E o império foge pela calada da noite
Um telegrama da insuspeita Associated Press, assinado por Kathy Gannon,
testemunha o seguinte: em 2 de Julho "os Estados Unidos deixaram a base
aérea de Bagram no Afeganistão ao cabo de quase 20 anos apagando
as luzes e fugindo durante a noite sem notificarem o novo comandante
afegão da base, que deu pela partida dos norte-americanos mais de duas
horas depois, segundo fontes afegãs".
O império e o seu aparelho de guerra, a NATO, escapuliram-se de fininho
pela calada da noite tentando evitar a repetição das imagens de
1975 em Saigão, quando chefes militares e diplomatas norte-americano
treparam apressadamente para helicópteros na altura em que os patriotas
vietnamitas estavam a entrar na cidade. O secretismo cobarde da
operação não esconde nem disfarça, porém,
mais uma derrota militar dos Estados Unidos e dos aliados entre os quais
Portugal desta feita na sua guerra mais longa, que duplicou o tempo de
envolvimento no Vietname.
Para trás ficaram centenas de milhar de baixas o número
real provavelmente jamais será conhecido milhares de
milhões de dólares queimados, um país em guerra e
completamente destruído. Mais um, a juntar ao Iraque, à
Síria e à Líbia, para citar apenas os casos mais recentes.
Missão cumprida, proclamou o comandante em chefe de turno da
"civilização ocidental", Joseph Biden. "Os Estados
Unidos fizeram o que vieram fazer
apanhar os terroristas que nos atacaram
em 11 de Setembro; agora é hora de voltar para casa". Assim se
escreve a história, falsificando-a, contando com a memória cada
vez mais curta das opiniões públicas trabalhadas por uma
comunicação social agindo em modo de propaganda. Segundo a
narrativa oficial, o suposto responsável pelos atentados de 11 de
Setembro, Ussama bin Laden, foi assassinado por forças especiais
norte-americanas em 2 de Maio de 2011, há dez anos: a "hora de
voltar para casa" está, portanto, uma década atrasada.
É verdade que também não pode ter-se a certeza sobre a
morte de bin Laden nessa data, porque os matadores se apressaram a
lançar o cadáver aos peixes. A operação serviu
principalmente para honra e glória do presidente dos Estados Unidos que,
até ao momento, terá cometido mais execuções
extrajudiciais: Barack Obama. De quem Biden foi vice-presidente.
E não é necessário fazer uma grande pesquisa de
documentação para concluir que os objectivos oficiais declarados
da invasão do Afeganistão, iniciada no Outono de 2001, prometiam
um país reconstruído, democrático e estável, livre
de terroristas uma vez derrotados os Talibã e os seus protegidos. Ora os
Talibã controlam hoje 80% do Afeganistão apenas menos 5%
do que em 2001 , em Cabul (e pouco mais) reinam um presidente e uma
classe política corrupta, as eleições, quando as
há, são exemplos de falsificação; e, segundo as
notícias mais recentes, os ex-ocupantes e os seus homens de mão
estão a ressuscitar as milícias terroristas fundadas pela CIA nos
anos oitenta e que foram exterminadas pelos Talibã entre 1992 e 1996.
Bagram era um símbolo
A fuga imperial de Bagram é um episódio que marca, como nenhum
outro, a derrota dos Estados Unidos e da NATO no Afeganistão. A base de
Bagram era um símbolo e um centro operacional da ocupação.
Situada apenas a 60 quilómetros de Cabul, era também o principal
ponto de apoio militar ao regime instalado na capital e que nunca conseguiu
estender a sua acção muito para lá do perímetro da
principal cidade do país.
Bagram era também um dos principais centros de tortura que caracterizam
as guerras eternas impostas pelos Estados Unidos e aliados como
sustentáculos de uma ordem mundial unipolar assente no imperialismo e no
colonialismo militar da NATO ao serviço da globalização do
regime único neoliberal.
Embora a fuga de Bagram marque o fim de 20 anos de invasão e
ocupação do Afeganistão pela NATO, a
intervenção norte-americana no país iniciou-se muito
antes, há 42 anos, ainda na administração do presidente
democrata James Carter e do seu chefe do Conselho de Segurança Nacional,
o estratego Zbigniew Brzezinski.
