O Murdoch da Venezuela
por Richard Gott
Com uma fortuna de mais de US$ 4 mil milhões, Gustavo Cisneros gosta de
promover-se como o homem mais rico da América Latina e o mais poderoso
barão dos media do continente, um equivalente latino a Murdoch ou a
Berlusconi. Desde 1961 a Organización Cisneros possui a
Venevisión, o principal canal comercial de TV da Venezuela mais
conhecida no estrangeiro pela sua raivosa oposição a
Chávez durante o golpe de 2002 e pela denúncia incessante dos
seus apoiantes como 'arruaceiros' e 'macacos'. A partir dos anos 80 ele
estendeu seu império pela América Latina incluindo a
Chilevisión do Chile e a TV Caracol da Colômbia, com uma grande
participação na DirectTV latino-americana, cujo satélite
emite uma dieta de esportes, shows de jogos, telenovelas e notícias
pré-digeridas para 20 países latino-americanos. Ele
também tem uma participação lucrativa na Univisión,
o principal canal em língua castelhana dos Estados Unidos, e uma empresa
conjunta latino-americana de conexão internet com a AOL-TimeWarner.
Tal como muitos latino-americanos ricos, Cisneros é um camaleão
no que se refere à nacionalidade. Nominalmente venezuelano
nasceu em Caracas em 1945, de um pai empresário cubano e de uma
mãe venezuelana foi educado e fez sua aprendizagem de media nos
EUA. Mas também é cidadão da Espanha, a pedido pessoal do
rei Juan Carlos, americano em Nova York, cubano em Miami e dominicano na
República Dominicana, onde a sua principal base a Casa Bonita,
próxima à estância balnear de La Ramona está
no lugar dos refúgios de outros bilionários de origem cubana,
enriquecidos com os lucros do açúcar, do rum e dos
negócios imobiliários. O estilo de vida cosmopolita de Cisneros
permite-lhe escapara aos horizontes limitados de um país
latino-americano que tradicionalmente joga na segunda divisão. Um
venezuelano, de acordo com uma antiga e desrespeitosa piada latino-americana,
é um panamenho que pensa que é argentino. Tal como muitos
hispano-americanos ricos, Cisneros sempre considerou o seu próprio
país demasiado pequeno para os seus talentos e demasiado inseguro para a
sua fortuna acumulada. Como uma das figuras sombrias que proporcionam ao
capitalismo americano força local fora dos Estados Unidos, ele é
uma ilustração notável da razão porque não
há burguesia nacional na Venezuela. Cisneros está atado de
pés e mãos ao império, e tem sido graciosamente pago.
Sem esquecer a auto-promoção, Cisneros agora pode apregoar uma
reluzente biografia escrita por Pablo Bachelet, repleta com uma
introdução panegírica do novelista liberal mexicano Carlos
Fuentes. Os motivos de Bachelet neste projecto ele é um
meio-chileno, jornalista financeiro com base em Washington, ex-Dow Jones,
actualmente Reuters dificilmente podem ficar em dúvida. Bachelet
teve acesso privilegiado à família Cisneros, e a maior parte do
seu relato uma leitura não exigente é retirada
literalmente das visões de Gustavo acerca de si próprio, que
presumivelmente também forneceu as fotografias sorridentes do 'global
empresario' com o Papa, Dalai Lama, Kissinger, Deng Xiaoping, Walesa,
Mandela, Thatcher, Netanyahu, Agnelli e, naturalmente, os presidentes Carter,
Reagan, Bush, Clinton e Bush. Por que Fuentes, outrora um pilar da literatura
progressista na América Latina e um antigo apoiante da
Revolução Cubana, preferiu atrelar seu vagão a uma figura
como Cisneros, quando viras-casacas literários no mundo anglófono
ou europeu esquivar-se-iam a desempenhar semelhante papel para Murdoch ou
Berlusconi, pode ser explicado apenas no contexto latino-americano.
