Os sete sapatos sujos
Começo pela confissão de um sentimento conflituoso: é um
prazer e uma honra ter recebido este convite e estar aqui convosco. Mas, ao
mesmo tempo, não sei lidar com este nome pomposo:
oração de sapiência. De propósito,
escolhi um tema sobre o qual tenho apenas algumas, mal contidas,
ignorâncias. Todos os dias somos confrontados com o apelo exaltante de
combater a pobreza. E todos nós, de modo generoso e patriótico,
queremos participar nessa batalha. Existem, no entanto, várias formas de
pobreza. E há, entre todas, uma que escapa às estatísticas
e aos indicadores numéricos: é a penúria da nossa
reflexão sobre nós mesmos. Falo da dificuldade de nos pensarmos
como sujeitos históricos, como lugar de partida e como destino de um
sonho.
Falarei aqui na minha qualidade de escritor tendo escolhido um terreno que
é a nossa interioridade, um território em que somos todos
amadores. Neste domínio ninguém tem licenciatura, nem pode ter a
ousadia de proferir orações de sapiência. O
único segredo, a única sabedoria é sermos verdadeiros,
não termos medo de partilhar publicamente as nossas fragilidades.
É isso que venho fazer, partilhar convosco algumas das minhas
dúvidas, das minhas solitárias cogitações.
Começo por um fait-divers. Há agora um anúncio nas nossas
estações de rádio em que alguém pergunta à
vizinha:
diga-me minha senhora, o que é que se passa em sua casa, o seu
filho é chefe de turma, as suas filhas casaram muito bem, o seu marido
foi nomeado director, diga-me, querida vizinha, qual é o segredo?
E a senhora responde:
é que lá em casa nós comemos arroz marca
(não digo a marca porque não me pagaram este momento
publicitário).
Seria bom que assim que fosse, que a nossa vida mudasse só por
consumirmos um produto alimentar. Já estou a ver o nosso Magnifico
Reitor a distribuir o mágico arroz e a abrirem-se no ISCTEM as portas
para o sucesso e para a felicidade. Mas ser-se feliz é, infelizmente,
muito mais trabalhoso.
No dia em que eu fiz 11 anos de idade, a 5 de Julho de 1966, o Presidente
Kenneth Kaunda veio aos microfones da Rádio de Lusaka para anunciar que
um dos grandes pilares da felicidade do seu povo tinha sido construído.
Não falava de nenhuma marca de arroz. Ele agradecia ao povo da
Zâmbia pelo seu envolvimento na criação da primeira
universidade no país. Uns meses antes, Kaunda tinha lançado um
apelo para que cada zambiano contribuísse para construir a Universidade.
A resposta foi comovente: dezenas de milhares de pessoas corresponderam ao
apelo. Camponeses deram milho, pescadores ofertaram pescado,
funcionários deram dinheiro. Um país de gente analfabeta
juntou-se para criar aquilo que imaginavam ser uma página nova na sua
história. A mensagem dos camponeses na inauguração da
Universidade dizia: nós demos porque acreditamos que, fazendo isto, os
nossos netos deixarão de passar fome.
Quarenta anos depois, os netos dos camponeses zambianos continuam sofrendo de
fome. Na realidade, os zambianos vivem hoje pior do que viviam naquela altura.
Na década de 60, a Zâmbia beneficiava de um Produto Nacional Bruto
comparável aos de Singapura e da Malásia. Hoje, nem de perto nem
de longe, se pode comparar o nosso vizinho com aqueles dois países da
Ásia.
Algumas nações africanas podem justificar a permanência da
miséria porque sofreram guerras. Mas a Zâmbia nunca teve guerra.
Alguns países podem argumentar que não possuem recursos. Todavia,
a Zâmbia é uma nação com poderosos recursos
minerais. De quem é a culpa deste frustrar de expectativas? Quem falhou?
Foi a Universidade? Foi a sociedade? Foi o mundo inteiro que falhou? E porque
razão Singapura e Malásia progrediram e a Zâmbia regrediu?
