Álvaro Lins, o embaixador brasileiro que enfrentou Salazar
Prestes a ser preso pela PIDE, em 12 de janeiro de 1959, Humberto
Delgado pede asilo na Embaixada do Brasil. Álvaro Lins é o
embaixador brasileiro que enfrenta as pressões de Salazar e as
hesitações do seu governo, protegendo o General Sem Medo.
"General, tenho a maior satisfação em fazer o seu
conhecimento pessoal, lamentando apenas que seja nestas circunstâncias.
Lamentando, naturalmente, pelo senhor e não por mim."
Estas foram as palavras do embaixador ao entrar na sua Chancelaria, de acordo
com o seu livro de memórias
Missão em Portugal,
a melhor fonte para conhecer os seus três meses mais difíceis em
Lisboa.
"Vim à Embaixada do Brasil solicitar asilo político a
Vossa Excelência porque me encontro sob ameaça iminente de
prisão" responde-lhe Humberto Delgado.
A 7 de janeiro, a ditadura tinha dado o último passo que permitia
prender Delgado. Foi demitido, por motivos políticos, do exército
português. Já não gozava da proteção do foro
militar e podia ser preso como qualquer civil pela PIDE. A vingança pela
sua oposição frontal a Salazar, nas eleições
presidenciais de 1958, seria levada até ao fim
Álvaro Lins enfrentava uma decisão difícil. Porém,
embora não fosse diplomata de carreira, não era um novato nas
atividades políticas. Pernambucano de Caruaru, formado em Direito no
Recife, foi Secretário do Governo Estadual e, mais tarde, em 1956, Chefe
da Casa Civil do Presidente Juscelino Kubitschek (cargo que, pela sua
importância, se aproxima da figura de Primeiro-Ministro em Portugal),
precisamente antes de vir para Lisboa como embaixador. Mas foi no jornalismo e
na literatura que se distinguiu. Membro da Academia Brasileira de Letras e da
Academia das Ciências de Lisboa, é um profundo conhecedor da
cultura e da literatura portuguesa. Autor de livros como
História Literária de Eça de Queiroz, Poesia e
Personalidade de Antero de Quental, Discurso sobre Camões e
Portugal,
foi professor na Faculdade de Letras de Lisboa.
A primeira conversa com Delgado foi longa. Álvaro Lins tomou
consciência das ameaças feitas ao seu interlocutor. Sublinhou no
seu livro o caso da prisão dos apoiantes de Delgado, destacados
intelectuais presos por terem promovido a vinda a Portugal do dirigente
trabalhista inglês Aneurin Bevan. "Jaime Cortesão,
António Sérgio, Vieira de Almeida e Azevedo Gomes foram
imediatamente presos" e o mesmo não acontecera ao general devida
à sua situação de militar, tendo o governo, em nota
oficial emitida na ocasião, prometido dar a Delgado o mesmo tratamento
assim que se concluisse o seu processo de afastamento das forças armadas.
"General: em princípio, concedo o asilo que o senhor veio
solicitar à Embaixada do Brasil. Darei a minha decisão definitiva
ao voltar da audiência com o ministro dos Negócios
Estrangeiros".
Lins foi recebido às 18h30 por Marcelo Matias, no Palácio das
Necessidades. "Pude sentir, desde logo, que ele nada sabia ou suspeitava
do assunto", regista o embaixador.
"Vim comunicar-lhe que o General Humberto Delgado procurou-me
hoje, faz
apenas algumas horas, para solicitar asilo diplomático à
Embaixada do Brasil. E lá se encontra neste momento."
Com a sua prosa de grande qualidade, Lins descreve a reação do
ministro de Salazar. "Fixei e observei bem a reação de
Matias: ficou pasmado. Teve um momento de sobressalto, num estado de
espírito ainda mais visível pela maneira como suas mãos
apertavam os braços da cadeira. Dominou-se, porém, com
presteza."
Só então reage.
"A sua comunicação, Embaixador, enche-me de
surpresa. E de indignação contra o General Delgado. Nada existia contra ele,
nenhum propósito de persegui-lo ou prendê-lo."
Álvaro Lins tem uma proposta face à esperada reação
de Marcelo Matias.