Gustavo foi o quarto filho de Diego Cisneros, então um importante
empresário em Caracas. Após a morte do seu pai cubano, o jovem
Diego foi com a sua mãe venezuelana para Trinidad, e foi educado como um
escolar naquele domínio britânico. Mudou-se para Caracas quando
jovem e a seguir, com considerável encanto e inglês fluente,
tornou-se vendedor de firmas americanas de automóveis, vendendo
Chryslers e Studebakers num florescente mercado venezuelano nos anos 30,
enquanto administrava um serviço de auto-carros para Catia, um
subúrbio de trabalhadores no topo de uma colina de Caracas, com uma
frota de camiões convertidos. As fortunas dos Cisneros decolaram no
princípio da Segunda Guerra Mundial quando a família adquiriu o
direito de engarrafar e distribuir a Pepsi Cola. Segundo uma lenda local
(Bachelet não menciona o episódio), homens de Diego empurraram
camiões da Coca Cola num despenhadeiro, privando assim o seu reival das
suas inimitáveis garrafas com saias rodadas, impossíveis de obter
até que fosse declarada a paz. A Pepsi moveu-se suavemente para o
Número Um e caso único na América Latina
permaneceu nesta posição na Venezuela nos anos seguintes. Como
relata Bachelet de forma aprovadora, o pai de Cisneros logo pôs sob o seu
controle todos os produtos envolvidos na produção da Pepsi:
vidro, garrafas, tampas, açúcar, ácido carbónico,
grades e empacotamento. Posteriormente a companhia começou a operar em
outros países da América Latina, primeiro na Colômbia e a
seguir no Brasil. Na década de 1950 Diego moveu-se para o rádio
e para a embriónica indústria da televisão, e em 1961
fundou um novo canal, a Venevisión, que veio a tornar-se a
preocupação especial de Gustavo.
A companhia Cisneros das décadas de 1950 e 1960 estava centralmente
colocada para actuar como uma batedora do capital americano. Como tal,
tornou-se parte de uma nova elite na Venezuela que floresceu através da
distribuição liberal por meio do estado (mais propriamente, por
meio dos partidos políticos) dos rendimentos crescentes do
petróleo. A oligarquia agrária diminuía de riqueza e
poder desde os princípios do século XX, pois a agricultura
principiava um declínio acentuado. Com a expansão da
urbanização e do emprego no sector público, os lucros
privados no período do pós-guerra estavam ligados ao crescente
comércio em bens sobretudo americanos importados. O
projecto dos Cisneros, como aqueles de outros empresários de
famílias colonizadoras brancas em muitos países
latino-americanas, era levar os confortos da nossa civilização
seus alimentos, sua cultura, suas formas de descanso, seus produtos de
beleza às camadas médias em crescimento na América
Latina.
Diego Cisneros era um bom amigo de Rómulo Betancourt, líder
fundados do Acción Democrática, que o ajudou a lançar a
Venevisión. A família manteria contacto estreito com os
líderes seguintes da Acción Democrática quando eles se
revezavam com os do Copei, o outro principal partido burguês, nas
rotações TweedledumTweedledee que constituíram a
democracia venezuelana durante as quatro décadas pós 1958, e em
particular com o notoriamente corrupto Carlos Andrés Pérez,
presidente tanto nos anos de boom dos meados de 70 e nos de crise dos de 90,
quando foi expulso do gabinete por apropriação indébita de
fundos. Outro aliado vital era o poderoso banqueiro da Acción
Democrática, Pedro Tinoco, que o papel de conselheiro da família
Cisneros nos seus negócios com companhias americanas. Tinoco actuaria
como ministro das Finanças da Venezuela de 1969 a 1972, e como
presidente do Banco Central no governo Pérez de 1989 a 1992. Ele morreu
pouco antes da queda do Banco Latino, do qual fora presidente, desencadeada
pela crise financeira venezuelana de 1994.
Com 25 anos, em 1970, assumiu os negócios da família quando seu
pai ficou incapacitado por um derrame cerebral. Ele havia-se diplomado no
Babson College em 1968, e a seguir passou dois nos a trabalhar na ABC
Television em Detroit, Chicago, Los Angeles e Nova York. Em 1970, numa
'cerimónia simples' na Catedral de St. Patrick, em Manhattan, fez um
feliz casamento dinástico com Patty Phelps, cujo pai americano havia-se,
tal como Diego Cisneros, estabelecido em Caracas como vendedor da Ford Motors,
máquinas de costura Singer e máquinas de escrever Underwood. Os
Phelps eram também os proprietários da Rádio Caracas, cujo
ramo de TV, a RCTV, era o principal competidor da Venevisión.