Falei da Zâmbia como um país africano ao acaso. Infelizmente,
não faltariam outros exemplos. O nosso continente está repleto de
casos idênticos, de marchas falhadas, esperanças frustradas.
Generalizou-se entre nós a descrença na possibilidade de mudarmos
os destinos do nosso continente. Vale a pena perguntarmo-nos: o que está
acontecer? O que é preciso mudar dentro e fora de África?
Estas perguntas são sérias. Não podemos iludir as
respostas, nem continuar a atirar poeira para ocultar responsabilidades.
Não podemos aceitar que elas sejam apenas preocupação dos
governos.
Felizmente, estamos vivendo em Moçambique uma situação
particular, com diferenças bem sensíveis. Temos que reconhecer e
ter orgulho que o nosso percurso foi bem distinto. Acabamos recentemente de
presenciar uma dessas diferenças. Desde 1957, apenas seis entre 153
chefes de estado africanos renunciaram voluntariamente ao poder. Joaquim
Chissano é o sétimo desses presidentes. Parece um detalhe mas
é bem indicativo que o processo moçambicano se guiou por outras
lógicas bem diversas.
Contudo, as conquistas da liberdade e da democracia que hoje usufruímos
só serão definitivas quando se converterem em cultura de cada um
de nós. E esse é ainda um caminho de gerações.
Entretanto, pesam sobre Moçambique ameaças que são comuns
a todo o continente. A fome, a miséria, as doenças, tudo isso
nós partilhamos com o resto de África. Os números
são aterradores: 90 milhões de africanos morrerão com SIDA
nos próximos 20 anos. Para esse trágico número,
Moçambique terá contribuído com cerca de 3 milhões
de mortos. A maior parte destes condenados são jovens e representam
exactamente a alavanca com que poderíamos remover o peso da
miséria. Quer dizer, África não está só
perdendo o seu próprio presente: está perdendo o chão onde
nasceria um outro amanhã.
Ter futuro custa muito dinheiro. Mas é muito mais caro só ter
passado. Antes da Independência, para os camponeses zambianos não
havia futuro. Hoje o único tempo que para eles existe é o futuro
dos outros.
Os desafios são maiores que esperança? Mas nós não
podemos senão ser optimistas e fazer aquilo que os brasileiros chamam de
levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. O pessimismo é um
luxo para os ricos.
Meus senhores e minhas senhoras
A pergunta crucial é esta: o que é que nos separa desse futuro
que todos queremos? Alguns acreditam que o que falta são mais quadros,
mais escolas, mais hospitais. Outros acreditam que precisamos de mais
investidores, mais projectos económicos. Tudo isso é
necessário, tudo isso é imprescindível. Mas para mim,
há uma outra coisa que é ainda mais importante. Essa coisa tem um
nome: é uma nova atitude. Se não mudarmos de atitude não
conquistaremos uma condição melhor. Poderemos ter mais
técnicos, mais hospitais, mais escolas, mas não seremos
construtores de futuro.
Falo de uma nova atitude mas a palavra deve ser pronunciada no plural, pois ela
compõe um conjunto vasto de posturas, crenças, conceitos e
preconceitos. Há muito que venho defendendo que o maior factor de atraso
em Moçambique não se localiza na economia mas na incapacidade de
gerarmos um pensamento produtivo, ousado e inovador. Um pensamento que
não resulte da repetição de lugares comuns, de
fórmulas e de receitas já pensadas pelos outros.
Às vezes me pergunto: de onde vem a dificuldade em nos pensarmos como
sujeitos da História? Vem sobretudo de termos legado sempre aos outros o
desenho da nossa própria identidade. Primeiro, os africanos foram
negados. O seu território era a ausência, o seu tempo estava fora
da História. Depois, os africanos foram estudados como um caso
clínico. Agora, são ajudados a sobreviver no quintal da
História.
Estamos todos nós estreando um combate interno para domesticar os nossos
antigos fantasmas. Não podemos entrar na modernidade com o actual fardo
de preconceitos. À porta da modernidade precisamos de nos
descalçar. Eu contei sete sapatos sujos que necessitamos deixar na
soleira da porta dos tempos novos. Haverá muitos. Mas eu tinha que
escolher e sete é um número mágico.
