Relator da ONU sobre tortura: "Julian Assange é um prisioneiro
político"
por Nadja Vancauwenberghe
[*]
Nils Melzer, professor suíço de direito, foi o Relator Especial
das Nações Unidas sobre Tortura e outros Tratamentos ou Penas
Cruéis, Desumanas ou Degradantes. Antes de trabalhar para a ONU foi
assessor jurídico do Comité Internacional da Cruz Vermelha.
Lembra-se do tiroteio a sangue frio de civis iraquianos em
Assassinato colateral
? Lembra da tortura na Baía de Guantánamo? Lembra da
corrupção política revelada pelos cabos
diplomáticos? Essas foram algumas das histórias que foram
notícia em 2010, quando os principais jornais internacionais desde
The New York Times
a
The Guardian
e
Der Spiegel
se uniram à WikiLeaks para expor os crimes de guerra dos EUA e uma
longa lista de verdades vergonhosas que nossos governos haviam mantido em
segredo.
Dez anos depois, o homem que tornou isto possível está a lutar
pela sua liberdade em chocante indiferença, mantido em confinamento
solitário numa prisão de alta segurança e submetido a um
julgamento que peritos independentes qualificam como uma farsa devido
àquelas publicações de 2010 da WikiLeaks.
Exberliner
(EXB) conseguiu acesso às audiências do tribunal que
decidirão sobre seu destino: se o tribunal der sinal verde à sua
extradição para os EUA, ele enfrentará 175 anos de
prisão pelo seu alegado papel na revelação ao
público de documentos confidenciais que expuseram actos de tortura,
crimes de guerra e má conduta cometidos pelos EUA e seus aliados.
EXB compromete-se a relatar estas audiências judiciais que não
só selarão o futuro de um homem mas também
determinarão o futuro do jornalismo investigativo. Também faremos
uma série de entrevistas com especialistas independentes e jornalistas
que trabalharam nas fugas de informação, bem como com apoiantes
proeminentes.
Em primeiro lugar, N. Vancauwenberghe e J. Brown conversaram com Nils Melzer,
Relator Especial da ONU sobre Tortura e Outros Tratamentos ou Penas
Cruéis, Desumanos ou Degradantes, que investigou o caso.
Permaneça sintonizado!
Pode explicar o que se passará em Londres na segunda-feira?
Sim, Julian Assange terá que enfrentar a segunda parte de uma
audiência que decidirá sobre sua extradição para os
Estados Unidos. Esperançosamente, teremos então uma
decisão de primeira instância por volta de Outubro. Qualquer que
seja a decisão, espero que um recurso seja feito ao Tribunal Superior.
Provavelmente por Julian Assange, porque não espero que a primeira
instância recuse a extradição. Mas mesmo que
aconteça um milagre e o juiz se recuse a extraditá-lo, os EUA
certamente irão recorrer desta decisão
Então, acredita que a juíza dará luz verde à
extradição de Julian Assange para os EUA?
Sim. Agora, se o judiciário britânico for independente e aplicarem
a lei, não há como darem o sinal verde a esta
extradição. É óbvio para qualquer advogado
consciencioso que esta extradição não pode legalmente
prosseguir. Há a razão formal de que 17 das 18
acusações pelas quais Julian Assange foi indiciado são por
espionagem. Espionagem é o exemplo clássico de um delito
político e não se pode extraditar por delitos políticos. O
tratado de extradição entre os EUA e o Reino Unido proíbe
isso explicitamente.
Depois, há a décima oitava acusação, o chamado
hacking. Julian Assange nem mesmo é acusado de ter hackeado alguma
coisa, ele é acusado de tentar ajudar Chelsea Manning, sua fonte no
Exército dos EUA na época, a descodificar uma senha do sistema.
Embora essa senha não lhe tivesse dado acesso a novas
informações, ela teria permitido cobrir seus próprios
rastros dentro de um sistema para o qual já dispunha de
autorização de acesso total. Mesmo se o envolvimento de Assange
fosse comprovado, não seria um crime grave, mas apenas uma tentativa mal
sucedida de ajudar alguém a cometer um crime. Talvez ele pudesse ser
multado por isso ou ter uma pena de seis semanas de prisão. Mas todos
sabem que Julian Assange não foi sujeito a uma década de
confinamento, de perseguição e audiências de
extradição simplesmente para ser lançado à
prisão só por seis semanas.