Durante a década de 1970 a Venezuela foi inundada de
petro-dólares. As conexões políticas não podiam
garantir suficientemente o ambicioso lance de Cisneros por uma série de
fábricas petroquímicas, a serem financiadas parcialmente pelo
estado. Bachelet, tristemente, relata que não foi suficiente ter
convencido o presidente: apesar do apoio de Carlos Andrés Pérez,
o projecto Pentacom de Cisneros foi bloqueado por uma forte
oposição de deputados cujos nomes não foram
mencionados no opaco relato de Bachelet os quais sentiram que isto
entregaria uma indústria venezuelana estratégica a companhias
transnacionais. Mas casualmente, em 1976, o império dos supermercados
latino-americanos da família Rockfeller foi rompido sob as regras do
Pacto Andrino. Com a ajuda de Tinoco, a família de Cisneros comprou
rapidamente o ramo venezuelano, adquirindo 48 supermercados e uma dúzia
de bares de soda de um só golpe. Eles agora era capazes de integrar os
vários interesses Cisneros, utilizando um para promover o outro.
Produtos disponíveis nos seus supermercados Cada eram logo anunciados na
Venevisión, nessa altura o principal canal de TV do país.
Estrelas das telenovelas da Venevisión eram mobilizada para beber o
champanhe franchisado de Cisneros e usar o shampoo de Cisneros. Bem antes de
os bares de soda adquiridos a Rockfeller foram rebatizadas como Burger King, os
franchisados Taco Bell e Pizza Hut também foram adquiridos e promovidos
na TV, seguidos pela cadeia local da loja de departamentos Sears, Roebuck,
depois redenominada Maxys.
Sempre moderna e americana, a família Cisneros foi uma das primeiras
promotoras da pornografia suave, adquirindo a 'Organização Miss
Venezuela' que cuidava das modelos aspirantes a competições
nacionais e internacionais. As mulheres escassamente vestidas, todas
estranhamente brancas num país de índios e negros, não
só apareciam regularmente na Maxys e na Venevisión como
também eram veículo para promover os bens dos Cisneros
disponíveis nos supermercados Cisneros. Como se jactaria Carlos,
sobrinho de Cisneros, ao comprar os direitos da Playboy TV: 'Nós
entendemos que [a Playboy] era o único grande tesouro que não
fora levado dos Estados Unidos para a América Latina, porque toda a
gente assumir que este era um continente muito católico".
Os maciços rendimentos do petróleo da década de 1970
haviam sustentado uma vasta rede de patrocínios para os dominadores da
Venezuela, bem como uma disseminação de projecto infraestruturais
de fachada. Quando os preços do petróleo começaram a
cair, o governo Pérez e depois o Herrera procurou manter a diarquia
AD-Copei através de tomadas de empréstimos acrescidas. A
dívida externa do país subiu dramaticamente de forma vertiginosa
após os aumento das taxas de juro americanas em 1979, atingindo US$ 31
mil milhões em 1982 quase o dobro do número de 1978. A
economia contraiu-se agudamente, a inflação ascendeu e a fuga de
capitais acelerou-se, criando pressões que o bolívar
super-valorizado não podia aguentar. Os resultados foram os controles
de câmbio e a desvalorização de 1983, que Bachelet discute
apenas em termos do impacto 'um golpe duro' sobre as elites, cuja
cupidez ajudara a provocar isto. Segundo Julia Buxton no seu ensaio 'Economic
Policy and the Rise of Chávez', os novos controles revelaram que
'clientes' favorecidos dos partidos governantes haviam sugado uns US$ 11 mil
milhões em reservas de divisas estrangeiras para financiar seus
dólares baratos. Durante os seis anos em que houve controles de
câmbio os salários reais caíram 20 por cento, os gastos
públicos entraram em colapso, o desemprego aumentou para dois
dígitos e a inflação atingiu 40 por cento. Em 1978 apenas
10 por cento dos venezuelanos viviam na pobreza; em 1998 o número era
de 39 por cento.