O primeiro sapato: a ideia que os culpados são sempre os outros e
nós somos sempre vítimas
Nós já conhecemos este discurso. A culpa já foi da guerra,
do colonialismo, do imperialismo, do apartheid, enfim, de tudo e de todos.
Menos nossa. É verdade que os outros tiveram a sua dose de culpa no
nosso sofrimento. Mas parte da responsabilidade sempre morou dentro de casa.
Estamos sendo vítimas de um longo processo de
desresponsabilização. Esta lavagem de mãos tem sido
estimulada por algumas elites africanas que querem permanecer na impunidade. Os
culpados estão à partida encontrados: são os outros, os da
outra etnia, os da outra raça, os da outra geografia.
Há um tempo atrás fui sacudido por um livro intitulado
Capitalist Nigger: The Road to Success
de um nigeriano chamado Chika A. Onyeani. Reproduzi
num jornal nosso um texto desse economista que é um apelo veemente para
que os africanos renovem o olhar que mantém sobre si mesmos. Permitam-me
que leia aqui um excerto dessa carta.
Caros irmãos: Estou completamente cansado de pessoas que só
pensam numa coisa: queixar-se e lamentar-se num ritual em que nos fabricamos
mentalmente como vítimas. Choramos e lamentamos, lamentamos e choramos.
Queixamo-nos até à náusea sobre o que os outros nos
fizeram e continuam a fazer. E pensamos que o mundo nos deve qualquer coisa.
Lamento dizer-vos que isto não passa de uma ilusão.
Ninguém nos deve nada. Ninguém está disposto a abdicar
daquilo que tem, com a justificação que nós também
queremos o mesmo. Se quisermos algo temos que o saber conquistar. Não
podemos continuar a mendigar, meus irmãos e minhas irmãs.
Quarenta anos depois da Independência continuamos a culpar os
patrões coloniais por tudo o que acontece na África dos nossos
dias. Os nossos
dirigentes nem sempre são suficientemente honestos para aceitar a sua
responsabilidade na pobreza dos nossos povos. Acusamos os europeus de roubar e
pilhar os recursos naturais de África. Mas eu pergunto-vos: digam-me,
quem está a convidar os europeus para assim procederem, não somos
nós? (fim da citação)
Queremos que outros nos olhem com dignidade e sem paternalismo. Mas ao mesmo
tempo continuamos olhando para nós mesmos com benevolência
complacente: Somos peritos na criação do discurso
desculpabilizante. E dizemos:
Que alguém rouba porque, coitado, é pobre (esquecendo que
há milhares de outros pobres que não roubam)
Que o funcionário ou o polícia são corruptos porque,
coitados, tem um salário insuficiente (esquecendo que ninguém,
neste mundo, tem salário suficiente)
Que o político abusou do poder porque, coitado, na tal África
profunda, essas práticas são antropológicamente legitimas
A desresponsabilização é um dos estigmas mais graves que
pesa sobre nós, africanos de Norte a Sul. Há os que dizem que se
trata de uma herança da escravatura, desse tempo em que não se
era dono de si mesmo. O patrão, muitas vezes longínquo e
invisível, era responsável pelo nosso destino. Ou pela
ausência de destino.
Hoje, nem sequer simbolicamente, matamos o antigo patrão. Uma das formas
de tratamento que mais rapidamente emergiu de há uns dez anos para
cá foi a palavra patrão. Foi como se nunca tivesse
realmente morrido, como se espreitasse uma oportunidade histórica para
se relançar no nosso quotidiano. Pode-se culpar alguém desse
ressurgimento? Não. Mas nós estamos criando uma sociedade que
produz desigualdades e que reproduz relações de poder que
acreditávamos estarem já enterradas.
Segundo sapato: a ideia de que o sucesso não nasce do trabalho
Ainda hoje despertei com a notícia que refere que um presidente africano
vai mandar exorcizar o seu palácio de 300 quartos porque ele escuta
ruídos estranhos durante a noite. O palácio é
tão desproporcionado para a riqueza do país que demorou 20 anos a
ser terminado. As insónias do presidente poderão nascer
não de maus espíritos mas de uma certa má
consciência.