Então, como explica que um país democrático como o Reino
Unido possa possivelmente avançar com a extradição se esta
é ilegal?
Meu entendimento é que, no caso de Julian Assange, o Reino Unido
está a tentar contornar o tratado de extradição
aplicável entre o Reino Unido e os Estados Unidos, que proíbe a
extradição por crimes políticos, baseando-se
exclusivamente na Lei de Extradição Britânica, uma lei
interna de importância subsidiária neste caso, que não
contém tal proibição. Em essência, o Reino Unido
selecciona e escolhe o que lhes permitirá extraditá-lo. Outra
coisa é que os direitos processuais de Assange foram violados de forma
tão severa e sistemática que, a esta altura, este processo de
extradição se tornou irreparavelmente arbitrário. Ele
não teve acesso adequado aos seus advogados, não teve uma
única reunião desde o confinamento em Março, teve acesso
extremamente restrito aos documentos do seu caso, só recebeu um
computador depois de um ano na prisão, não tem acesso à
internet e, além disso,
colaram as teclas do teclado para que ele não possa escrever.
É importante ressaltar que todas estas restrições
são claramente ilegais, porque Assange está preso apenas com o
propósito de impedir sua fuga durante o processo de
extradição. Não cumpre qualquer sentença criminal
mas, como qualquer cidadão, tem todo o direito de interagir livremente
com os seus advogados, amigos e familiares e de exercer a sua profissão
como bem entender.
Quais são os interesses do Reino Unido aqui? O que o governo do Reino
Unido tem contra Julian Assange para justificar um tratamento tão hostil?
Vamos começar com o quadro geral. Não se trata de Julian Assange
ou de qualquer crime que ele tenha cometido. Trata-se da WikiLeaks, a
metodologia introduzida pela WikiLeaks, que torna mais fácil para os
denunciantes divulgarem informações secretas sobre a má
conduta dos estados, permanecendo completamente anónimos, mesmo para a
Wikileaks. E a proliferação desta metodologia é o que os
estados temem não apenas os EUA, mas também o Reino Unido
e eu diria que qualquer outro estado do mundo, porque os governos em
todo o mundo dependem fortemente do sigilo para evitar o escrutínio
público. É por isso que Julian Assange não recebe muito
apoio de nenhum estado. O Equador foi a única excepção,
até que o seu novo presidente, Lenin Moreno, cedeu à
pressão económica dos EUA.
Isso é o que algumas pessoas chamariam de teoria da
conspiração governos que confiam no sigilo para cometer
suas malfeitorias e perseguem quem ouse denunciá-los.
Trabalho para governos e organizações internacionais há
mais de 20 anos. Portanto, sei como as decisões políticas
estão sendo tomadas e sei que cada vez mais os governos tentam ocultar
informações comprometedoras do público. Isto não
é algum tipo de teoria da conspiração. Todos nós
sabemos sobre Snowden e a NSA. Sabemos sobre as divulgações da
WikiLeaks. Também sabemos sobre o recente escândalo
"Cryptoleaks" e inúmeros outros casos de
corrupção e abuso, que são apenas a ponta visível
do iceberg. Se os estados que perseguem Assange realmente tivessem agido de boa
fé, pelo menos teriam processado as más condutas que foram
denunciadas, os crimes de guerra, a tortura, alguns dos mais graves crimes
imagináveis.
Mas o que vemos é que, apesar das evidências convincentes, nenhum
desses crimes jamais foi processado ou mesmo investigado. Isso prova claramente
que, ao perseguir Assange, estes governos não buscam justiça, mas
estão a tentar proteger a sua própria impunidade em crimes de
guerra, agressão e tortura. Os únicos soldados e oficiais
processados são os denunciantes ou os que cometeram crimes que
não estavam de acordo com o que o governo pretendia. Mas todos aqueles
que obedeceram ao governo na prática dos crimes gozam de total
impunidade. Isso inclui não apenas os americanos, mas é um
fenómeno que vemos por todo o mundo, em toda a parte. E a WikiLeaks
ameaça esta impunidade ao informar e capacitar o público quanto
à má conduta do governo.
