Chávez, o diabo, Chomsky e os EUA
por Michael Albert
O que pode a esquerda retirar do discurso de Chávez nas
Nações Unidas e do seu resultado? Que os EUA são o mais
notório estado vilão do mundo. Já sabíamos isso e,
na verdade, quase toda a gente sabia. Que Bush e companhia empenham-se em
repetidos actos de comportamento amoral, imoral e anti-moral tal como um diabo
o faria, se existe tal coisa como um diabo. Também já
sabíamos isso. Que o imperador não tem moralidade, integridade,
sabedoria ou humanidade. Também o sabíamos.
Então, haverá alguma coisa neste episódio que nos ensine?
Penso que pode haver.
Suspeito que muita gente de esquerda teria ficado mais feliz se Chávez
houvesse atacado Bush e as instituições americanas apresentando
mais provas e utilizando uma linguagem menos religiosa. Talvez Chávez
pudesse ter chamado Bush de Sr. Guerra, ou Sr. Perigo como o fez no passado, e
acumulado provas de como as políticas dos EUA no mundo, bem como os
grotescos desequilíbrios internos, obstruem a desejável
distribuição do rendimento, o processo de decisão
democrática e o respeito mútuo interpessoal e
intercomunitário. Chávez podia ter apresentado provas de como as
elites e as instituições chaves americanas impedem a vida e o
amor e até mesmo a sobrevivência, desde a América Latina
à Ásia. Ele podia ter dito que George W. Bush, o actual mestre
responsável pelas mais recentes violações dos EUA,
está na verdade a fazer o papel do diabo porque ele é o
semeador de um sistema diabólico. E suspeito de que muita gente da
esquerda teria ficado mais feliz se Chávez tivesse acrescentado os
capítulos e versículos das provas para as suas
afirmações, embora suspeite que os limites de tempo o impedissem.
Mas não podemos obter sempre exactamente o que queremos. E mais, a
teatral "formulação do cheiro a enxofre" que
Chávez usou pode ter sido exactamente o que atingiu precisamente os
sentimentos de milhões de leitores e espectadores. Os sabichões
quiseram usar as palavras de Chávez para desacreditá-lo
mas, ao fazê-lo, colocaram as suas afirmações perante
centenas de milhões de pessoas. Talvez, sem a formulação
teatral, nada tivéssemos ouvido.
O meu palpite é que Chávez tratou o evento como trata quase todos
os outros. Disse o que pensava. Deu-lhe um corte apaixonado, estético
e humorístico. Calculou que a sinceridade renderia mais do que o seu
custo. De um modo satisfeito, o discurso foi típico de Chávez
ainda que a maioria não o tenha ouvido dizer tais coisas antes,
por nunca o terem ouvido. Aqui está Chávez a comentar sobre
Bush, por exemplo, num discurso em Março último transmitido pela
televisão venezuelana: "Você é um ignorante,
você é um burro, Sr. Perigo... vou dizer-lho no meu mau
inglês, you are a donker, Mr. Danger. Você é um cobarde, um
assassino, um genocida, um alcoólico, um bêbado, um mentiroso, uma
pessoa imoral, Sr. Perigo. Você é o pior, Sr. Perigo. O pior deste
planeta".
O custo da mais recente, e de longe mais ousada, franqueza sobre Bush é a
rejeição de Chávez como sendo um lunático louco por
muitas pessoas que sentem o mesmo, mas foram impedidas de o dizer, e por
algumas pessoas que antes não tinham opinião e
agora são influenciadas pela ridicularização feita pelos
media.
O ganho da mais recente e mais ampla sinceridade de Chávez é
estabelecer que se pode dizer a verdade sobre os EUA e também sobre
George Bush, e mostrar que fazer isto está de acordo não
só com a verdade como também com a integridade. É dar um
exemplo aos outros para que se inspirem e ajam assim. O que é veneno
aos olhos da elite, pode ser vitamina para nós, ou vice-versa.
A esse respeito, o que Chávez fez recorda-me um pouco o que Abbie
Hoffman e outros fizeram nos EUA há décadas em
relação à
House UnAmerican Activities Committee,
conhecido pela sigla HUAC. Abbie e outros ridicularizaram a HUAC de
uma forma agressiva e desdenhosa mostrando que estava abaixo do desprezo e era
indigna de respeito. Eles riram ao obedecê-la e através desta postura
mudaram a atitude prevalecente em relação ao HUAC de medo
primário e temor basicamente para o desprezo primário e o
repúdio. Chávez tentou algo de similar, penso eu. Ele deu voz
àquilo que os outros, mesmo aqueles no salão das
Nações Unidas, também sabiam mas guardavam para si. Ele
esperou, suponho, que os outros ganhariam coragem e começariam a falar
das suas necessidades e dos seus pontos de vista.
Bush é vingativo, mesquinho e violento, mas, mais do que isso, um
criminoso obediente. Sim, obediente, pois Bush obedece aos ditames do sistema
em que ascendeu e que agora governa para os ricos e poderosos. Bush
exemplifica na perfeição a máxima de que no capitalismo
"o lixo ascende". O meu palpite é que Chávez sentiu
que os benefícios de fazer frente aos EUA e a maior parte da sua elite
lixo ultrapassavam os custos de parecer um extremista de
Marte aos olhos de muitos. Será que estava certo? Terá
ponderado os
benefícios e os custos?