A resposta de Cisneros e os do seu jaez foi, naturalmente, a fuga de capital.
Citando com energia o lema de Cisneros: 'As maiores e melhores oportunidades
vêm das crises', Bachelet pormenoriza os investimentos Cisneros fora do
país. Em 1984 comprou a Spalding, a cadeia gigante de desportos, e a
seguir as Galerías Preciados em Madrid, outra loja importante. O
desenlace foi desastroso: o urbanizador imobiliário britânico a
quem Cisneros tinha esperança de ligar ao negócio afundou no
crash da Wall Street de 1987, e em vez de dinheiro Cisneros recebeu um ponto
prestigioso próximo à Catedral de S. Paulo, em Londres, sobre o
qual as atenções do Príncipe de Gales já estavam
fixadas. Cisneros, obsequiosamente ansioso por agradar o príncipe mas
ainda mais ansioso pelo dinheiro que a re-urbanização produziria,
apresentou a Charles os planos para o local desenhados por Arup, na
residência ultra-modernista do Embaixador Britânico em Caracas. O
príncipe criticou duramente o esquema de Arup, exigindo edifícios
mais baixos e menos lojas, e Cisneros foi forçado a abandonar o
projecto.
Em 1988 os salários reais haviam caído 40 por cento, e o custo do
serviço da dívida havia ascendido a US$ 5 mil milhões por
ano. Em Dezembro daquele ano Carlos Andrés Pérez foi reeleito
presidente após uma campanha concebida para evocar os anos do boom com
gastos desenfreados do seu mandato na década de 1970. Contudo, uma vez
empossado, Pérez comutou o rumo, comprometeu-se com um Programa de
Ajustamento Estrutural ditado pelo FMI e implementou uma rajada de medidas
neoliberais, cortando subsídios a serviços públicos e
liquidando com controles de preços. Um ano depois a economia
contraíra-se 8 por cento. A pobreza geral ascendeu dos 44 por cento de
1988 para 67 por cento em 1989, e a pobreza extrema de 14 para 30 por cento no
mesmo período. Quando as tarifas de auto-carros dispararam a fim de
reflectir o custo crescente do combustível, em Fevereiro de 1989,
Caracas explodiu numa festa de saques e tumultos. Quatro dos supermercados de
Cisneros foram saqueados. O levantamento, conhecido como Caracazo, acabou por
ser esmagado pelo exército, com mais de um milhar de pessoas mortas.
Defendendo o 'sóbrio pacote de medidas' de Pérez, Bachelet admite
que 'a Venezuela não fora preparada durante a campanha eleitoral para
confrontar-se com a verdade'. Mas sua principal preocupação
é a fortuna do seu herói. O Caracazo foi um ponto de viragem
para Cisneros. Aquilo fê-lo perceber que a sua riqueza já
não estava segura em Caracas. Seu simples e lucrativo papel como o
criado do capitalismo americano estava sob séria ameaça. O
próprio estado venezuelano estava a entrar em colapso, suas traves
apodreciam por dentro. Ele decidiu que teria de mudar o grosso da fortuna da
família para fora do país. Como a terapia de choque continuava,
a economia contraía-se novamente e as taxas de pobreza continuavam a
piorar. Em Fevereiro de 1992 o então Coronel Chávez
lançou um golpe de estado sem êxito destinado a travar a
força destruidora neoliberal que Pérez pusera em movimento.
Cisneros colocou a Venevisión à disposição de
Pérez, e a transmissão do presidente no dia do golpe salvou sua
vida política. Mas era tamanha a impopularidade de Pérez que
aquilo desgastou a estação de TV. Os números de
audiência afundaram dramaticamente, com uma consequente perda de
rendimento publicitário, e a estação só recuperou a
posição dominante quando difundiu a Copa do Mundo de futebol dos
Estados Unidos em 1994.