Quando lançado há 10 anos, as fugas eram enormes. Os grandes
media, como
The Guardian
,
Le Monde
,
Der Spiegel
ou
New York Times,
colaboraram com Julian Assange na revelação desses crimes de
guerra e malfeitorias cometidos pelos Estados Unidos e seus aliados europeus.
Dez anos depois, poucos parecem se lembrar das suas próprias fugas e a
maioria dos grandes media não mostra muita simpatia por Assange. O que
aconteceu?
Inicialmente, os grandes media aproveitaram muito com o trabalho de Assange.
Eles perceberam que o WikiLeaks tinha revelações explosivas a
fazer, então saltaram para o comboio e participaram activamente da sua
publicação. Mas então devem ter percebido que deixaram os
EUA realmente irritados com isso. Não sei o que aconteceu nos
bastidores, se houve ameaças ou acordos, mas o que podemos ver é
que os grandes media logo a seguir voltaram a saltar do comboio. A maior parte
das instituições dos grandes media é quase totalmente
controlada por governos ou por grandes corporações que
estão afundadas na cama com governos e, portanto, não são
mais capazes ou desejam exercer sua função de "Quarto
Poder", de sujeitar o poder político ao público
escrutínio e informar e capacitar o público de forma objectiva e
imparcial. Ao invés disso, curvaram-se ao poder, traíram sua
vocação e ajudaram a demonizar Julian Assange ao serviço
dos seus senhores políticos e financeiros.
Então vê os media como cúmplices no modo como relatam sobre
Julian Assange?
Basta olhar para as manchetes durante seu tempo na embaixada do Equador:
Assange era acusado de andar de skate pela embaixada, jogar futebol, maltratar
seu gato e espalhar fezes na parede. Esse era o tipo de narrativa difundida
pelos media e era isso que nosso público informado e cosmopolita
discutia com fervor. Mas o caso Assange nunca foi sobre Julian Assange.
É sobre o elefante na sala que todos parecem ignorar: a má
conduta oficial de estados que Assange revelou. Em 2010, na época das
divulgações, todos ficaram chocados com os crimes de guerra, as
torturas, a corrupção e todo o público mundial
começou a falar sobre isso. Isso deixou os estados em causa muito
nervosos. Portanto, não foi por acaso que, em poucas semanas, as
autoridades suecas vazaram deliberadamente uma manchete para a imprensa
sensacionalista: Julian Assange é suspeito de estupro duplo.
Imediatamente, todo o público mundial obedientemente perdeu o interesse
em discutir os crimes dos poderosos, mudou de foco e passou a debater o
carácter e a personalidade de Julian Assange: ele é um violador,
um narcisista, um hacker, um espião?
Como leitor médio da imprensa, você pensa que está fazendo
pleno uso de sua liberdade de expressão e opinião ao discutir
livremente as manchetes dos media, mas não percebe que esses
tópicos de discussão já foram pré-seleccionados
para si e que eles reflectem apenas uma fracção
"higienizada" do que realmente está acontecendo. Se os media
apenas apresentarem manchetes perguntando se Julian Assange é um sujeito
bom ou mau, então já não discutiremos mais os crimes de
guerra.
Na verdade, quando menciona Julian Assange para as pessoas, normalmente
obtém essa reacção visceral de que ele é aquele
"bandido" e isso sobretudo devido às
alegações de agressão sexual na Suécia.
Mas esse é exactamente o ponto. Não sei se Julian Assange cometeu
agressão sexual ou não, mas o que sei é que a
Suécia nunca se importou em descobrir. Eles queriam usar essas
acusações a fim de desacreditá-lo. E depois de espalharem
activamente tais alegações por todos os cantos do mundo,
certificaram-se de que nunca haveria um julgamento adequado porque, como o
promotor finalmente admitiu em Novembro de 2019, eles nunca tiveram provas
suficientes para sequer apresentar acusações contra Julian
Assange.
Poderia por um instante concentrar-se nas acusações de
violação na Suécia, que é algo que realmente
investigado por si. Para muitos, ainda é um importante ponto
polêmico poucos percebem que as acusações foram
retiradas.
