Ambientalismo ingénuo ou ecologia real?
O caminho soberano para a sustentabilidade
por Guillaume Suing
entrevistado por Rafaela Molina Vargas
[*]
O semanário boliviano
La Epoca
, apoiante do
MAS
, publicou uma entrevista que reflete a necessidade de os atuais movimentos
progressistas lutarem contra os partidos ambientalistas
pró-imperialistas e ao mesmo tempo comprometerem-se concretamente na via
cubana da agroecologia e na difícil luta contra as transnacionais da
agricultura.
Guillaume Suing é professor de biologia, membro do Círculo Henri
Barbusse de Cultura Operária e Popular e movimento Comunista
Rassemblement Communiste (RC). Autor de
Evolution: la preuve par Marx. Dépasser la légende noire de Lyssenko
(2016);
L'Écologie Réelle. Une histoire soviétique et cubaine
(2018) e
L'origine de la vie, une siècle après Oparine
(2020), edições Delga.
Também é autor de numerosos artigos sobre as políticas
agrárias e energéticas anti-imperialistas e os limites do
"ecologismo" ocidental, no blog
Germinal Le Journal
.
La Epoca (LA): O atual "senso comum" tende a opor o progresso
à protecção da natureza. No entanto, esta dicotomia parece
mascarar a real contradição Capital / Natureza. Como se explica
esta contradição ligada às contradições
capitalistas no sistema globalizado actual?
Guillaume Suing (GS): De facto, há uma contradição entre a
história do homem e a da biosfera. De certa forma, o homem tornou-se o
"jardineiro" do mundo, o que sem dúvida torna difícil
encontrar uma harmonia relativa, um reequilíbrio entre a
satisfação das necessidades humanas e a indispensável
regeneração dos recursos da Terra.
Porém, já que estamos falando de
"contradições" e "dialéctica", devemos
olhar mais de perto e entender como a famosa contradição que
aparentemente nos opõe a uma "natureza" idealizada e
supostamente "em equilíbrio", esconde muitas questões
ideológicas. Na realidade, deparamo-nos com duas
contradições muito distintas, cada uma com sua temporalidade.
A primeira é de facto uma contradição profunda da
história humana, a do Homo sapiens que explora os recursos naturais
procurando, tanto quanto possível, não "determinar" a
"natureza", mas permitir uma reconstituição racional
dos recursos gastos. Essa contradição data globalmente do
Neolítico (início das grandes domesticações), e
não do capitalismo recente, é consubstancial à nossa
espécie. É, para falar em termos marxistas, uma
contradição de tipo não antagónico. Ou seja, uma
contradição que pode ser resolvida sem destruir um dos
pólos.
Alguns querem negar a necessidade de repor os recursos ambientais considerados
inesgotáveis (destruição do pólo
"natureza"), outros querem regressar à Idade da Pedra e ao
malthusianismo para limitar a satisfação das necessidades humanas
em nome de uma "natureza" antropomorfizada ou mesmo divinizada
(destruição do pólo "espécie humana").
Estas duas posições são igualmente reaccionárias,
no verdadeiro sentido da palavra, e até reflectem uma tendência
potencialmente fascista (fuga em frente "futurista" e niilista ou
malthusianismo nostálgico por um passado feudal idealizado).
A segunda contradição é, por outro lado, uma
contradição completamente antagónica. É claro que a
contradição "Capital / Natureza", aspecto particular de
uma contradição maior, Capital / Trabalho (o trabalho humano
incluindo, é claro, o trabalho de gestão do meio ambiente a longo
prazo), só pode resolver-se destruindo um dos pólos. Não
é crível que o pólo "trabalho Humano" "se
suicide" a longo prazo. Esta é a razão pela qual um
verdadeiro "ecologismo" só pode ser anti-capitalista, levando
em consideração as possíveis derivas ideológicas de
um enfoque unicamente "natural".
Este último, lembremos, é um facto:
o imperialismo usa, entre outras coisas, a ideologia "verde" para
lutar contra as múltiplas experiências revolucionárias e de
independência nacional dos países do sul.
É, portanto, o pólo do capital que deve ser destruído
para superar esta contradição. Por outras palavras, não se
trata de se ficar pelo romantismo ou, pelo contrário, pela
"ciência pura" para alcançar esta
superação, mas de fazer política... e isto é muito
mais difícil!
LA: Na mesma linha, muitos ecologistas detractores da esquerda
latino-americana, como Eduardo Gudynas, opõem-se ao suposto extrativismo
(ou ao neo-extrativismo) dos governos de Evo Morales, Rafael Correa, etc. Como
entender essa crítica ao extrativismo?