Na primavera de 1993 o governo Pérez entrou em colapso em meio a
acusações de que se havia apropriado indevidamente de 250
milhões de bolívares (US$ 2,8 milhões) de fundos
governamentais um episódio que Bachelet omite discretamente,
preferindo retorcer as mãos sobre o ataque de instabilidade na
democracia da Venezuela. Eleições recentes haviam decorrido em
Dezembro, na qual a Acción Democrática foi derrotada; Cisneros
perdera seu aliado no Palácio Miraflores. Então, em Janeiro de
1994, o principal banco do país, o Banco Latino, caiu em concordata,
ameaçando as poupanças das camadas médias. A
família Cisneros estava pesadamente implicada da derrocada: seu amigo
Tinoco fora presidente do banco, e havia convidado o irmão de Gustavo,
Ricardo, para o seu conselho de administração. O
turbilhão de acusações contra o seu irmão levou
Cisneros a efectuar uma aparição pública na
Venevisión, denunciando a campanha contra sua família e o
sofrimento que isto lhe provocara. Apesar de Bachelet deslizar rapidamente
sobre o escândalo, satisfeito por deixar os sentimentos fraternais de
Cisneros tomarem o lugar dos factos, o golpe na reputação dos
Cisneros foi considerável. O efeito sobre a economia do país foi
muito pior. O governo Rafael Caldera despejou 12 por cento do PIB de 1994 na
estabilização do sistema financeiro do país. A fuga de
capitais e a desvalorização da moeda levaram a taxas de
inflação de mais de 70 por cento e cortes ainda mais profundos
nas despesas públicas.
Os movimentos de Cisneros para retirar os seus bens da Venezuela agora estavam
à velocidade máxima. Ele vendeu sua operação Pepsi
à sua rival Coke consternando os sentimentais de mercado e
comprovando mais uma vez que não há honra entre ladrões
e os supermercados Maxys e Cada a uma cadeia colombiana; livrou-se
até mesmo da Spalding. E reinvestiu os lucros nos supermercados Pueblo
Xtra com base nos EUA, com lojas em regiões menos perturbadas como a
Floria e Porto Rico, e começou a mover seus fundos para fora dos antigos
veículos de consumo em massa supermercados, burgers, gelados,
shampoo e para dentro dos geradores de rendimentos de uma nova era:
televisão, telocomunicações, internet, música
popular e, naturalmente, os seus acompanhamentos, refrigerantes e cervejas.
Desta liquidação, a Venevisión ficou dispensada. Ela
havia provado seu valor através dos êxitos internacionais das suas
telenovelas, as quais na decada de 90 escaparam ao limitado mercado
latino-americano e encontrar um nicho por todo o globo. Sua fórmula
pegajosa demonstrou-se irresistível: uma estória,
lágrimas com soluços, drama emocional e blocos de pornografia
suave. Com base neste triunfo, Cisneros tinha grandes esperanças de
comprar no mercado americano de televisão, com sua audiência de
milhões de latinos. Seu amigo Emilio Azcárraga, dono da Televisa
do México, já havia feito uma entrada no mesmo na década
80, montando uma companhia conhecida como Univisión, mas fora
forçado a vendê-la em 1986 após uma discussão com a
Federal Communications Commission americana acerca da sua propriedade
estrangeira. Quinze anos mais velho que Cisneros, Azcárraga era
aliás uma figura semelhante a ele: filho de um magnata local, que
consolidou e expandiu o negócio da família numa
operação pan-latino-americana. Bachelet menciona as frequentes
viagens em iate de Azcárraga para ver Cisneros na República
Dominicana. Cisneros agora propunha uma joint venture entre ele
próprio, Azcárraga e um parceiro americano, para aplacar a FCC.
O negócio foi rematado em 1992, e a Univisión começou a
difundir para latinos nos EUA o cardápio telenovelas, talk-shows
vazios, 'notícias' que se originara na Venezuela e no
México. Isto pode ser considerado imperialismo cultural em reverso, mas
na prática a programação já estava altamente
americanizada, e agora era simplesmente vomitada sobre uma audiência
latina já familiarizada com a receita. Ironicamente, a
Venevisión agora era obrigada a introduzir uma dimensão
multi-étnica nos seus programas totalmente inabitual na atmosfera
racista branca de Caracas, mas uma condição
sine qua non
na cultura contemporânea dos Estados Unidos.