Foi nessa altura que os Estados Unidos, por intermédio da CIA e
também do Paquistão, França, Reino Unido e Arábia
Saudita criaram a malha de terrorismo de fachada islâmica para combaterem
indirectamente a presença militar da União Soviética no
apoio ao governo progressista de Cabul. É impossível ter a
noção do que seria hoje o Afeganistão sob a
acção continuada dos governos da República
Democrática designadamente em áreas como a
educação, a saúde, as vias de comunicação, o
abastecimento de água e energia e os direitos das mulheres se a
sua actividade não tivesse sido sabotada pelo terrorismo disseminado
pelos Estados Unidos e que deu origem a aberrações como Bin
Laden, a al-Qaida e os gangues de criminosos conhecidos como Mujahidines.
É importante recordar que a República Democrática do
Afeganistão sobreviveu três anos à retirada militar
soviética, em 1989, e apenas foi derrotada quando a Rússia do
inqualificável Boris Ieltsin e da sua corte de "reformadores"
lhe retirou apoio, dando assim alento às várias
facções terroristas, que não tardaram em entrar numa
destruidora guerra civil.
Por outro lado, ao contrário da narrativa oficial consumida no Ocidente,
a retirada soviética não foi descoordenada, nem desordenada, nem
um caos, muito menos uma debandada pela calada da noite.
Escreve o analista Lester W. Grau na publicação
Slavic Militay Studies:
"Há uma narrativa e uma percepção comum de que os
soviéticos foram derrotados e expulsos do Afeganistão. Isso
não é verdade. Quando os soviéticos deixaram o
Afeganistão em 1989 fizeram-no de forma coordenada, deliberada e
profissional, deixando para trás um governo a funcionar, uma
situação militar melhorada e um esforço consultivo e
económico que garantiu a viabilidade e a continuidade do governo. A
retirada foi baseada num plano diplomático, económico e militar
coordenado, permitindo que as forças soviéticas se retirassem em
boa ordem e que o governo afegão sobrevivesse".
Pelo contrário, a acção norte-americana baseada nos grupos
terroristas islâmicos com mentalidade medieval, que hoje funcionam como
braços supletivos da NATO, por exemplo nas guerras eternas na
Síria e no Iraque, tal como aconteceu na Líbia, foi o
princípio do fim da experiência modernizadora do
Afeganistão, afundando o país num caos ingovernável
só travado transitória e parcialmente pelos Talibã em 1996.
Da mesma maneira, a retirada norte-americana e da NATO simbolizada em Bagram,
sob o signo da missão cumprida, deixa o Afeganistão como um
país dilacerado e mergulhado na guerra civil
Mas a partida da guarnição da base pela calada da noite significa
uma retirada de facto ou uma transição para a
continuação da influência norte-americana agora sob o
formato de guerra híbrida, tal como acontece na Síria e em grande
parte do Iraque? Muitos indícios apontam para esta metamorfose da
ocupação, mas os Talibã, progredindo no terreno sobre a
ineficácia e o desmoronamento das forças de segurança
montadas pelos ocupantes, têm muito a dizer quanto às
próximas etapas no país.
Guerra híbrida
Desde os anúncios da retirada da NATO do Afeganistão os
avanços dos Talibã em direcção a Cabul tornaram-se
ainda mais fulgurantes. Os antigos "estudantes de teologia" da etnia
pashtun, fundados em 1994 em Candaar, mas com raízes também no
Paquistão, controlam hoje mais de metade dos 421 distritos
afegãos, que correspondem a uma área de 80% do território.
Nos últimos tempos os avanços não têm sido feitos
com base em combates mas sim em negociações,
rendições, deserções e fugas dos efectivos das
forças de segurança criadas e treinadas pela NATO. Em Cabul
teme-se que o Exército Nacional Afegão possa desintegrar-se em
algumas semanas.
Segundo mensagens que os dirigentes Talibã têm feito circular, por
exemplo na sequência de uma recente visita a Moscovo, o grupo não
pretende atingir Cabul através da guerra, mantendo-se no quadro das
lentas negociações de Doha, no Qatar, para encontrar uma
coligação governativa que possa pacificar e estabilizar o
país.