O episódio apenas ilustra o modo como, de uma forma dominante, ainda
explicamos os fenómenos positivos e negativos. O que explica a
desgraça mora junto do que justifica a bem-aventurança. A equipe
desportiva ganha, a obra de arte é premiada, a empresa tem lucros, o
funcionário foi promovido? Tudo isso se deve a quê? A primeira
resposta, meus amigos, todos a conhecemos. O sucesso deve-se à boa
sorte. E a palavra boa sorte quer dizer duas coisas: a
protecção dos antepassados mortos e protecção dos
padrinhos vivos.
Nunca ou quase nunca se vê o êxito como resultado do
esforço, do trabalho como um investimento a longo prazo. As causas do
que nos sucede (de bom ou mau) são atribuídas a forças
invisíveis que comandam o destino. Para alguns esta visão causal
é tida como tão intrinsecamente africana que
perderíamos identidade se dela abdicássemos. Os
debates sobre as autenticas identidades são sempre
escorregadios. Vale a pena debatermos sim, senão, não poderemos
reforçar uma visão mais produtiva e que aponte para uma atitude
mais activa e interventiva sobre o curso da História.
Infelizmente olhamo-nos mais como consumidores do que produtores. A ideia de
que África pode produzir arte, ciência e pensamento é
estranha mesmo para muitos africanos. Ate aqui o continente produziu recursos
naturais e força laboral. Produziu futebolistas, dançarinos,
escultores. Tudo isso se aceita, tudo isso reside no domínio daquilo que
se entende como natureza . Mas já poucos aceitarão que os
africanos possam ser produtores de ideias, de ética e de modernidade.
Não é preciso que os outros desacreditem. Nós
próprios nos encarregamos dessa descrença.
O ditado diz. o cabrito come onde está amarrado. Todos
conhecemos o lamentável uso deste aforismo e como ele fundamenta a
acção de gente que tira partido das situações e dos
lugares. Já é triste que nos equiparemos a um cabrito. Mas
também é sintomático que, nestes provérbios de
conveniência nunca nos identificamos como os animais produtores, como
é por exemplo a formiga. Imaginemos que o ditado muda e passar a ser
assim: Cabrito produz onde está amarrado. Eu aposto que,
nesse caso, ninguém mais queria ser cabrito.
Terceiro sapato- O preconceito de quem critica, é um inimigo
Muitas acreditam que, com o fim do monopartidarismo, terminaria a
intolerância para com os que pensavam diferente. Mas a intolerância
não é apenas fruto de regimes. É fruto de culturas,
é o resultado da História. Herdamos da sociedade rural uma
noção de lealdade que é demasiado paroquial. Esse
desencorajar do espírito crítico é ainda mais grave quando
se trata da juventude. O universo rural é fundado na autoridade da
idade. Aquele que é jovem, aquele que não casou nem teve filhos,
esse não tem direitos, não tem voz nem visibilidade. A mesma
marginalização pesa sobre a mulher.
Toda essa herança não ajuda a que se crie uma cultura de
discussão frontal e aberta. Muito do debate de ideias é, assim,
substituído pela agressão pessoal. Basta diabolizar quem pensa de
modo diverso. Existe uma variedade de demónios à
disposição: uma cor política, uma cor de alma, uma cor de
pele, uma origem social ou religiosa diversa.
Há neste domínio um componente histórico recente que
devemos considerar: Moçambique nasceu da luta de guerrilha. Essa
herança deu-nos um sentido épico da história e um profundo
orgulho no modo como a independência foi conquistada. Mas a luta armada
de libertação nacional também cedeu, por inércia, a
ideia de que o povo era uma espécie de exército e podia ser
comandado por via de disciplina militar. Nos anos
pós-independência, todos éramos militantes, todos
tínhamos uma só causa, a nossa alma inteira vergava-se em
continência na presença dos chefes. E havia tantos chefes. Essa
herança não ajudou a que nascesse uma capacidade de
insubordinação positiva.