É uma forma clássica e muito conveniente de desacreditar
dissidentes políticos no tribunal da opinião pública. Ao
longo da história, alegações de traição,
blasfémia e, mais recentemente, má conduta sexual têm sido
usadas de forma muito eficiente para manipular a opinião pública
contra determinadas pessoas.
A Suécia fez de tudo para garantir que o público fosse informado
das acusações contra Assange, mesmo contra a vontade das mulheres
em questão, e depois procrastinou sistematicamente sua
investigação por quase uma década, antes de finalmente ser
forçada a abandonar o caso e admitir que nunca tiveram evidências
suficientes. Apesar do enorme dano infligido pela arbitrariedade deliberada dos
procedimentos suecos, nenhum funcionário sueco jamais foi sancionado e o
governo nunca se ofereceu para pagar a compensação devida a
Assange. Obviamente, o dano foi intencional.
Pode contar aos nossos leitores como se envolveu nisso? Porque você
também teve aquela reacção visceral quando ouviu pela
primeira vez o nome de Assange, certo?
A história começou em Dezembro de 2018, quando Julian Assange
ainda estava na embaixada. Seus advogados entraram em contacto com o meu
escritório e pediram-me para intervir em seu nome, dizendo que suas
condições de vida na embaixada do Equador haviam se tornado
desumanas. Quando vi seu nome, recusei imediatamente. Não era só
porque estivesse muito ocupado com outros casos, mas tinha essa
percepção quase subconsciente dele como um violador, narcisista,
espião e hacker, o que gerou minha reacção negativa. Eles
entraram em contacto comigo novamente três meses depois, dizendo que os
rumores estavam se tornando mais densos, que Assange poderia ser expulso da
embaixada em breve e extraditado para os Estados Unidos. Então
lembrei-me de que já me havia recusado a examinar esse caso, mas percebi
que não sabia direito por quê. Então comecei a
questionar-me: por que tive essa reacção visceral? Eu não
conhecia Julian Assange, nunca o havia encontrado, nunca havia realmente lidado
com a WikiLeaks. Mesmo as divulgações de 2010 não foram
realmente uma grande notícia para mim porque, na época, eu era um
consultor jurídico da Cruz Vermelha Internacional, havia sido destacado
em várias zonas de conflito e, portanto, tinha uma noção
bastante realista do que estava a acontecer nos bastidores. Mas ainda tinha
esse preconceito dentro de mim sobre Julian Assange ser um violador, um
narcisista, um espião e um hacker .
O que especificamente o fez mudar de ideia?
Primeiro, percebi que não tinha uma base objectiva para minhas
opiniões e, então, decidi examinar as evidências. E quando
o fiz, imediatamente vi que as coisas não estavam batendo, que havia
várias narrativas contraditórias e que era tão politizado
que era impossível para mim chegar a uma conclusão objectiva sem
fazer uma visita in loco a Assange. Para ser honesto, eu não esperava
que nada dramático resultasse disso. Mas tive que ir vê-lo
pessoalmente. Assim, na primeira semana de Abril de 2019, solicitei
oficialmente ao Equador que congelasse a situação e não
expulsasse Assange da embaixada. Anunciei também que pretendia
investigar o caso e solicitei autorização para visitar Julian
Assange dentro da Embaixada em 25 de Abril. Também pedi oficialmente
às autoridades britânicas que, caso Julian Assange ficasse sob sua
jurisdição, não o extraditassem para os Estados Unidos
porque temia que ele pudesse correr riscos graves para os seus direitos
humanos. Divulguei um comunicado de imprensa na sexta-feira à noite, 05
de Abril e na segunda-feira seguinte enviei minhas cartas oficiais ao Equador e
Reino Unido. Três dias depois, o asilo de Julian Assange foi rescindido,
sua nacionalidade equatoriana foi retirada e ele foi expulso da Embaixada
tudo sem o devido processo formal.
Acha que pode ter inadvertidamente acelerado sua expulsão e
prisão?
Olhando para trás, acho que pode muito bem ser o que aconteceu. Pode ser
que os Estados Unidos, o Equador e o Reino Unido quisessem tirar Assange da
embaixada e submetê-lo à custódia britânica antes que
o relator da ONU sobre tortura começasse a cavar um monte de sujeiras e
a complicar as coisas para eles. Mas essa reacção instintiva
pareceu-me muito estranha. Eu sabia por experiência própria que
estados que agem de boa fé normalmente não se comportam assim. Eu
era o relator da ONU, não um jornalista ou activista. Assange estava na
embaixada há seis anos e meio e não havia motivo para pressa.
