvimento das disciplinas sociais, da economia em especial, o que seria perfeita loucura. Mas nesta herança, há que saber discriminar entre os corpus que ajudam na tarefa e os que a dificultam ou impedem. Neste trabalho, a opção é muito clara: apoiamo-nos nas grandes contribuições da economia clássica e marxista, além de assumir as contribuições dos grupos pós-keynesianos e radicais contemporâneos. Desgraçadamente, na maioria dos curricula universitários, reproduz-se o pior dentre as visões mais apologéticas ensinadas nos grandes centros do sistema. A alienação aqui contida não é apenas brutal, também assume uma conotação ridícula lamentável, que recorda a do serviçal de libré que tenta ir mais além do que o próprio patrão lhe exige.

Como já indicámos, neste livro defende-se que se aproximam tempos tremendamente duros para a economia mundial. Por isso, como nos ensina a experiência histórica, tempos ainda mais duros e turbulentos para as sociedades periféricas, hoje mais desprotegidas que de costume diante dos avatares da envolvente externa. Neste contexto, o esforço teórico torna-se mais urgente que nunca. Do mesmo modo, a necessidade de romper com os esgotados e completamente irrealistas paradigmas (como o neoclássico), que dominam no "estabelecimento" académico e político. O desafio é muito claro: ou o assumimos, arrostando com as consequências práticas, ou naufragaremos muito feiamente. E não se veja nisto um alarmismo frívolo: o perigo e o alarme não estão nas nossas cabeças, mas sim na própria realidade objectiva. É nela que se tem vindo a incubar uma crise de grandes proporções e seria muito lamentável que continuássemos como a boa "avozinha" da história, aquela que tinha ouvidos e não ouvia, que tinha olhos e não via.

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NOTAS
(1) Angus Maddison, Phases of Capitalist Development, Oxford University Press, New York, 1982, cap. I.

(2) Ver FMI, World Economic Outlook, Maio 2000, Washington, 2000.

(3) Supomos que entre 1750 e 1900 o rendimento per capita mundial se elevou cerca de 50 %. Ou seja, teria crescido a 0.27 % ao ano. Se calcularmos 200 dólares para 1750, para 2000 teríamos um rendimento da ordem dos 1300 a 1400 dólares.

(4) A. Maddison, Problemas del crecimiento económico de Ias naciones, Ariel, México, 1996, p. 174.

(5) Paul Bairoch, em P. Bairoch & M. Levy-Leboyer (eds.), "Disparities in Economic Development since the Industrial Revolution", Londres, 1981, p. 7. Citado por Maddison, Problemas del crecimiento… , op. cit.

(6) A noção que hoje se utiliza sobre um mundo que "agora" se "globaliza" é muito enganadora. O chamado Terceiro Mundo esteve desde sempre muito ligado ao primeiro.

(7) Certamente, que são os teóricos da dependência os que na América Latina enfatizaram com grande força esta condição. Falamos de autores como Th. Dos Santos, Ruy M. Marini, A.G. Franck e outros.

(8) "Não é por acaso que se diz que "se chove nos Estados Unidos, é preciso abrir o guarda-chuva no México".

(9) Seja-nos permitido assinalar que é o modelo económico vigente no país o que o torna terrivelmente dependente das flutuações económicas nos Estados Unidos. Neste sentido, se de culpas se tratasse, é bastante torpe eleger como culpável a recessão estado-unidense. Situação semelhante poderia ser: em pleno Inverno você sai para a rua com o seu bebé de um ano quase nu. O bebé adoece gravemente e lançamos a culpa para o clima.

(10 )"A recessão é necessária para recordar periodicamente aos trabalhadores a sua vulnerabilidade ao desemprego e, portanto, restabelecer o controlo dos empresários no centro de trabalho". Cfr. Bowles y Edwards, lntroducción a la economía, Alianza Editorial, Madrid, 1990. p. 236.

(11) Vejam-se as desagregações manipuladas nos capítulos 2 e 3.

(12) Bowles y Edwards. op. cit., p. 236.

(13) Ibidem, p. 237.

(14) The Economist recomenda que é necessário obter um paraquedas e assinala que o "amplo descenso dos Estados Unidos já causou uma recessão, quiçá ainda não nos Estados Unidos, mas sim no México, em Singapura, Taiwan e outros lugares". Cfr. The Economist, 25 de Agosto de 2001.

(15) As importações dos Estados Unidos caíram uns 0,5 por cento no quarto trimestre de 2000; caíram uns 5,0 por cento no primeiro trimestre de 2001 e voltaram a cair, uns 7,7 por cento, durante o segundo trimestre de 2001. Dados anuais. Cfr. White House, Economic Statistíc, Briefing Room, página web.

(16) Neste país, há poucas semanas, foram completamente suprimidos os controles existentes sobre o movimento de capitais de curto prazo. Ou seja, quando vai rebentar a tormenta, deito o impermeável e o guarda-chuva para o lixo.

(17) É sabido que quase sempre se procura aumentar as exportações e diminuir as importações: o que antes se denominava conseguir o pleno emprego à custa dos vizinhos. Decerto que, quando todos procura o mesmo, desemboca-se numa guerra tarifária e cambial, em que todos perdem ainda mais e ninguém ganha. Mas o problema vai mais além e aponta, não para um puro conflito entre políticas económicas conjunturais, mas sim entre estratégias ou "modelos" de desenvolvimento, algo bastante mais difícil de conciliar.

(18) Ver José Valenzuela Feijóo, Crítica del modelo neoliberal. Facultad de Economía, UNAM, México, 1991.

(19) Para um exame detalhado, veja-se José Valenzuela Feijóo, "Crecimiento y distribución en la fase neoliberal". Apartes. revista da Faculdade de Economia, Universidade Autónoma de Puebla, ano VI, núm. 16. Janeiro-Abril de 2001.

(20) Por exemplo. os que poderiam ser prósperos industriais de calçado, acabam por ser grandes importadores de calçado italiano e espanhol.

(21) Aníbal Pinto, Política y desarrollo, Editorial Universitaria, Santiago de Chile, 1968, pp.31-32.

(22) Ibidem, p. 33.

(23) Supondo que não será a classe trabalhadora quem passa a dirigir o processo. Provavelmente, as condições para esta via, bastante mais exigente, não estarão ainda maduras.

(24) O qual se chega a racionalizar alegando toscamente de que lá são "frios e racionais", enquanto nós cá somos "quentes e emocionais". A "divisão do trabalho" é nítida: eles com o cérebro e nós com o coração.

(25) "A falta de familiaridade com as belezas e ingenuidades da teoria económica neoclássica é uma vantagem muito positiva para compreender as relações monetárias e financeiras internacionais", Cfr. reter Gowan, The Global Cambie, Verso, Londres, 1999, p. 5.


[*] Economista chileno, professor da Universidade Metropolitana do México. Tradução do Capítulo I do seu ensaio "Dos Crisis: Japón y Estados Unidos", Universidade Autónoma Metropolitana do México, 1ª edição, Novembro de 2003, 235 pp., ISBN 970-701-401-6.
Tradução de Carlos Coutinho.


Este estudo encontra-se em http://resistir.info/ .

06/Jan/05