Faço-vos agora uma confidência. No início da década
de 80 fiz parte de um grupo de escritores e músicos a quem foi dada a
incumbência de produzir um novo Hino Nacional e um novo Hino para o
Partido Frelimo. A forma como recebemos a tarefa era indicadora dessa
disciplina: recebemos a missão, fomos requisitados aos nossos
serviços, e a mando do Presidente Samora Machel fomos fechados numa
residência na Matola, tendo-nos sido dito: só saem daí
quando tiverem feito os hinos. Esta relação entre o poder e os
artistas só é pensável num dado quadro histórico. O
que é certo é que nós aceitámos com dignidade essa
incumbência, essa tarefa surgia como uma honra e um dever
patriótico. E realmente lá nos comportamos mais ou menos bem. Era
um momento de grandes dificuldades
e as tentações eram
muitas. Nessa residência na Matola havia comida, empregados,
piscina
num momento em que tudo isso faltava na cidade. Nos primeiros
dias, confesso nós estávamos fascinados com tanta mordomia e
ficávamos preguiçando e só corríamos para o piano
quando ouvíamos as sirenes dos chefes que chegavam. Esse sentimento de
desobediência adolescente era o nosso modo de exercermos uma pequena
vingança contra essa disciplina de regimento.
Na letra de um dos hinos lá estava reflectida essa tendência
militarizada, essa aproximação metafórica a que já
fiz referência:
Somos soldados do povo
Marchando em frente
Tudo isto tem que ser olhado no seu contexto sem ressentimento. Afinal, foi
assim, que nasceu a Pátria Amada, este hino que nos canta como um
só povo, unido por um sonho comum.
Quarto sapato: a ideia que mudar as palavras muda a realidade
Uma vez em Nova Iorque um compatriota nosso fazia uma exposição
sobre a situação da nossa economia e, a certo momento, falou de
mercado negro. Foi o fim do mundo. Vozes indignadas de protesto se ergueram e o
meu pobre amigo teve que interromper sem entender bem o que se estava a passar.
No dia seguinte recebíamos uma espécie de pequeno
dicionário dos termos politicamente incorrectos. Estavam banidos da
língua termos como cego, surdo, gordo, magro, etc.
Nós fomos a reboque destas preocupações de ordem
cosmética. Estamos reproduzindo um discurso que privilegia o superficial
e que sugere que, mudando a cobertura, o bolo passa a ser comestível.
Hoje assistimos, por exemplo, a hesitações sobre se devemos dizer
negro ou preto. Como se o problema estivesse nas
palavras, em si mesmas. O curioso é que, enquanto nos entretemos com
essa escolha, vamos mantendo designações que são realmente
pejorativas como as de mulato e de monhé.
Há toda uma geração que está aprendendo uma
língua a língua dos workshops. É uma língua
simples uma espécie de crioulo a meio caminho entre o inglês e o
português. Na realidade, não é uma língua mas um
vocabulário de pacotilha. Basta saber agitar umas tantas palavras da
moda para falarmos como os outros isto é, para não dizermos nada.
Recomendo-vos fortemente uns tantos termos como, por exemplo:
desenvolvimento sustentável
awarenesses ou accountability
boa governação
parcerias sejam elas inteligentes ou não
comunidades locais
Estes ingredientes devem ser usados de preferência num formato
powerpoint". Outro segredo para fazer boa figura nos workshops
é fazer uso de umas tantas siglas. Porque um workshopista de categoria
domina esses códigos. Cito aqui uma possível frase de um
possível relatório:
Os ODMS do PNUD equiparam-se ao NEPAD
da UA e ao PARPA do GOM.
Para bom entendedor meia sigla basta.
Sou de um tempo em que o que éramos era medido pelo que fazíamos.
Hoje o que somos é medido pelo espectáculo que fazemos de
nós mesmos, pelo modo como nos colocamos na montra. O CV, o
cartão de visitas cheio de requintes e títulos, a bibliografia de
publicações que quase ninguém leu, tudo isso parece
sugerir uma coisa: a aparência passou a valer mais do que a capacidade
para fazermos coisas.