GS: A maioria dos povos que pretendem libertar-se do domínio
imperialista dos Estados Unidos ou da Europa herdou um modelo económico
colonial, centrado na monocultura ou na especialização de
matérias-primas para exportação. É assim. Se a
esquerda antiliberal busca nesses países uma forma de se libertar do
jugo imperialista preservando o meio ambiente, deve armar-se com uma linha
política adequada: na época da revolução russa, a
jovem União Soviética havia herdado de um modelo feudal a partir
do qual seria muito complexo e extremamente difícil de alcançar
uma colectivização da terra e uma nacionalização
imediata dos grandes meios de produção.
A "Nova Política Económica" (NEP) exigida por Lenine no
início da década de 1920, consistia em permitir uma forma
controlada de capitalismo agrário, durante alguns anos, para desenvolver
as forças produtivas necessárias a uma transição
para o socialismo real (que pelo contrário, não era
necessário nos países industrializados e ricos do Ocidente, por
exemplo). Quer dizer, uma política verdadeiramente
revolucionária, não retórica, mas de factos, é
necessariamente sinuosa, embora mantendo claramente o seu rumo.
O facto de Evo Morales, por exemplo, ter sabido preservar a agroecologia dos
altos planaltos, ao abrigo do agronegócio da agricultura
industrializada, ao mesmo tempo que permitiu a curto prazo a sua
detenção noutras regiões, foi uma forma de resistir
(proteger a riqueza nacional em termos de biodiversidade e agroecologia), ao
mesmo tempo que evitava uma declaração de guerra imediata a um
inimigo ainda muito poderoso.
O mesmo ocorre com a extracção de lítio: para desenvolver
uma agroecologia sustentável, base da soberania alimentar e uma
política energética independente e igualmente sustentável,
são necessários meios, muitas vezes não muito
"visíveis", mas muito reais.
Em particular, a investigação em agrobiologia é
necessária para superar o impasse histórico da
"agroquímica" e da agricultura intensiva inspirada por ela e,
portanto, universidades e centros de pesquisa caros. É necessário
também que os trabalhadores rurais tenham um nível de
formação suficiente para aplicar, como "agrónomos do
próprio solo", práticas agroecológicas mais complexas
do ponto de vista científico do que as da monocultura intensiva do final
do século XX. Portanto, é necessário um sistema
educacional poderoso e democrático.
Tudo isso exige, tal como o desenvolvimento de complexas técnicas de
extracção, energias renováveis locais, gastos
públicos consideráveis, que o sector privado jamais
aceitará pagar, pois se trata de investimentos a longo prazo. Isso
não pode ser alcançado da noite para o dia e é obviamente
a acumulação de forças produtivas que deve preceder (e
acompanhar) a realização de uma reforma agrária
sustentável e agroecológica de longo prazo, e não o
contrário.
Se a extracção do lítio beneficia exclusivamente os
predadores imperialistas, esta é uma política reaccionária
que deve ser combatida, é evidente. Mas se a extracção do
lítio permite, no longo prazo, financiar outro modelo energético
e agrícola para o país, o que se poderia chamar de "NEP
ecológica", devemos apoia-la, mesmo que ecologistas
"ingénuos" se coloquem do outro lado da barricada, alinhando
com todos aqueles que não aceitam que o povo seja sustentavelmente
soberano.
Nesse sentido, é claro que a teoria ecológica malthusiana do
"decrescimento" é uma forma, útil ao imperialismo, de
sabotagem, a qualquer política agroecológica soberana nos
países semicolonizados do Sul.
LA: No teu livro "A Ecologia Real", afirmas que as lutas pela
conservação da natureza surgem e prolongam-se nas lutas
anti-capitalistas. Em que sentido, Cuba e antes a União Soviética
são exemplos históricos disto?
GS: Temos os factos históricos que a propaganda procura ocultar. O
primeiro desses factos é que Cuba socialista é agora líder
no desenvolvimento da agroecologia.
A ONU indicou claramente que é o único país que atingiu a
"fase de desenvolvimento sustentável".
Não foi sem esforço, evidentemente. Mas todos os movimentos
ambientalistas ocidentais procuram escondê-lo, para continuar a
incriminar os "extrativistas" da Alianza Bolivariana para los Pueblos
de Nuestra América Tratado de Comercio de los Pueblos (
ALBA-TCP
).
A realidade é difícil de reconstruir, porque muitas mentiras,
calúnias e confusões deliberadas se espalharam sobre Cuba.
É claro que a sua conversão à agroecologia data do
período especial dos anos 1990. Sem a possibilidade técnica de
continuar com a agricultura intensiva que vinha sendo efectivamente aplicada
nos seus solos durante décadas de bloqueio, Cuba conseguiu por meio de
uma série de políticas proactivas, pôr em prática um
modelo que noutros países era apenas teórico. Isso deu-se pelas
possibilidades oferecidas pelo próprio sistema socialista: o Estado, que
é o dono da terra, pode decretar, sem qualquer tipo de
coação por parte dos latifundiários vendidos ao
imperialismo, a reorganização dos campos em pequenas unidades
cedidas em usufruto livre (sem pagamento de renda) para colectivos de
trabalhadores.