Em 1996 o governo coxo de Caldera foi forçado a virar-se para o FMI. O
brutal 'Acordo Venezuela' eliminou controles de preços, entre outras
coisas, e a inflação subiu para mais de 100 por cento. No fim do
ano a pobreza generalizada era de 86 por cento e a pobreza extrema de 65 por
cento. Foram dias de insegurança para Cisneros. Ele logo tomou o
comando da Univisión partilhada com Azcarraga e, com os Estados Unidos
na cintura, começou a comprar estações de TV na
América Latina, nomeadamente a Chilevisión no Chile e a Caracol
na Colômbia. Em 1995 montou a DirectTV como uma joint venture com a
Hughes Communications, um ramo da General Motors. Apesar de entrar no mercado
ao mesmo tempo que a Sky de Rupert Murdoch, o qual já fizera um acordo
com a Televisa e a Globo de Roberto Marinho, no Brasil, dentro de cinco anos a
DirectTV tinha mais de uma milhão de assinantes. Foi nesta etapa que
Cisneros voltou sua atenção para a internent, lançando sua
joint venture para estender a cobertura da AOL à América Latina.
No momento das eleições de 1998 a elite política
venezuelana já estava totalmente desacreditada. Preso durante dois anos
após o golpe fracassado, Chávez havia ganho considerável
apoio popular devido à sua rejeição da ortodoxia
neoliberal e defesa aberta dos pobres nessa altura a massa da
população. Ele ganhou o poder em Dezembro de 1998, com 56 por
cento dos votos. Cisneros estava entre os oligarcas financeiros do país
com a esperança de que aquele oficial não experimentado pudesse
ser curvado à sua vontade. Na noite das eleições eles
encontraram-se de modo amistoso nos estúdios da Venevisión, e
Bachelet relata conversações posteriores com o novo presidente
nas quais Cisneros manifestou seu apego à solidariedade social. Numa
reunião que Bachelet não menciona, Cisneros sugeriu que um dos
seus homens tomasse conta da Comissão Nacional de
Telecomunicações, um organismo regulador do Estado que podia
fazer muito para ajudar os esquemas da Organización Cisneros.
Chávez recusou a oferta. Ele planeava impulsionar o seu programa para
regenerar o país sem a assistência dos seus tradicionais
dominadores, políticos ou financeiros. Em Novembro de 2001 ele
apresentou uma molhada de legislações sobre reforma
agrária, hidrocarbonetos e segurança social. Cisneros juntou-se
logo à cada vez mais estridente oposição da elite,
queixando-se que o país fora tomada por um populista autoritário,
e prognosticando desgraças económicas contínuas
provocadas, muito antes da eleição de Chávez, por uma
série de governos que eles haviam apoiado.
Cisneros foi um membro central do grupo que planeou a derrubada de
Chávez de Abril de 2002. Na noite de 11 de Abril, depois de
Chávez ter sido removido do Palácio de Miraflores a ponta de
armas, os principais conspiradores reuniram-se no apartamento de Cisneros na
Venevisión (para Bachelet, que procura distanciar Cisneros do golpe
aprovado pelos EUA, aquele era simplesmente o lugar onde 'líderes
políticos, homens de negócios, líderes sindicais e
intelectuais apareciam em tempo de crise'). No princípio da manha
seguinte Pedro Carmona, chefe da confederação patronal, anunciou
na TV de Forte Tiuna, a principal base militar na capital, que era o novo
presidente para grande surpresa de Cisneros, segundo Bachelet, que
também considerou desnecessário mencionar que no dia seguinte, 13
de Abril, Cisneros foi a Miraflores, já rodeado por uma multidão
irada a exigir o retorno de Chávez. Carmona acabara de anunciar o
encerramento do Congresso e do Supremo Tribunal, bem como a supressão da
Constituição. Cisneros, ao chegar com representantes dos media
locais, sugeriu que a estratégia de comunicações do novo
governo deveria ser deixada nas suas mãos. Carmona aceitou agradecido.