Muitas das instituições que deviam produzir ideias estão
hoje produzindo papéis, atafulhando prateleiras de relatórios
condenados a serem arquivo morto. Em lugar de soluções
encontram-se problemas. Em lugar de acções sugerem-se novos
estudos.
Quinto sapato A vergonha de ser pobre e o culto das aparências
A pressa em mostrar que não se é pobre é, em si mesma, um
atestado de pobreza. A nossa pobreza não pode ser motivo de
ocultação. Quem deve sentir vergonha não é o pobre
mas quem cria pobreza.
Vivemos hoje uma atabalhoada preocupação em exibirmos falsos
sinais de riqueza. Criou-se a ideia que o estatuto do cidadão nasce dos
sinais que o diferenciam dos mais pobres.
Recordo-me que certa vez entendi comprar uma viatura em Maputo. Quando o
vendedor reparou no carro que eu tinha escolhido quase lhe deu um ataque.
Mas esse, senhor Mia, o senhor necessita de uma viatura
compatível. O termo é curioso:
compatível.
Estamos vivendo num palco de teatro e de representações: uma
viatura já é não um objecto funcional. É um
passaporte para um estatuto de importância, uma fonte de vaidades. O
carro converteu-se num motivo de idolatria, numa espécie de
santuário, numa verdadeira obsessão promocional.
Esta doença, esta religião que se podia chamar viaturolatria
atacou desde o dirigente do Estado ao menino da rua. Um miúdo que
não sabe ler é capaz de conhecer a marca e os detalhes todos dos
modelos de viaturas. É triste que o horizonte de ambições
seja tão vazio e se reduza ao brilho de uma marca de automóvel.
É urgente que as nossas escolas exaltem a humildade e a simplicidade
como valores positivos. A arrogância e o exibicionismo não
são, como se pretende, emanações de alguma essência
da cultura africana do poder. São emanações de quem toma a
embalagem pelo conteúdo.
Sexto Sapato- A passividade perante a injustiça
Estarmos dispostos a denunciar injustiças quando são cometidas
contra a nossa pessoa, o nosso grupo, a nossa etnia, a nossa religião.
Estamos menos dispostos quando a injustiça é praticada contra os
outros. Persistem em Moçambique zonas silenciosas de injustiça,
áreas onde o crime permanece invisível. Refiro-me em particular
à:
violência domestica (40 por cento dos crimes resultam de
agressão domestica contra mulheres, esse é um crime
invisível)
violência contra as viúvas
à forma aviltante como são tratados muitos dos trabalhadores
aos maus tratos infligidos às crianças
Ainda há dias ficamos escandalizados com o recente anúncio que
privilegiava candidatos de raça branca. Tomaram-se medidas imediatas e
isso foi absolutamente correcto. Contudo, existem convites à
discriminação que são tão ou mais graves e que
aceitamos como sendo naturais e inquestionáveis.
Tomemos esse anúncio do jornal e imaginemos que ele tinha sido redigido
de forma correcta e não racial. Será que tudo estava bem? Eu
não sei se todos estão a par de qual é a tiragem do jornal
Notícias. São 13 mil exemplares. Mesmo se aceitarmos que cada
jornal é lido por 5 pessoas, temos que o numero de leitores é
menor que a população de um bairro de Maputo. É dentro
deste universo que circulam convites e os acessos a oportunidades. Falei na
tiragem mas deixei de lado o problema da circulação. Por que
geografia restrita circulam as mensagens dos nossos jornais? Quanto de
Moçambique é deixado de fora ?
É verdade que esta discriminação não é
comparável à do anúncio racista porque não é
resultado de acção explícita e consciente. Mas os efeitos
de discriminação e exclusão destas práticas sociais
devem ser pensados e não podem cair no saco da normalidade. Esse
bairro das 60 000 pessoas é hoje uma nação
dentro da nação, uma nação que chega primeiro, que
troca entre si favores, que vive em português e dorme na almofada na
escrita.