Pedi aos estados envolvidos oficialmente, publicamente, formalmente e
diplomaticamente que congelassem a situação por duas semanas para
que eu pudesse investigar adequadamente as alegações feitas. E
então, três dias depois, eles sumariamente o privam do seu asilo e
da sua cidadania equatoriana e expulsam-no da embaixada sem nem mesmo lhe dar
uma oportunidade de se defender?
E não só isso, mas, no mesmo dia da sua prisão, as
autoridades britânicas chegam a arrastá-lo ao tribunal e
condená-lo por um crime numa audiência sumária realizada no
mesmo dia, uma audiência em que Assange é pessoalmente insultado
pelo juiz e em que as objecções do seu advogado de defesa contra
conflitos de interesse são varridas para debaixo do tapete sem
cerimónias. Isso, para mim, foi muito estranho.
Você acabou por visitá-lo na prisão de Belmarsh em Maio de
2019. Quais foram as suas conclusões?
Levei comigo dois médicos especialistas, um forense e um psiquiatra,
ambos especializados no exame de potenciais vítimas de tortura. Os
médicos examinaram-no separadamente, mas todos nós chegamos
à mesma conclusão: que Julian Assange apresentava sinais
típicos de exposição prolongada à tortura
psicológica. Isso incluía níveis extremamente elevados de
stress e ansiedade. Isso não é comparável ao stress e
ansiedade que qualquer réu pode enfrentar, mas sim níveis
traumatizantes de stress e ansiedade que começam a afectar seu sistema
nervoso e capacidades cognitivas de uma maneira que é fisicamente
mensurável. Esses sintomas traumáticos são o resultado
típico de isolamento, exposição constante a um ambiente
ameaçador e arbitrário, onde as regras estão a ser
alteradas o tempo todo e ninguém é confiável.
Existem duas coisas que são muito importantes para dizer; A primeira
é que o objectivo principal da tortura não é
necessariamente o interrogatório, mas muitas vezes a tortura é
usada para intimidar os outros, como uma demonstração ao
público do que acontece se você não obedecer ao governo.
Esse é o propósito do que foi feito a Julian Assange. Não
é para puni-lo ou coagi-lo, mas para silenciá-lo e fazê-lo
em plena luz do dia, tornando visível para todo o mundo que aqueles que
expõem a má conduta dos poderosos não gozam mais da
protecção da lei, mas essencialmente serão aniquilados.
É uma demonstração de poder absoluto e arbitrário.
Em segundo lugar, a tortura psicológica, ao contrário da tortura
física, não deixa vestígios que sejam facilmente
identificáveis de fora. Mas é extremamente destrutivo, pois visa
directamente desestabilizar e, em seguida, destruir a personalidade e o eu
interior.
Você pode dar exemplos concretos do tipo de tortura psicológica a
que Julian Assange foi submetido?
Nesse caso, os sintomas de tortura são o resultado de um processo
cumulativo. Ofuscando tudo está a ameaça constante de ser
extraditado para um país onde com certeza será exposto a um
julgamento-espectáculo politizado, privado de sua dignidade humana e dos
direitos do devido processo, e então preso em condições
cruéis, desumanas e degradantes pelo resto da sua vida. Então,
você tem vários estados cooperando e abusando deliberadamente de
seu sistema jurídico para garantir que isso realmente aconteça,
confinando-o por anos à embaixada do Equador como seu último
refúgio. Porém, mesmo dentro da embaixada ele foi constantemente
vigiado, privado de sua privacidade, exposto a ameaças de morte,
isolado, humilhado e demonizado.
Mas será isto tortura, realmente?
É disso que se trata a perseguição, ela funciona de forma
muito semelhante ao
bullying
que conhecemos nas escolas, no local de trabalho ou nas forças armadas
e que pode levar as vítimas a um colapso psicológico ou
até ao suicídio. Quando visitei Julian na prisão, ele
parecia organizado e normal, mas poderia dizer que estava ansioso,
constantemente a fazer-me perguntas e nunca me deixando respondê-las.