Poucos minutos depois de a delegação de Cisneros deixar o
Palácio, contudo, os soldados da Guarda Presidencial retomaram-no,
detendo alguns dos líderes do golpe enquanto Carmona escapava.
Mais uma vez não relatado por Bachelet, Cisneros deu ordens aos seus
canais para não apresentarem notícias do contra-golpe, nem
mostrarem imagens das dezenas de milhares de pessoas a descerem das cidades de
casebres para assegurar o retorno do 'seu' presidente descritos por
Bachelet como 'umas poucas contra-demonstrações em favor do
deposto chefe de estado'. Durante o resto do dia, os écrans de Cisneros
foram preenchidos por velhos filmes e desenhos animados. As notícias
dos eventos na capital eram apresentadas só pela CNN. O retorno de
Chávez ao poder em 14 de Abril não dissuadiu Cisneros e outros
apoiantes da oposição de tentarem um novo golpe, desta vez
através da organização de uma paragem da indústria
petrolífera do país, em Dezembro de 2002. Chávez
sobreviveu tanto à paragem petrolífera que custou ao
país cerca de US$ 6 mil milhões como a um subsequente
referendo revogatório em Agosto de 2004.
'Chegará o dia', declarou Chávez em Maio de 2004, no
princípio da campanha do referendo, 'em que teremos uma equipe de juizes
sem medo que actuará de acordo com a Constituição e
aprisionará estes senhores da mafia como Gustavo Cisneros'. É,
naturalmente, a existência de um governo Chávez radical, que
apresenta uma alternativa para o projecto de livre mercado ao qual Fuentes e
muitos da antiga esquerda latino-americana endossaram, que explica a ode
rococó do novelista liberal ao bilionário da extrema-direita.
Visto através dos binóculos servis de Fuentes, Cisneros é
um modelo de cidadão, um visionário e empreendedor 'global'. O
vendedor de soap operas, loiras e shampoo é louvado por criar um
negócio cultural na América Latina 'comparável em
profundidade e resiliência' à estética e
tradições literárias do continente. Seus prosaicos
negócios imobiliários em Madrid 'aboliram o oceano'. Foi 'um
defensor da língua castelhana no coração da América
anglófona'. Nas suas relações com negociantes americanos,
Cisneros foi
'un adelantado'
o pleno aventureiro espanhol da era colonial 'das
relações de benefício mútuo'. Acima de tudo,
quando 'obrigado a desempenhar um papel político na sua Venezuela
nativa', Cisneros proporcionou um 'centro democrático' contra o
presidente eleito, aqui (previsivelmente) comparado a Hitler, Mussolini e
Perón. Nenhuma menção é feita à forma que
tomou esta magnânima intervenção o golpe de estado
de 2002 que tentou por abaixo a democracia na Venezuela, com a
Venevisión como um actor principal naqueles eventos, no écran e
fora do écran, e o próprio Cisneros como um dos principais
baralhadores do pacote.
Em retrospectiva, o entusiasmo de Fuentes por Cisneros não é de
todo surpreendente. Como filho de um diplomata mexicano, Fuentes pertence ao
mesmo mundo transcultural do empreendedor venezuelano. Ele também poder
americano em Nova York quando a ocasião exige, ou europeu em Paris e
Madrid. Sua visão preconceituosa das tradições
revolucionárias da América Latina tornou-se mais pronunciada com
o passar dos anos e tinge claramente sua atitude em relação a
Chávez, condenado mesmo antes de a Revolução Bolivariana
começar. Tal verrina, muitas vezes com um toque abertamente racista ou
elitista, é bastante comum entre a elite amimalhada e
americanófica da América Latina e também entre alguns da
sua esquerda intelectual.