O grupo islâmico alega, por outro lado, que deixou de ser etnicamente
homogéneo e que actualmente cerca de 30% dos seus quadros dirigentes
são não-pashtuns, designadamente tajiques, usbeques e até
xiitas hazaras, seus inimigos jurados durante os anos noventa.
A direcção Talibã adverte, contudo, que tem "linhas
vermelhas" como a de não tolerar que o actual clã
governativo do presidente Ashraf Ghani faça parte de uma futura
coligação governamental e a de não permitir quaisquer
tropas da NATO no terreno, sejam forças especiais norte-americanas,
mercenários contratados por Washington ou Bruxelas ou mesmo as tropas
turcas que actualmente fazem segurança ao aeroporto de Cabul.
"Qualquer membro da NATO será considerado ocupante", definem
os Talibã.
O mais provável, porém, é que o grupo islamita venha a
confrontar-se não com o precocemente decrépito exército
afegão mas sim com os braços multifacetados de uma guerra
híbrida montada em Washington e que terá como meta principal
manter a instabilidade no Afeganistão para que o país não
possa inserir-se nos enquadramentos regionais euroasiáticos e,
sobretudo, da Ásia Central que estão a der desenvolvidos pela
Rússia e a China, muitas vezes através da
cooperação mútua e de forma complementar.
Os documentos secretos do Ministério britânico da Defesa
encontrados recentemente num caixote do lixo numa paragem rodoviária no
Sudeste de Inglaterra e divulgados pela BBC especificam que Washington e
Londres devem cuidar da permanência de forças especiais no
Afeganistão que lhes permitam manter o controlo das rotas do ópio
que nas últimas duas décadas financiaram os serviços
secretos britânicos e norte-americanos, por exemplo na
execução de operações clandestinas. Nunca o
Afeganistão deu origem a tanta heroína produzida a partir do
ópio como durante a ocupação da NATO
responsabilizando-se, segundo dados da ONU, por cerca de 90% do mercado mundial.
Neste contexto cabem duas perguntas: será que a CIA consegue conservar a
sua rota da heroína afegã para sustentar as
operações clandestinas? Se não conseguir, para onde
será transferido esse esforço?
Não há que ter muitas dúvidas quanto à
autenticidade dos documentos secretos encontrados "por acaso" em
Inglaterra. Neles está descrita a provocação contra a
Rússia protagonizada pela passagem do destroyer britânico Defender
pelas águas da Crimeia em prontidão de combate,
operação entretanto consumada.
Além das forças especiais são várias as componentes
encaradas pelos estrategos norte-americanos para o aparelho de guerra
híbrida contra o Afeganistão.
O jornal
USA Today
revelou que o Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos
está a debater "as novas formas consideradas necessárias
para manter vários milhares de contratados ocidentais", isto
é, mercenários, de modo permitir a actividade de
"helicópteros e aeronaves cruciais para a
movimentação das pequenas mas excelentes forças especiais
afegãs".
Além disso, ainda segundo o
USA Today,
"uma vez que as tropas terrestres da NATO se tenham retirado, o poder
aéreo da aliança baseado na região pode servir para ajudar
a recém-criada Força Aérea afegã a apoiar as suas
tropas no solo quando estiverem sob ataque".
Não se trata, contudo, apenas de "apoio". As missões
Estados Unidos/NATO no Golfo, especialmente no Iraque, manterão o
Afeganistão sob mira, inclusivamente para bombardear o país, se
necessário. O comandante do dispositivo não será já
um general colocado no Afeganistão mas o general Frank McKenzie do
CentCom, responsável operacional do Médio Oriente. Trata-se de
utilizar a "capacidade além horizonte", segundo a terminologia
do Pentágono.
Ainda de acordo com o
USA Today,
nas reflexões do Conselho de Segurança Nacional sugere-se que
"algumas áreas que permaneçam sob o controlo dos
Talibã devem ser contra-atacadas sempre que haja alvos da
liderança do grupo importantes para as forças afegãs".
Além disso, "as mais apropriadas das muitas milícias
afegãs", os grupos mujahidines em fase de
ressurreição promovida pelo governo de Cabul,
"deverão ser colocadas na folha de pagamentos do governo e
integradas num plano geral de campanha. Os pagamentos devem ser
condicionados" o cúmulo do cinismo "a alguma
medida de contenção e respeito por vidas inocentes por parte
desses grupos". Os Mujahidines ficaram conhecidos pelos saques e chacinas
cometidos sob os olhos dos tutores da CIA.