É um sinal típico de que o cérebro está
sobrecarregado, que a vítima quer entender e controlar a
situação, mas não consegue. Reconheci esse padrão
em muitos outros presos políticos em todo o mundo que estiveram
isolados. Não é uma anormalidade ou transtorno mental, mas uma
reacção normal de uma pessoa saudável à constante
exposição a abusos e arbitrariedade.
Então está a dizer que este é o caso de um prisioneiro
político detido em uma prisão europeia e submetido a tortura
psicológica?
Sim, claramente Julian Assange é um prisioneiro político, porque
nunca foi acusado de um crime real. As autoridades de acusação
sueca, que detêm a responsabilidade primária pela
demonização e abuso injustificados de Julian Assange, demoraram
quase uma década para "descobrir" que nunca tiveram provas
suficientes para acusá-lo de agressão sexual. Na verdade, a
promotora-chefe de Estocolmo reconheceu isso publicamente alguns dias
após as alegações iniciais em 2010, mas ela foi
rapidamente rejeitada e afastada do caso por um promotor superior.
A única coisa de que Assange já foi acusado e condenado foi o
delito administrativo de violação de fiança. Quando o
Reino Unido quis extraditar Assange para a Suécia e a Suécia
sistematicamente recusava-se a garantir que não o extraditaria para os
Estados Unidos, ele não se apresentou à polícia do Reino
Unido e procurou e recebeu asilo diplomático contra
perseguição política na embaixada do Equador. Sendo o
asilo da perseguição um direito humano fundamental, Assange tinha
até uma justificativa legal para não respeitar suas
condições de fiança. Além disso, estas
condições de fiança foram emitidas em
relação a um processo sueco que teve de ser encerrado por falta
de provas. E as acusações nos EUA são tão
obviamente arbitrárias e em violação directa da liberdade
fundamental de opinião e expressão que a sua natureza
política simplesmente não pode ser ignorada. Então, sim,
na minha opinião Julian Assange é um prisioneiro político.
Julian Assange cumpriu a pena por violação da fiança?
Sim, ele recebeu uma pena de prisão de 50 semanas por esse delito, o que
é totalmente desproporcional. Estou dizendo isso objectivamente,
não sou uma pessoa do WikiLeaks ou fã de Assange, apenas como
professor de direito. No mundo real, as violações de
fiança quase nunca são punidas com prisão, a menos que o
infractor as explore para cometer outro crime grave. Devido à boa
conduta, Assange teve de cumprir apenas 25 semanas desta sentença.
Portanto, em essência, desde o final de Setembro de 2019, Assange
está sendo privado da sua liberdade exclusivamente com o
propósito de impedi-lo de escapar da extradição dos
Estados Unidos caso ela prossiga. Mas para isso ele não precisa estar no
presídio de máxima segurança do país, preso junto
com assassinos e terroristas condenados e sujeito ao mesmo regime
hiper-restritivo.
Digo isto objectivamente, não como alguém da WikiLeaks ou
fã de Assange, apenas como professor de direito
Julian Assange não é perigoso, não é violento e, o
mais importante, é considerado inocente e não foi condenado por
nenhum crime. Em essência, até a decisão final sobre sua
extradição, ele deve ter permissão para trabalhar e
desfrutar de uma vida normal, por exemplo, em uma instituição
semiaberta onde seja impedido de escapar, mas possa ver sua família,
advogados, médicos e amigos e ter todas as facilidades e contactos de
uma vida normal. Mas Julian Assange está a ser deliberada e ilegalmente
privado de todas essas coisas, com graves consequências para a sua
saúde, bem-estar e capacidade de preparar sua defesa legal. É
claro que há uma motivação política para impedi-lo
de ser profissionalmente activo e que os governos dos EUA e do Reino Unido
querem fazer dele um exemplo, dizendo para o mundo inteiro: 'se você
fizer o que Julian Assange fez nós o impediremos nós o
silenciaremos e destruiremos toda a sua vida e a de sua família".
Acho que a maioria dos estados ficará feliz se ninguém tentar
imitar Julian Assange.
Acha que Assange teria sido submetido ao mesmo tipo de tratamento se fosse
detido em Berlim?