Um outro exemplo. Estamos administrando Antiretrovirais a cerca de 30 mil
doentes com SIDA. Esse número poderá, nos próximos anos,
chegar aos 50 mil. Isso significa que cerca de um milhão quatrocentos e
cinquenta mil doentes ficam excluídos de tratamento. Trata-se de uma
decisão com implicações éticas terríveis.
Como e quem decide quem fica de fora? É aceitável, pergunto, que
a vida de um milhão e meio de cidadãos esteja nas mãos de
um pequeno grupo técnico ?
Sétimo sapato - A ideia de que para sermos modernos temos que imitar os
outros
Todos os dias recebemos estranhas visitas em nossa casa. Entram por uma caixa
mágica chamada televisão. Criam uma relação de
virtual familiaridade. Aos poucos passamos a ser nós quem acredita estar
vivendo fora, dançando nos braços de Janet Jackson. O que os
vídeos e toda a sub-indústria televisiva nos vem dizer não
é apenas comprem. Há todo um outro convite que
é este: sejam como nós. Este apelo à
imitação cai como ouro sobre azul: a vergonha em sermos quem
somos é um trampolim para vestirmos esta outra máscara.
O resultado é que a produção cultural nossa se está
convertendo na reprodução macaqueada da cultura dos outros. O
futuro da nossa música poderá ser uma espécie de hip-hop
tropical, o destino da nossa culinária poderá ser o Mac Donald's.
Falamos da erosão dos solos, da deflorestação, mas a
erosão das nossas culturas é ainda mais preocupante. A
secundarização das línguas moçambicanas (incluindo
da língua portuguesa) e a ideia que só temos identidade naquilo
que é folclórico são modos de nos soprarem ao ouvido a
seguinte mensagem: só somos modernos se formos americanos.
O nosso corpo social tem a uma história similar a de um individuo. Somos
marcados por rituais de transição: o nascimento, o casamento, o
fim da adolescência, o fim da vida.
Eu olho a nossa sociedade urbana e pergunto-me: será que queremos
realmente ser diferentes? Porque eu vejo que esses rituais de passagem se
reproduzem como fotocópia fiel daquilo que eu sempre conheci na
sociedade colonial. Estamos dançando a valsa, com vestidos compridos,
num baile de finalistas que é decalcado daquele do meu tempo. Estamos
copiando as cerimónias de final do curso a partir de modelos europeus da
Inglaterra medieval. Casamo-nos de véus e grinaldas e atiramos para
longe da Julius Nyerere tudo aquilo que possa sugerir uma cerimónia mais
enraizada na terra e na tradição moçambicanas.
Meus Senhores e minhas senhoras
Falei da carga de que nos devemos desembaraçar para entrarmos a corpo
inteiro na modernidade. Mas a modernidade não é uma porta apenas
feita pelos outros. Nós somos também carpinteiros dessa
construção e só nos interessa entrar numa modernidade de
que sejamos também construtores.
A minha mensagem é simples: mais do que uma geração
tecnicamente capaz, nós necessitamos de uma geração capaz
de questionar a técnica. Uma juventude capaz de repensar o país e
o mundo. Mais do que gente preparada para dar respostas, necessitamos de
capacidade para fazer perguntas. Moçambique não precisa apenas de
caminhar. Necessita de descobrir o seu próprio caminho num tempo
enevoado e num mundo sem rumo. A bússola dos outros não serve, o
mapa dos outros não ajuda. Necessitamos de inventar os nossos
próprios pontos cardeais. Interessa-nos um passado que não esteja
carregado de preconceitos, interessa-nos um futuro que não nos venha
desenhado como um receita financeira.
A Universidade deve ser um centro de debate, uma fábrica de cidadania
activa, uma forja de inquietações solidárias e de rebeldia
construtiva. Não podemos treinar jovens profissionais de sucesso num
oceano de miséria. A Universidade não pode aceitar ser reprodutor
da injustiça e da desigualdade. Estamos lidando com jovens e com aquilo
que deve ser um pensamento jovem, fértil e produtivo. Esse pensamento
não se encomenda, não nasce sozinho. Nasce do debate, da pesquisa
inovadora, da informação aberta e atenta ao que de melhor
está surgindo em África e no mundo.