O meu país, os Estados Unidos, mantem-se sob o véu da loucura
desorientadora e enganadora dos media. Sofre um clima de medo paralisante e
impregnante. Cerca-se de uma desesperança profundamente inculcada
nascida de instituições educacionais e culturais que extinguem a
comunicação de crenças dissidentes e promove
trivialidades. Sofre uma drenagem anti-social produzida por mercados que
recompensam a frieza e punem a solidariedade. O lixo ascende nos EUA porque as
pessoas simpáticas acabam por ser preteridas. E, em meio a tudo isto,
alguém dizer a verdade completa, e mais ainda alguém apresentar
os níveis apropriados de raiva apaixonada que a verdade completa
provoca, faz tal pessoa parecer ser marciana, ser psicótica, ser
irrelevante, e Chávez quer reverter esse contexto.
Será que Chávez conseguiu cumprir estes objectivos
com um tal discurso? Não estou certo. Mas se conseguiu, se o
preço do discurso de Chávez ao deslegitimar a sua própria
credibilidade em certos círculos foi maior do que o ganho ao
deslegitimar a mesquinharia e a violência e em libertar pessoas em
círculos muito diferentes da obediência cega e acrítica e
do medo, qual teria sido a sua falha?
Deveríamos culpar o mensageiro que trouxe uma mensagem? Ou
deveríamos culpar os milhões de mensageiros que sabem o mesmo que
Chávez mas ficam calados?
Há um tirano de classe mundial, Bush. Ele representa a classe dos ricos
e poderosos "senhores do universo". Ele administra o seu sistema de
desigualdade brutal. Ele expande a hostilidade do mercado competitivo em que
vivem. Ele encoraja a passividade mental na qual eles se fiam. Ele apoia a
coerção eterna que eles utilizam. Ele simboliza a grosseria e o
comercialismo, de que eles lucram. Ele mente para encobrir os seus verdadeiros
objectivos. Ele lança bombas por toda a parte para defender e alargar o
seu império. Claro que irritar o tirano e o sistema que ele representa
pode desencadear comportamentos desagradáveis. Claro, durante algum
tempo, no
assalto subsequente, o ataque verbal ao tirano pode diminuir a credibilidade do
dissidente, pelo menos em alguns círculos. Pode mesmo impulsionar o
tirano um bocado, de certa forma.
Da mesma forma, quando há um clima de obediência subserviente a um
tirano, como agora vemos nos EUA, quando o ambiente popular sente que contar a
verdade acerca do tirano e do seu sistema é mal educado, e quando o
ambiente do tirano castiga de forma esmagadora a honestidade e ridiculariza a
paixão, nessa altura é claro que ser verdadeiramente honesto
é ser castigado e ridicularizado e, pelo menos em parte, fará com
que contar a verdade pareça aberrante.
Então, se há esse risco, qual a solução?
Deveríamos privar-nos de dizer a verdade? Ou deveríamos dizer
mais verdades? Deveríamos acarinhar os nossos prováveis
inimigos? Ou deveríamos organizar e fortalecer os nossos
prováveis amigos?
Chávez precisa de aliados, mas não daqueles que dizem, ei,
Chávez é um tipo fixe, mesmo se se excede. Chávez precisa
de aliados que façam frente ao imperialismo e a injustiça em
todas as suas formas, mesmo até à última, mas aliados que
também tragam a Chávez críticas e ideias que sejam
contrárias à sua maneira de pensar e agir. Chávez a
abraçar Admadinenjad foi má notícia. As suas
sugestões, em outros contextos, de que a constituição
venezuelana seria emendada para lhe permitir governar mais tempo é
má notícia. Na verdade para ele também. Mas aquele
Chávez das Nações Unidas não estava, com o seu
discurso, a dirigir-se sobretudo às pessoas sentadas à sua
frente. Estava a dirigir-se ao povo de todos os EUA e de todo o mundo, a
dizer, na essência: é bom que se rebelem. E nós devemos
fazê-lo.
Assim, aquilo era uma lição. Quando vocês insultam as
elites, a vossa eficácia depende menos das palavras particulares do que
quantas outras pessoas estão dispostas a fazer o mesmo ou ainda mais do
que você. Chávez pensa em termos de obter
modificações maciças. A maioria das pessoas à
esquerda pensa em termos de evitar calamidades. O contraste é total e
está no âmago dos incidentes recentes. Podemos aprender algo desta
atitude, penso eu.
Chávez acenou com o livro de Chomsky,
Hegemony or Survival
. Penso que também há lições a tirar daí,
mesmo para nós, apesar de já conhecemos a obra de Chomsky. Antes
de mais nada, uma pessoa, mesmo aquela com grandes vantagens sociais, pode
humildemente ajudar outras. Podes levantar-te e dizer aos outros, ei, este
livro, vídeo, conjunto de ideias, ou organização é
digno do teu tempo. Podes usar quaisquer avenidas abertas para ti, seja o
acesso à tua família ou amigos, ou aos teus colegas de escola
ou de trabalho, ou aos meios de comunicação locais, ou mesmo
aos grandes
mass media,
ou até a todo o mundo, para fazer chegar o teu conselho e
indicações que consideres serem dignas. E deves fazer isso.