Acho que a Alemanha provavelmente não ousaria tratar Julian Assange da
mesma forma que o Reino Unido. O Reino Unido pode fazer isso porque é um
membro permanente do Conselho de Segurança e os EUA nunca mostraram
muita hesitação em infringir a lei para conseguir o que querem de
qualquer maneira. Não acho que a Alemanha se atrevesse a fazer o mesmo,
especialmente à luz de sua própria história. Dito isso, o
Ministério das Relações Exteriores
(Auswärtiges Amt)
havia solicitado uma reunião comigo quando estive em Berlim em Novembro
passado. Eles imediatamente mencionaram o caso Assange e perguntaram: 'Tem
certeza de que isso está dentro do seu mandato? Não existem casos
mais graves de tortura no mundo? 'Eu disse: 'Sim, há pessoas sendo
apedrejadas e açoitadas em outros países e estou s intervit em
nome delas também, mas aqui estou s intervit em nome de alguém
que está s set implacavelmente perseguido por ter exposto graves crimes
governamentais crimes que, como tortura, caem dentro do meu mandato.
Esses crimes não estão a ser processados apesar das
evidências existentes; em vez disso, são o editor e o denunciante
que estão a ser perseguidos. Isso estabelece um padrão muito
perigoso para o estado de direito no mundo. 'As autoridades alemãs
sugeriram que não tinham motivos para duvidar que o Reino Unido
respeitasse o Estado de Direito. Quando lhes dei exemplos específicos de
como os direitos de Assange estavam sendo sistematicamente violados pelo Reino
Unido, meus interlocutores mudaram rapidamente de assunto e disseram: 'sim, mas
também havia essas acusações suecas'. Claro, quando
expliquei que esse processo acabara de ser encerrado por falta de provas,
depois de quase uma década espalhando uma narrativa infundada de
suspeito de violação, eles novamente desviaram para outro
tópico. Esse tipo de comportamento evasivo é bastante
típico do que experimento com o establishment político em todos
os lugares. Eles estão tão incomodados com a verdade sobre a
perseguição de Assange e suas implicações para o
estado de direito, que só querem que todo esse caso desapareça o
mais rápida e silenciosamente possível.
Acha que ainda há algo que possa fazer para ajudá-lo nesta altura?
Tenho escrito repetidamente aos governos e alertado tanto o Conselho de
Direitos Humanos da ONU em Genebra quanto a Assembleia-Geral da ONU em Nova
York. Acho que a minha carta ao governo sueco provavelmente desencadeou o
encerramento da sua investigação sobre as alegações
de violação. Dado que os Estados envolvidos se recusam
sistematicamente a entrar num diálogo construtivo comigo sobre este
caso, também terei que continuar a informar o público sobre
minhas conclusões através de todos os canais a que tenho acesso.
Há alguns anos, houve uma decisão do grupo de trabalho da ONU
sobre detenção arbitrária declarando que a
situação de Assange na Embaixada do Equador em Londres resultava
em confinamento arbitrário pelo Reino Unido e pela Suécia. Qual
foi a resposta britânica à ONU?
Na minha experiência, o governo do Reino Unido responde às
intervenções da ONU apenas quando e na medida em que considera
conveniente e para seu próprio benefício. Nesse caso, o quadro
geral é claro: o Reino Unido quer extraditá-lo para os EUA para
ajudar a torná-lo um exemplo, acabar com o desafio ao sigilo e à
impunidade decorrente da WikiLeaks e deixar claro para o público que
esse comportamento não é tolerado por aqueles que estão no
poder. Para fazer isso, estão preparados para torcer e distorcer a lei
ao extremo. Isso claramente tem acontecido com os judiciários
britânico, sueco e equatoriano e certamente não seria diferente
nos Estados Unidos.
Quando os britânicos quiseram extraditar Assange para a Suécia,
baseou-se num mandado de detenção europeu emitido pelo procurador
sueco. O problema era que, no tratado internacional sobre o mandado de captura
europeu, diz-se que esses mandados devem ser emitidos por uma autoridade
judicial e o promotor não é uma autoridade judiciária no
Reino Unido. No final, para poder extraditar Assange para a Suécia,
apesar da nulidade do mandado de prisão, a Suprema Corte britânica
simplesmente decidiu aplicar o texto do tratado francês, em vez do
inglês. Isso porque, na França, o promotor pode ser interpretado
como uma autoridade judicial. Mas o caso não dizia respeito à
França, mas sim à Suécia e ao Reino Unido. Você
vê o absurdo disso tudo?
