As memórias de Wilfred Burchett

Christopher Reed [*]

Rebel Journalist.

Estive à espera da análise crítica deste livro durante semanas. O editor de Sidney explicou-me que o exemplar que me estava destinado fora enviado a um intrometido que tinha pedido um exemplar com urgência. Esse intrometido era nem mais nem menos do que o general Giap, o génio militar do século XX, vencedor dos franceses em Dien Bien Phu, o destroçador da máquina de guerra mais poderosa do mundo.

Este grande herói do Vietname estava ansioso por ter um exemplar de Memoirs of a Rebel Journalist: The Autobiography of Wilfred Burchett (University of New South Wales Press), o que não é para admirar. Burchett conheceu Giap pessoalmente e menciona-o inúmeras vezes nas 756 páginas do seu livro. Também conheceu e era grande amigo de Chou En-lai, de Ho Chi Minh, do príncipe Norodom Sihanouk, de Fidel Castro, do major Charles Orde Wingate e de uma série de ministros, diplomatas e políticos importantes, principalmente da China e do Vietname.

Isto não quer dizer que Burchett (1911-1983) fosse um desses jornalistas que gostam do poder e andam em volta dos que detêm cargos políticos na esperança de que eles, e só eles, lhe forneçam notícias importantes. Pelo contrário, Burchett provinha da escola oposta – e era o seu melhor repórter. Acreditava em estar no local do acontecimento, mas também em falar com as pessoas vulgares e, acima de tudo, em observar e investigar os acontecimentos.

O livro tem como co-autores o artista George Burchett, o filho mais novo de Wilfred, e Nick Shimmin, autor e editor anglo-australiano, que descreve Wilfred como "o maior jornalista que a Austrália jamais teve, e um dos melhores correspondentes estrangeiros que o mundo jamais viu". Trabalhei com Burchett, gostava muito dele, concordo com a definição de Shimmin e infelizmente também com o seu segundo ponto, de que há pessoas "que durante décadas o atacaram virulentamente e ao seu legado". A razão: Burchett dava as notícias do ponto de vista "do outro lado" e não escondia as suas simpatias comunistas.

Wilfred Burchett.

Para a geração do pós Guerra Fria a intensidade deste ódio pode parecer esquisita. Mesmo para os que se lembram desses dias, a perversidade das divisões ideológicas desse período e os extremos a que a direita chegou na sua histeria e paranóia, permanecem como lembranças amargas. Entre os homens do poder que Burchett encontrou, a insolente bravata e a ignorância dos americanos não têm paralelo no seu relato de quatro décadas de guerras travadas e de procura de paz, mas quanto à total imbecilidade os seus australianos provincianos são inigualáveis. Os britânicos primam pela arrogância racista e pela incompetência, por detrás de uma horrível camaradagem "meu rapaz" atirada para cima dos que não fazem parte do seu grupo, e que Burchett capta e retrata de forma magistral. Os prudentes chineses, os corajosos vietnamitas e os discretos russos mantêm quase sempre um nobre auto-controlo, mas conforme já assinalado, o autor é pro-comunista.

Mas seria ele um Comunista com maiúscula ou um "Vermelho" para usar o antigo esquema da cor? Este tem sido um tema recorrente nas análises da obra de Burchett, e está de volta com este livro. Ao mesmo tempo que fazia as suas notícias de forma única, relatando a guerra vietnamita literalmente a partir dos túneis subterrâneos do Vietcong, ultrapassando assim os seus colegas jornalistas regularmente com 'furos' jornalísticos, Burchett descrevia-se a si próprio nas notícias frequentemente. Nessas ocasiões, a palavra "comunista" era apenas um adjectivo colocado à frente do seu nome. Mas isso invalidava os seus relatos? Ele sempre negou ser Comunista e fá-lo uma série de vezes no livro. Nunca ninguém apresentou nenhum documento de qualquer partido comunista que contenha o nome e a assinatura de Burchett. Tem algum interesse saber se Wilfred Burchett aderiu ao Partido Comunista da Austrália durante a Depressão quando em jovem andava à procura de trabalho como carpinteiro da construção no meio de um desemprego generalizado, e apoiava os oprimidos contra os grandes patrões e os senhores exploradores? Ou será que aderiu algures mais tarde, ou mesmo nunca?

A minha sugestão é considerar a acusação de filiação Burchett/PC sem qualquer interesse e dar-lhe o devido repouso tão merecido. Depois de todos estes anos ela não passa de um cacete da Guerra Fria destinado a bater num dos maiores produtores de notícias da esquerda que o jornalismo já produziu, e que dessa forma incomodava fortemente a direita autoritária porque os seus furos jornalísticos eram muito eficazes.