Todos nós devemos fazer isso. Normalmente, não o fazemos.
Suspeito de que temos vergonha de o fazer. Chávez, provavelmente,
não compreenderia isso. Tal como ele antes insultou Bush, também
antes celebrara Chomsky reiteradamente, com pouco efeito. Este Chávez
tenta e tenta outra vez. Perde, perde, perde, ganha.
Diria que Chavez não pensou consigo próprio: eles vão
insultar-me nas suas colunas e comentários, então será
melhor não arrasar Bush e louvar Chomsky. O ridículo subsequente
pode reduzir a minha estatura, então é melhor evitá-lo.
Arrasar Bush e louvar Chomsky parecerá estranho, é melhor
evitá-lo. Se fizer isso, estarei a dar tempo para elevar outra pessoa,
e não eu próprio, será melhor evitá-lo. Mostrarei
raiva e paixão, e isso marcar-me-á como um mal educado e
incorrecto, rotular-me-á como indigno e mesmo imaturo, e será
melhor eu evitá-lo. Quantos de nós pensam assim, e quão
frequentemente, é uma questão que vale a pena considerar.
Ao invés disso, suspeito que Chávez pensou: o trabalho de
Chomsky merece e precisa ser mais divulgado. Ele afectou-me e precisa afectar
outros. Tentarei promovê-lo para elevar a consciência das pessoas
usando todos os meios à minha disposição, o que na verdade
ele tem vindo a fazer, embora com muito menos sucesso, desde há algum
tempo. Claro, não podemos impingir um autor, um livro, uma
organização, ou uma ideia, e lançá-la para a cena
internacional, interna ou local na nossa primeira, quinta ou décima
tentativa. Nem todos somos líderes de um país dinâmico.
Nem todos temos um palco gigante, nem sequer um grande palco, ou um qualquer
palco, onde possamos cantar as nossas canções. Mas podemos
continuar a fazer a nossa parte, onde quer que estejamos. E o facto é
que nós, que sabemos tanto, não fazemos a nossa parte.
Não indicamos as fontes das ideias nem as discutimos com os colegas de
trabalho, de escola, e famílias em todas as oportunidades. Se temos
públicos para o nosso trabalho, não usamos nossos escritos
conversas para promover o trabalho valioso feito por outros além de
nós próprios. Porquê? Às vezes temos medo das
represálias. Às vezes temos medo de parecer tolos. Às
vezes, apenas não o queremos fazer porque não nos diz respeito.
Estimular e recomendar, não é comigo. Duvido que funcione.
Não me incomodo a tentar. Assim, a previsão do falhanço
está completa. Bem, precisamos de ultrapassar isso.
Mais uma vez, penso que a diferença entre Chávez e a maioria dos
outros, mesmo à esquerda, é que Chávez procura vencer, e
nós ao contrário evitarmos com bastante frequência alienar
os chamados sábios ou mesmo convocá-los. Procuramos evitar
aborrecer as
pessoas de que gostamos ou aquelas de quem possamos gostar, ou que possam
gostar de nós. Procuramos evitar parecer estranhos a alguém, ou
cometer erros, ou parecer estridentes e coléricos, ou advogados em causa
própria, ou apaixonados. Precisamos de ultrapassar tudo isso.
O que fez Chávez parecer tão peculiar a muita gente é que
aquilo que ele fez era na verdade incrivelmente peculiar. Fazer frente ao
líder classista, racista, sexista, autoritário dos EUA e
não poupar palavras para insultar a sua imoralidade, foi na verdade
incrivelmente peculiar. Assim, enfrentemos todos nós o poder e o
privilégio e deitemos fora o estigma de o fazer. Faz parte da
remoção do cheiro a enxofre do ar.
E, no pólo oposto, Chávez celebrou e ajudou aberta e
agressivamente um conjunto de ideias anti-classistas, anti-racistas,
anti-sexistas e anti-autoritárias e o seu autor. E também isso
foi peculiar. E todos nós também podemos fazer isso, para muitos
autores capazes e ideias valiosas. Na verdade, devíamos fazê-lo
de modo a que a construção de comportamentos solidários
possa seja típica, ao invés de parecer marciana.
Deveríamos fazer isso mais vezes e tão abertamente que
mudássemos do dizer a verdade para o sentimento acerca da verdade de
modo que uma preocupação e sensibilidade de alma possa senti-la,
e finalmente actuar com a verdade e os nosso sentimentos humanos de acordo com
os amplos interesses humanos e na busca de objectivos convincentes e valiosos.
Para o inferno com os ditames do mercado e dos seus sabichões.
26/Setembro/2006
O original encontra-se em
http://www.zmag.org/content/showarticle.cfm?SectionID=72&ItemID=11050
Tradução de Pedro Santos.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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