Sabe-se igualmente que a Turquia está a transferir para o
Afeganistão cerca de dois mil mercenários islâmicos do
contingente da al-Qaida que ocupa Idleb, na Síria, provavelmente uigures
originários da região chinesa de Xijiang, reforçando as
bolsas do ISIS e da organização fundada pela CIA e Bin Laden que
se reactivaram no Afeganistão sob a ocupação da NATO.
Parte desses efectivos foram transferidos numa operação especial
montada pela CIA quando o Isis perdeu a sua "capital" na
Síria, a cidade de Raqqa.
Não deixou ainda de ser uma ideia acarinhada na sede da NATO, em
Bruxelas, a de continuar a manter o Afeganistão como um paraíso
para o terrorismo islâmico e respectiva exportação,
funcionando sob controlo do Paquistão.
De tudo isto resulta muito claro que a nova fase da influência militar e
política dos Estados Unidos e da NATO sobre o Afeganistão se
orienta pela necessidade de alimentar a guerra civil, prolongar os conflitos
interétnicos e interconfessionais, perpetuar a instabilidade e impedir a
reconstrução do país. Ou seja, um foco de caos para
dificultar as acções que se orientam pela
reconstrução do país, a integração e o
desenvolvimento regional.
Os movimentos da China e da Rússia
Neste quadro, parece natural que se registem aproximações da
China, da Rússia e do próprio Irão em
relação aos Talibã, a organização que parece
em melhores condições para assumir um papel estabilizador no
Afeganistão.
Em Junho realizou-se uma reunião trilateral entre representantes da
China, dos Talibã e do Paquistão a propósito da qual o
ministro chinês dos Negócios Estrangeiros saudou "o
rápido retorno" do grupo afegão "à vida
política no país", fez votos de "uma
recuperação pacífica do Afeganistão" e
prometeu "expandir laços económicos e comerciais".
A China está interessada em estender ao Afeganistão o seu
projecto de corredor económico com o Paquistão integrado na nova
rota da seda ou Iniciativa Cintura e Estrada (ICE). O primeiro passo seria a
construção de uma autoestrada ligando Cabul a Peshavar
através da passagem do Khyber. O troço seria um sector do
corredor económico China-Paquistão, que inclui a
construção do estratégico aeroporto de Tashkurgan do lado
do Xijiang na estrada do Caracórum, a apenas 50 quilómetros do
Paquistão e também nas proximidades do Afeganistão e do
porto de Gwadar, no Balochistão.
Pequim entende também que a pacificação do
Afeganistão seria muito importante para reduzir as acções
desenvolvidas por terroristas do Isis contra a região uigur do Xijiang.
Moscovo tem sido palco de reuniões interafegãs e recebeu
recentemente a visita de uma delegação Talibã ao mais alto
nível o que faz admitir uma próxima retirada do grupo
islamita da lista de organizações consideradas terroristas pela
Rússia.
Um Afeganistão pacificado é igualmente um objectivo que se
enquadra nos esforços de integração regional desenvolvidos
pela Rússia através da Organização de
Cooperação de Xangai e da União Económica
Euroasiática, que incluem projectos sintonizados com
acções da China na região.
A fuga da NATO de Bagram pela calada da madrugada de 2 de Julho não foi,
na perspectiva norte-americana, um movimento para induzir a
pacificação do Afeganistão. Há perspectivas claras
sobre o futuro do país em termos de guerra e paz. O colonialismo
ocidental continuará a privilegiar a guerra, ainda que em novos
formatos, mas tanto em Washington como em Bruxelas seria aconselhável
reflectir sobre a tradição afegã de ser um
cemitério de impérios.
O mais certo, porém, é que a cegueira geopolítica
prevaleça.
20/Julho/2021
Ver também:
Russia-China advance Asian roadmap for Afghanistan
, Pepe Escobar, 15/Julho
Say hello to the diplo-Taliban
, Pepe Escobar, 09/Julho
A Saigon moment in the Hindu Kush
, Pepe Escobar, 07/Julho
[*]
Jornalista.
O original encontra-se em
www.oladooculto.com/noticias.php?id=931
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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