É este o homem que em 1967, quando estava a preparar um dos seus 31 livros, o intitulou na altura da publicação em 1968, Vietnam Will Win ( O Vietname vencerá ). Os EUA andavam na altura a proclamar a vitória iminente, mas foram derrotados oito anos depois. Burchett acompanhava de perto os assuntos que discutia. Com um emprego de miséria na sua Gippsland natal, em Vitória, descobre o poder dos trabalhadores que organiza quando eles o ajudam a combater o brutal patrão. Depois em 1938, enquanto emissário na Alemanha – era um multilingue auto-didacta – ajuda muitos dos clientes judeus da sua agência a escapar à perseguição nazi. Visita um homem em Berlim que está demasiado perturbado para falar. Mais tarde este conta a Burchett que apenas dois minutos antes de ele ter tocado à campainha, o irmão tinha dado um tiro na cabeça para não ter que enfrentar um campo de concentração.

Burchett só veio a ser repórter por volta dos 30 anos. Estava na Austrália, onde a guerra, que agora se enfurecia e em que ninguém acreditava que iria acontecer, fez lembrar aos editores umas cartas de um leitor que eles por várias vezes tinham recusado publicar. Eram de um rapaz que parecia conhecer bem a Alemanha e assim foi convidado a escrever alguns artigos. Esta experiência formou a opinião de Burchett sobre a aflitiva indolência e falta de coragem da imprensa dominante que guiou o seu jornalismo para o resto da vida. Trabalhou principalmente para pequenas publicações, depois de algumas magníficas reportagens de guerra na Birmânia, na Índia e na China – e do 'furo' jornalístico sobre Hiroshima – para o Daily Express de Londres, na altura um dos melhores jornais do mundo de notícias estrangeiras apesar do seu toryismo excêntrico. Viveu na Indochina, em Moscovo, na Europa de leste e em Pequim, mas andava sempre fora em reportagem. Os meses esgotantes com as conversações de cessar-fogo em Panmunjom durante a guerra da Coreia demonstram em pormenor a duplicidade dos negociadores americanos, que queriam que a guerra continuasse, e revelam uma verdade terrível: que os militares e os diplomatas se preocupam mais com os pontos que cada um marca do que com o facto de que a sua demora possa provocar mortes em massa por cada dia de atraso.

Apresenta um vigoroso caso circunstancial de que os americanos usaram guerra bacteriológica na Coreia – outro assunto que perseguiu a sua carreira e inflamou os seus adversários. Os seus repetidos escritos dos meses em que viveu com as guerrilhas da Frente de Libertação Nacional, vestido com um fato preto parecido com um pijama e com um chapéu de palha cónico, a andar de bicicleta, agachado pelos túneis, a dormir em redes, e a movimentar-se sobretudo durante a noite nas áreas "controladas" pelas forças americanas e pelos seus aliados do Vietname do Sul, frequentemente no interior de Saigão, mostraram-lhe que por muito forte que o monstro militar rugisse, o país já estava perdido para os invasores estrangeiros e para os seus fantoches. Ele sabia.

Depois publicou estas verdades. Não admira que fosse odiado. Na Grécia em 1946 quando os seus comunicados revelaram a farsa eleitoral e previram a guerra civil, o cônsul-geral britânico que anteriormente lhe chamara "meu rapaz", disse-lhe agora que ele ia ser expulso. O jornalista americano George Polk – foi assassinado. A guerra civil durou mais de três anos. "Eu apenas noticiei aquilo que observei", escreve, "retirando as deduções naturais e lógicas dessas observações. Mas o momento em que aquilo que se torna uma verdade óbvia bate certo com o que foi previsto e publicado por um jornalista diligente, pode ser muito desconfortável, como acabei por descobrir muitas vezes durante a minha carreira. E o processo vai-se repetindo, sem que os críticos dos tiros certeiros do passado se lembrem disso quando discutem a precisão do último tiro".

Apresenta as coisas duma forma simples, e na verdade não é assim tão complicado. Os media dominantes estão engalanados com mentiras todos os dias, principalmente nos EUA, onde uma das principais razões para isso é a insistência americana nas citações "objectivas". Isto significa que se imprimem as mentiras que as entidades nos contam. Estas "entidades" são escolhidas com um preconceito grosseiro. Passam-se meses sem ser ouvido qualquer líder sindical. As opiniões da esquerda liberal nunca são procuradas. Os charlatães conhecidos exprimem-se sem contestação. E nas guerras, como sabemos, a verdade é a primeira vítima. Mas aqui há outra questão importante levantada no livro de Burchett, que é um desenvolvimento das suas recordações de 1981, At the Barricades. Porque é que é considerado incorrecto, traidor mesmo, que uma pessoa faça a cobertura de uma guerra vista do lado que se opõe à nação de que é cidadão? Não há nenhuma lei que o impeça – embora no caso de Burchett o seu governo quisesse aprovar uma, ao mesmo tempo que se recusou durante 17 anos a substituir o seu passaporte roubado.