"Amanhã, em meu automóvel, indo diretamente da
Embaixada ao aeroporto, eu levaria o General Delgado até um avião da
Panair; depois de amanhã, o general desembarcaria no Rio de Janeiro
(
) sem qualquer espécie de escândalo público."
Marcelo Matias hesita. Não aprova a proposta mas sente que a
decisão já não é sua e interrompe o diálogo.
Lins relata o sucedido.
"Dê-me licença por alguns instantes. Estão a
chamar-me ao telefone.
Fui eu, agora, que fiquei surpreso: não vira abrir-se nenhuma porta, nem
notara secretário algum que lhe houvesse feito um gesto ou dirigido
qualquer palavra; e pareceu-me extravagante aquela chamada telefónica em
tal hora, já encerrado o expediente do Ministério. Presumi:
Marcelo Matias foi à sala de junto consultar Salazar pelo telefone.
Demorou-se uns cinco ou seis minutos. Foi-me fácil perceber que voltara
ainda mais intransigente."
Depois do telefonema, Marcelo Matias voltou com a posição ditada
por Salazar.
"Nós não reconheceremos jamais o asilo do General
Humberto Delgado, por falta de motivos, e não poderemos permitir que o general
venha a sair de Portugal sob a proteção de uma potência
estrangeira."
Álvaro Lins já esperava o endurecimento da posição
de Marcelo Matias, depois de conversar com Salazar. Todos sabiam que Delgado
era o inimigo número um de Salazar, desde o "obviamente
demito-o" do café Chave de Ouro. Iria persegui-lo até
às últimas consequências
Todavia, o que mais feriu a sua sensibilidade de profundo conhecedor e amante
da pátria lusitana, também sua pela cultura e pelo sangue, foi a
expressão "potência estrangeira". Não se conteve
e disse a Marcelo Matias, a propósito da insistência nas
expressões "território estrangeiro" e
"potência estrangeira" ao referir-se ao Brasil:
"Esta insistência me está parecendo chocante.(
)
Então o Brasil passa a ser visto e tratado em termos de uma
potência estrangeira e território estrangeiro quanto a Noruega, o
Egito ou a China?"
Lins concede asilo a Delgado
O diálogo tinha chegado a um impasse. A Álvaro Lins restava
reafirmar a sua posição:
"Então, ministro, cumpre-me comunicar ao Governo
português,
por seu intermédio, que eu concedo o asilo solicitado pelo General
Humberto Delgado. E o asilo será mantido, a não ser que a minha
decisão, o que não acredito, venha a ser desaprovada pelo Governo
brasileiro, hipótese em que voltarei à sua presença apenas
para apresentar-lhe as minhas despedidas."
Restava um problema. Delgado estava na Chancelaria (na Calçada dos
Caetanos) e não na Embaixada (na rua António Maria Cardoso, o
lado da PIDE). Lins avisou o ministro de que iria transferir o general no seu
automóvel, sabendo que a PIDE já o estaria a seguir:
"Coloquei o General à minha direita no automóvel; na
frente um dos secretários, ao lado do chofer. Este pareceu-me um pouco
nervoso e perturbado. Quis, para encurtar a viagem, mudar o itinerário
pelo Rossio e pelo Chiado que eu seguia todos os dias."
Ao seu nervoso motorista português, sabendo-se seguido pela PIDE,
Álvaro Lins recomenda que siga:
"Nem muito devagar, para não dizerem que estou querendo
irritar,
nem muito depressa, para não dizerem que estou com medo."
Estavam finalmente na Embaixada. Emocionado, Delgado declara a Lins:
"Agora, Embaixador, estou sentindo, realmente, a
sensação
de um homem que penetra no território de um país livre!"
Já pelas nove e meia da noite, ouviram o ardina apregoar a
edição do
Diário Popular,
com a notícia do asilo,
em tom oficioso e achincalhante para Delgado. Segundo Álvaro Lins, no
"estilo do jornal de Palma Cavalão em
Os Maias".