É evidente que o Governo britânico não respeitou a
decisão do grupo de trabalho da ONU sobre detenção
arbitrária. Eles então autorizaram-me a visitar Julian Assange em
Belmarsh porque provavelmente não esperavam que eu examinasse o caso em
detalhes significativos e fosse tão franco e claro em minha
avaliação. Portanto, de acordo com sua abordagem em
relação à decisão do Grupo de Trabalho, quando
examinei os factos e concluí que a perseguição e os
maus-tratos de Assange constituíam tortura psicológica, eles
decidiram ignorar minhas conclusões e recusaram-se a entrar em
diálogo com meu mandato neste caso, não só os
britânicos como também a Suécia e os EUA.
Se Assange chegasse aos EUA ele enfrentaria a pena de morte?
Teoricamente, é possível que ele enfrente a pena de morte. Os
britânicos estão a enganar o público quando dizem que
nenhuma acusação adicional poderia ser feita depois que Assange
fosse extraditado. Isso não é verdade. O tratado de
extradição permite que acusações adicionais ou
diferentes sejam adicionadas, desde que sejam baseadas nos mesmos factos
alegados na acusação usada para o pedido de
extradição. Mas não acho que os EUA necessariamente
queiram executar Assange, eles querem garantir que o tornam um exemplo. A
mensagem dos EUA para o mundo é esta: "Se fizer o que Assange fez,
nunca mais sairá livre, nunca mais poderá abrir a boca e falar
com o público de novo". Não se trata de punir Assange,
é uma demonstração de poder dirigida ao público em
todo o mundo. É por isso também que não estão com
pressa de extraditar Assange, isso não importa, desde que ele esteja
isolado na sua cela e não possa falar. Não se trata de quem ganha
o julgamento, os governos já venceram, porque Assange foi silenciado. E,
infelizmente, no mundo da política de poder, estados como o Reino Unido
e os EUA sabem que se podem safar.
Se Julian for enviado aos Estados Unidos durante o seu mandato, você
tentaria verificar as condições nos Estados Unidos? Acha que
receberia um visto?
Se ele for enviado para os Estados Unidos, ninguém poderá fazer
mais nada por ele. Eu certamente não teria acesso. Meu antecessor tentou
obter acesso para Chelsea Manning e foi informado de que não teria
permissão para entrevistá-la sem testemunhas, o que faz parte dos
termos de referência padrão para qualquer visita à
prisão realizada por um Relator Especial da ONU.
Juízes de tribunais criminais internacionais nos EUA foram punidos por
pedir ao governo que investigue crimes de guerra dos EUA no Afeganistão.
Você imagina que também poderia ser alvo de sanções
por suas intervenções neste caso?
Eu não ficaria surpreso. Acho que, até agora, eles acreditam que
não sou influente o suficiente para realmente preocupá-los.
Embora minhas comunicações oficiais certamente sejam consideradas
um incómodo, elas não são juridicamente vinculativas e
não causaram alvoroço público até agora. Mas
é difícil prever o que aconteceria se eu desencadeasse algo que
se tornasse mais impactante. De qualquer forma, não tenho ilusões
de que minha carreira na ONU provavelmente acabou. Tendo confrontado
abertamente dois Estados P5 (membros do Conselho de Segurança da ONU)
como fiz, é muito improvável que seja aprovado por eles para
outro cargo de alto nível. Disseram-me que meu envolvimento
intransigente neste caso tem um preço político. Mas permanecer em
silêncio também tem um preço. E decidi que prefiro pagar o
preço por falar, do que por permanecer calado.
09/Setembro/2020
Ver também:
Melzer Asks Trump to Pardon Assange
, 22/Dez/20
[*]
Jornalista, do
Exberliner.
O original encontra-se em
www.exberliner.com/features/julian-assange-trial-2020/nils-melzer-assange/
Esta entrevista encontra-se em
https://resistir.info/
.
|