Ironicamente, desde o fracasso do derrube do presidente no referendo
revogatório de 2004, o adelantado Fuentes parece ter assumido uma
visão mais cínico-realista. A ameaça de Chávez
sempre repousou na sua capacidade para apresentar uma alternativa
ideológica ao Consenso de Washington, apoiada por uma real, ainda que
desigual, extensão de condições sociais, suas medidas
redistributivas mal tocaram as fortunas que Cisneros e seus afins colheram dos
venezuelanos comuns, através de décadas de
corrupção estatal e de bancos apaniguados. Ainda em 2004,
Cisneros projectou uma reunião com Chávez por intermédio
de Jimmy Carter. Se Chávez organizasse uma entrada para Cisneros junto
ao governo Lula no Brasil, a propaganda anti-governo da Venevisión seria
acalmada. Cisneros desde então avançou suas obras de
semi-caridade na Venezuela, muitas delas fiscalizadas pela sua esposa um
'magnífico aliado', nas palavras de Fuentes cujas
colecções de arte europeia e latino-americana do expressionismo
abstracto serviu para proteger a Organização Cisneros com um
verniz cultural. Sempre alerta para mudanças de modas, Patty Phelps da
Cisneros ficou interessada nos povos tribais do Orenoco, convidando
celebridades para o seu campo de férias junto ao rio e acumulando uma
enorme colecção de arte e artefactos indígenas. Sua
preocupação pela área compara-se àquela do seu
marido, que possui uma mina de ouro no estado vizinho da Guiana, desenvolvida
com a Gold Fields Ltd, uma companhia sul-africana.
Mas se Cisneros avançou em relação ao seu panegirista, em
troca proporcionou um favor a Fuentes, um favor que certamente ultrapassa o
valor nominal que o escritor cobrou para escrever o prólogo: é o
de um personagem da vida real cuja biografia imitou a sua própria
ficção. Nenhum novelista poderia pedir maior elogio. Pois a
figura central da mais famosa novela de Fuentes,
A morte de Artemio Cruz,
publicada em 1962, é um retrato de Cisneros
avant la lettre
: um homem que aproveita suas oportunidades onde elas possam surgir como
negociante corrupto e rico, soldado ao poder através das suas
fábricas, seus jornais, seus contactos e sua fortuna, adquirida
através de:
empréstimos a curto prazo e altos juros a camponeses em Puebla, cujo
crescimento você prevê; hectares para sub-divisão na Cidade
do México, graças à intervenção
amigável de cada um dos que se sucediam como presidente; o jornal
diário; a compra de acções mineiras; a
formação de empresas mexicano-americanas nas quais você
participou como homem de fachada...
Toda uma parede do seu gabinete está coberta pelo mapa que mostra o
conjunto e as inter-relações da sua rede de negócios: o
jornal na Cidade do México, e o imobiliária ali e em Puebla,
Guadalajar, Monterrey, Culiacán, Hermosillo, Guaymas e Acapulco. As
minas de enxofre em Jáltipan, as minas em Hidalgo, as concessões
de madeira em Tarahumara. A cadeia de hoteis, a fundição de
tubos, o negócio da pesca. As operações financeira, os
haveres de acções, a administração da companhia
formada para emprestar dinheiro ao caminho de ferro, a
representação legal de firmas norte-americanas, a directoria de
casas bancárias, as acções estrangeiras corantes,
aço e detergentes, e uns poucos ítens mais que não
aparecem sobre a parede: quinze milhões de dólares depositados
em bancos em Zúrique, Londres e Nova York.
Quando Cisneros finalmente também jazer sobre o seu leito de morte,
talvez invoque os momentos finais do seu alter ego:
Sim, você terá saudades ... vinte bons anos, anos de progresso, de
paz e progresso entre as classes ... vinte anos de líderes trabalhistas
submissos, de greves rompidas, de protecção para a
indústria. E agora você levantará suas mãos para o
seu estômago e sua cabeça com grisalhos cabelos castanhos, para
sua face oleosa, e verá a si próprio reflectido no vidro de cima
do seu gabinete ... como todos os sons subitamente fugirão, rindo, dos
seus ouvidos, e o suor dos homens redemoinhará em torno de si e seus
corpos o sufocarão, e você perderá a consciência ...
e não saberá quais acontecimentos da sua vida passarão
para a sua biografia, ou quais serão suprimidos e escondidos, você
não saberá ... embora esteja a recordar-se de outras coisas, de
outros dias ... dias quando o destino o farejará como um cão de
caça e o descobrirá e o aterrorizará.
O original encontra-se na
New Left Review
, nº 39, Maio-Junho/2006.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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