Mais do que qualquer análise da situação política,
são as palavras de Maria Iva Delgado, mulher de Humberto Delgado, que
lhe tiram todas as dúvidas sobre a sua opção:
"Depois de alguns meses, ontem foi a primeira noite que pude dormir
tranquila, por saber o meu marido em segurança na Embaixada do Brasil.
Antes, de dia e de noite, vivia em sobressalto; ao toque da campainha, ao menor
ruído, imaginava que já era a PIDE a entrar-nos pela porta
adentro."
Tinha-lhe pedido para vir à embaixada para conversar sobre as
condições de vida de Delgado na embaixada. Apenas a mulher e as
filhas o podiam visitar e, todos os dias, apesar das buscas e
deselegâncias dos agentes da PIDE, cumpriam pontualmente essa tarefa. A
PIDE fazia questão de parar a esposa de Humberto Delgado, exigindo-lhe a
revista do carro em todas as visitas.
A embaixatriz Heloísa era anfitriã solicita. Numa conversa com
Maria Iva, revelou-lhe que os gritos vindos do edifício ao lado, a sede
da PIDE, frequentemente a perturbavam de noite. Tinha mandado uma carta ao
Cardeal Cerejeira a queixar-se e recebera em resposta que se tratava do chiar
dos elétricos nas calhas da Rua António Maria Cardoso
Obviamente assassinado com a autorização de Salazar
Mas Álvaro Lins revela outro pormenor da conversa com Iva Delgado que
lhe transmite outra sua preocupação, o facto de o General andar
sempre com o seu revólver, para resistir a qualquer tentativa da PIDE
para o prender.
"Ainda por cima, o Humberto sempre com o revólver à
altura
da mão, no seu propósito de não se deixar levar com vida
pela polícia."
Este testemunho de Lins publicado em 1960, é muito importante para
compreender o que se vai passar no assassinato de Delgado em 1965.
Era do conhecimento de todos que o General andava armado. A PIDE não
ignorava esse facto. Salazar também sabia que o General sempre andava
com um revólver, já que o conhecia pessoalmente há muitos
anos. Por conseguinte, ao autorizar a operação da PIDE que iria
levar Delgado a Badajoz, autorização confirmada pelo Diretor da
PIDE no julgamento, Salazar não ignorava que o General não se
deixaria apanhar vivo.
Obviamente sabia que o encontro preparado pela PIDE, junto à fronteira
portuguesa, acabaria na morte de Humberto Delgado.
Intelectuais brasileiros apoiam Lins
Entretanto, a questão do asilo na Embaixada ganha repercussão
internacional. No Brasil, no início de fevereiro, um grande grupo de
intelectuais brasileiros lança em vários jornais um manifesto de
apoio e solidariedade ao embaixador Álvaro Lins, o qual, segundo o
texto, muito orgulhava os brasileiros com a sua atuação no caso
do asilo.
Tratava-se de uma reação ao movimento encabeçado pela
Federação das Associações Portuguesas, que entendia
o asilo como uma afronta à Portugal, exigindo do Brasil o apoio a
Salazar.
Assinavam o manifesto solidário com Álvaro Lins, grandes nomes da
intelectualidade brasileira, como Carlos Drummond de Andrade, Erico
Veríssimo, Darcy Ribeiro e António Calado.
Em 19 de fevereiro, o escritor Érico Veríssimo chega a Lisboa.
Lins refere ser Érico "muito popular, muito lido em Portugal, onde
conhecem bem as suas ideias antiditatoriais, anti-franquistas,
anti-salazaristas, tudo isso, simultaneamente, com a sua coragem em
exprimi-las."
A 21 de fevereiro, na receção da embaixada ao escritor, Lins
responde no seu diário a quem o acusa de só convidar
oposicionistas portugueses. Esclarece que "quanto aos escritores e
professores, aos intelctuais que constituem a vida cultural portuguesa, a culpa
não é minha que, em trezentos de uma lista, duzentos e noventa
são democratas e anti-salazaristas." E quando o Adido Naval lhe
sugere um convite ao Diretor da PIDE porque é oficial do
Exército, recebe uma recusa formal:
"Jamais o Diretor-Geral da PIDE recebera, nem receberia um convite
meu,
a facultar-lhe a entrada na Embaixada do Brasil."