Como assinala, o repórter do New York Times Harrison Salisbury (citado no frontispício como admirador de Burchett), e o jornalista britânico de esquerda James Cameron, visitaram ambos o Vietname do norte durante a guerra. Mas não foram rotulados de "agentes comunistas" como Burchett foi por Tom Lambert no Los Angeles Times . As mentiras baratas de Lambert são prova evidente de que estas eram a sua moeda habitual. "Com a abertura ao comunismo, e a sua deliberada sujeição do jornalismo à ideologia, apareceu um novo tipo de repórter... o agente político jornalista", calunia Lambert. Nunca, é claro, o capitalismo exigiu fidelidade ideológica aos jornalistas que emprega... Noutro aspecto, Burchett admite prontamente agir como um agente no sentido em que participa nos acontecimentos históricos que noticia, para tentar fazer alguma coisa de útil. É o simples dever de um membro da sociedade, argumenta. Tornou-se uma fonte chave para colegas jornalistas nas conversações de paz de Paris sobre o Vietname e em Panmunjom; transportou mensagens construtivas entre as partes litigantes; e interveio para ajudar um prisioneiro de guerra australiano na Coreia (e foi castigado por outros ex-prisioneiros como sendo um agente da KGB por causa da sua preocupação).

Se há críticas a esta grande obra é quanto ao capítulo final e à sua conclusão. Burchett conclui o livro com um relato raivoso da condução preconceituosa de um processo judicial por difamação que ele levantou em Sidney em 1974. Um miserável ex-senador de direita, John Kane, escreveu um artigo acusando Burchett de receber dinheiro da KGB para agir por sua conta enquanto a sua própria nação estava em guerra com inimigos que a KGB apoiava. Por outras palavras, era um traidor. A principal testemunha contra ele era um desertor soviético de reconhecida desonestidade, que afirmava ter sido recrutado por ele em Moscovo onde Burchett viveria luxuosamente.

Ao pôr uma acção de 1 milhão de dólares, Burchett deu aos seus agressores conservadores australianos, que sempre o tinham odiado, uma soberba oportunidade para alardear todas as calúnias e difamações mais asquerosas que puderam inventar. Exploraram o caso ao máximo. Falou-se de adultério e de chantagem. Disseram que ele tinha deitado governos abaixo só porque visitara esses países, como aconteceu na Grécia e em Portugal. Nada disto era verdade mas ele só pôde apresentar algumas provas, para além de um antigo conhecimento de Moscovo que recordou o seu apartamento como modesto. Este processo era desnecessário visto que os trabalhistas tinham ganho as eleições pouco antes, e Kane tinha sido corrido. O passaporte de Burchett foi emitido de imediato, e os jornais apareceram com o título de "Cidadão Burchett". Meses depois, os títulos gritavam sobre ferozes acusações no tribunal. Ele devia ter abandonado o processo e deixar Kane a enlamear-se nas suas sujeiras.

Em vez disso, Burchett conquistou uma vitória de Pirro. O júri deliberou que ele tinha sido difamado, mas que Kane tinha impunidade parlamentar para as acusações anteriormente feitas – uma coisa que até um jovem repórter devia saber. Burchett ficou entalado com custos de seis algarismos que não podia pagar, voltando ao exílio provocado pela anterior falta de passaporte. Como nunca estudou a difamação enquanto aprendiz de repórter, Burchett podia não saber muito sobre imunidades parlamentares; mas o advogado dele devia tê-lo avisado.

O livro acaba aqui, com uma nota triste não muito bem explicada. Também faltam, por questões de espaço, as suas proezas em Portugal nos anos 70 e nas suas antigas colónias africanas, e noutros locais. A solução seria um Volume 2 das memórias de Burchett: as suas últimas viagens e pensamentos, o clímax final adequado para uma vida magnificamente vivida por um bom homem que fez um bom trabalho da melhor forma que pôde.

[*] Jornalista britânico independente, residente no Japão. O seu contacto é christopherreed@earthlink.net.

O original encontra-se em http://www.counterpunch.org/reed05132006.html. Tradução de Margarida Ferreira.

Este artigo encontra-se em resistir.info

17/Mai/06