Além disso, pode proibir legalmente o uso de agrotóxicos em todo
o território nacional (algo impensável num país
capitalista). Da mesma forma, o Estado tem conseguido financiar um sistema
educacional de alto nível e desenvolver a investigação em
agrobiologia. Por fim, graças ao facto de o Estado estar em contacto
directo com os sindicatos camponeses (a ANAP, que faz parte do movimento
camponês internacional Via Campesina), tem conseguido mobilizar um grande
número de camponeses, que são os actores desta
transição agrícola, através de um movimento muito
eficaz denominado "Campesino a Campesino" (transmissão de
conhecimentos tradicionais entre trabalhadores rurais).
Trata-se de um verdadeiro êxito que permitiu a Cuba produzir mais, e de
forma mais diversificada do que antes dos anos 1990, para satisfazer grande
parte das necessidades alimentares da população. A
cooperação de Cuba com a
ALBA-TCP e com outros países como a China, não pôs em causa
este modelo, que não é transitório, como podem pensar os
críticos anti-castristas. Pelo contrário, ao lado das grandes
missões internacionais de médicos cubanos, agora também
são enviados agrónomos cubanos em missões para ajudar os
camponeses de outros países interessados no desenvolvimento deste modelo
agroecológico.
O modelo agrícola de tipo soviético vigente na ilha antes de 1990
foi introduzido por uma URSS pós-Khrushchev, cuja política
agrária havia sido modelada, do meu ponto de vista, com um
claríssimo "atraso" pela dos Estados Unidos e da Europa
Ocidental após a Segunda Guerra Mundial. Com efeito, para a URSS
não foi uma política inerente ao sistema socialista, mas pelo
contrário uma flexibilização relativamente ao cerco
capitalista, que nesta perspectiva, marcou paradoxalmente o início do
seu enfraquecimento e da sua dependência das exportações.
A revolução de 1959 em Cuba, embora se demarcasse até
certo ponto do "irmão mais velho" soviético ao
preservar as tradições agrícolas locais e uma certa
protecção voluntarista do seu meio ambiente, não escapou
à influência de um modelo agrícola que, na realidade,
não era especificamente socialista.
Pelo contrário, a URSS havia desenvolvido dos anos 1920 aos 1950 um
modelo baseado numa ciência do solo radicalmente diferente de sua
contraparte ocidental altamente reducionista. Os cientistas russos do solo,
como Dokuchaev, desenvolveram uma teoria dinâmica da fertilidade do solo,
da aclimatação das plantas, da policultura em grande escala e
sistemas agroflorestais, que culminou no "grande plano para a
transformação da natureza" de 1948.
Este "grande plano" é, em muitos aspectos, uma conquista
histórica da agroecologia (obviamente não era chamada assim na
época), no sentido de que se tratava de desenvolver a "vida do
solo" para que assim se desenvolvesse a vida das plantas cultivadas, ao
contrário da doutrina ocidental dos agroquímicos, que procuram
substituir-se às propriedades dos solos cultivados. De certa forma, a
resiliência e a produtividade daquele modelo, que procurava fertilizar
novas áreas não férteis ao invés de saturar
quimicamente solos esgotados, colocou a URSS na vanguarda do pensamento sobre a
agroecologia extensiva.
Não era uma teoria romântica sobre a beleza da natureza que
sustentava tal política, mas sim a consciência de que o meio
ambiente, a biodiversidade local, a qualidade dos solos cultivados,
constituíam uma parte crucial e fundamental da riqueza nacional e a
condição vital, a longo prazo, para a soberania e a
auto-suficiência alimentar. A mutação khrushcheviana, foi
uma fuga em frente aventureira visando apenas o curto prazo, visivelmente
fatal.
De certa forma, o facto de encontrarmos hoje na vanguarda da
experimentação agroecológica países como Cuba, a
Kerala comunista ou o Vietname (actualmente perseguido pela OMS a pedido dos
EUA por terem proibido os produtos da Monsanto nos seus campos), é muito
significativo para entender o entrelaçamento entre as
contradições Capital / Trabalho e Capital / Natureza.
Com esta análise, Guillaume Suing mostra que o caminho para a
sustentabilidade ambiental é indissociável da soberania e das
lutas anti-capitalistas, anti-imperialistas e anticoloniais. Da mesma forma,
destaca que é fundamental considerar os exemplos latino-americanos, como
os de Cuba, e os horizontes que traçam para os nossos povos. Segundo as
palavras atribuídas a Chico Mendes:
"Ecologia sem luta social é só jardinagem".
O livro
L'écologie à la lumiére du marxisme leninisme,
de Guillaume Suing, pode ser descarregado
aqui
(2666 kB).
[*]
Rafaela Molina Vargas: Bióloga, Mestre pela Universidade da
Sorbonne, ecosocialista, feminista, membro do Comando Madre Tierra de Bolivia.
O original encontra-se em
www.la-epoca.com.bo/...
Esta entrevista encontra-se em
https://resistir.info/
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