A questão é esta: fala-se muito dos jovens. Fala-se pouco com os
jovens. Ou melhor, fala-se com eles quando se convertem num problema. A
juventude vive essa condição ambígua, dançando
entre a visão romantizada (ela é a seiva da Nação)
e uma condição maligna, um ninho de riscos e
preocupações (a SIDA, a droga, o desemprego).
Senhores e senhoras
Não foi apenas a Zâmbia a ver na educação aquilo que
o naufrago vê num barco salva-vidas. Nós também depositamos
os nossos sonhos nessa conta.
Numa sessão pública decorrida no ano passado em Maputo um
já idoso nacionalista disse, com verdade e com coragem, o que já
muitos sabíamos. Ele confessou que ele mesmo e muitos dos que, nos anos
60, fugiam para a FRELIMO não eram apenas motivados por
dedicação a uma causa independentista. Eles arriscaram-se e
saltaram a fronteira do medo para terem possibilidade de estudar. O
fascínio pela educação como um passaporte para uma vida
melhor estava presente num universo em que quase ninguém podia estudar.
Essa restrição era comum a toda a África. Até 1940
o número de africanos que frequentavam escolas secundárias
não chegava a 11 000. Hoje, a situação melhorou e esse
número foi multiplicado milhares e milhares de vezes. O continente
investiu na criação de novas capacidades. E esse investimento
produziu, sem dúvida, resultados importantes.
Aos poucos se torna claro, porém, que mais quadros técnicos
não resolvem, só por si, a miséria de uma
nação. Se um país não possuir estratégias
viradas para a produção de soluções profundas
então todo esse investimento não produzirá a desejada
diferença. Se as capacidades de uma nação estiverem
viradas para o enriquecimento rápido de uma pequena elite então
de pouco valerá termos mais quadros técnicos.
A escola é um meio para querermos o que não temos. A vida,
depois, nos ensina a termos aquilo que não queremos. Entre a escola e a
vida resta-nos ser verdadeiros e confessar aos mais jovens que nós
também não sabemos e que, nós, professores e pais,
também estamos à procura de respostas.
Com o novo governo ressurgiu o combate pela auto-estima. Isso é correcto
e é oportuno. Temos que gostar de nós mesmos, temos que acreditar
nas nossas capacidades. Mas esse apelo ao amor-próprio não pode
ser fundado numa vaidade vazia, numa espécie de narcisismo fútil
e sem fundamento. Alguns acreditam que vamos resgatar esse orgulho na
visitação do passado. É verdade que é preciso
sentir que temos raízes e que essas raízes nos honram. Mas a
auto-estima não pode ser construída apenas de materiais do
passado.
Na realidade, só existe um modo de nos valorizar: é pelo
trabalho, pela obra que formos capazes de fazer. É preciso que saibamos
aceitar esta condição sem complexos e sem vergonha: somos pobres.
Ou melhor, fomos empobrecidos pela História. Mas nós fizemos
parte dessa História, fomos também empobrecidos por nós
próprios. A razão dos nossos actuais e futuros fracassos mora
também dentro de nós.
Mas a força de superarmos a nossa condição
histórica também reside dentro de nós. Saberemos como
já soubemos antes conquistar certezas que somos produtores do nosso
destino. Teremos mais e mais orgulho em sermos quem somos: moçambicanos
construtores de um tempo e de um lugar onde nascemos todos os dias. É
por isso que vale a pena aceitarmos descalçar não só os
sete mas todos os sapatos que atrasam a nossa marcha colectiva. Porque a
verdade é uma: antes vale andar descalço do que tropeçar
com os sapatos dos outros.
[*]
Oração de sapiência proferida em Março de 2005 no
Instituto Superior de Ciências e Tecnologia de Moçambique
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O original encontra-se em
http://www.macua.org/miacouto/MiaCoutoISCTEM2005.htm
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Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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