Após estar alguns dias na embaixada e ter manifestado a Lins o seu apoio
no caso Delgado e recusar convites de homenagens governamentais, Érico
Veríssimo vai ao teatro D. Maria II debater literatura, a 2 de
março.
Quando questionado pela audiência sobre o motivo da
estagnação da literatura portuguesa, sua resposta é
simples: "A censura", e acrescenta ser "desonestidade ou
cobardia não falar claro numa hora como esta".
No final da conferência as ovações também
alcançavam Álvaro Lins, que fora aconselhado pelos diplomatas a
não reagir aos gritos de "viva o Brasil" vindos da plateia.
Segundo o jornal
Última Hora,
do Rio de Janeiro, de 5 de abril de 1959, Veríssimo afirmaria que
existia uma campanha para denegrir a embaixada brasileira e seu embaixador,
que, segundo ele, desempenhavam um papel exemplar na questão.
Mas se Lins conta com o apoio de muitos intelectuais brasileiros, nos finais de
fevereiro os seus receios quanto à solidariedade do Presidente e do
ministro das Relações Exteriores do Brasil confirmam-se.
Juscelino Kubitschek de Oliveira e Negrão de Lima aproximam-se das
posições de Salazar.
A 27 de fevereiro de 1959, último dia do seu diário publicado no
livro
Missão em Portugal,
Lins refere que lhe faz "saber o Itamarati de Kubitschek e Negrão
que a ida do General Delgado para o Brasil, mesmo nas condições
impostas pelo Governo português, seria um sucesso para a diplomacia
brasileira; e me aconselham a ceder e transigir, com a aceitação
da fórmula que seria uma degradação do princípio do
asilo e uma vergonha internacional para o Brasil."
Nesse final de fevereiro sintetiza a sua situação:
"Vejo-me como em estado de guerra, com a Embaixada cercada pela
PIDE,
com os telefones sob a censura, com vigilância da polícia
política sobre os meus passos, por toda a parte."
Mais tarde, na sua "Carta de Rompimento Político e Pessoal com o
Presidente Kubitschek", sublinharia que os seus compromissos eram
"com a Nação portuguesa imperecível" e a
"solidariedade e apoio ao movimento de restauração das
liberdades públicas e dos direitos da pessoa humana para todos os
portugueses."
Um Mercedes na noite de Lisboa
Na noite de 11 para 12 de março, a última esperança do
General Sem Medo asilado por Álvaro Lins, esvaiu-se. A Revolta da
Sé, assim designada porque os revolucionários se reuniam na
Sé de Lisboa, com a ajuda do padre oposicionista Perestrelo de
Vasconcelos (próximo de Manuel Serra, chefe civil do movimento),
não teve êxito.
O regime acabou por aceitar a ida de Delgado para o Brasil. Porém
pretendia impor-lhe condições humilhantes. Antes de entrar no
avião, teria de sair do automóvel, fazer dois requerimentos e
esperar pela sua concretização. Essa pretensão recebeu uma
recusa inequívoca do General, apoiada pelo embaixador Álvaro Lins.
Terá sido João Dantas, diretor do
Diário de Notícias
do Rio de Janeiro, então em Lisboa, a telefonar ao Ministro da
Presidência de Salazar, Teotónio Pereira, conseguindo a
mudança da posição do Governo português.
Os requerimentos foram enviados para a embaixada. Delgado assinou-os e, com o
formal deferimento, foram devolvidos à embaixada, a 20 de abril.
Álvaro Lins e Humberto Delgado, sem palavras, despediram-se com um
abraço.
A
Missão em Lisboa
de Álvaro Lins estava cumprida.
O
Mercedes
preto partiu do interior da embaixada, conduzido pelo motorista António
Madeira, acompanhado pelo primeiro-secretário da embaixada, Alarico de
Oliveira. Atravessou a noite de Lisboa a alta velocidade, entrou na pista do
aeroporto da Portela e travou junto ao voo 289 da Panair do Brasil. Ignorando
os olhares ameaçadores dos agentes da PIDE, Humberto Delgado embarcou.
16/Março/2021
[*]
Professor e historiador.
O original encontra-se em
patrialatina.com.br/alvaro-lins-o-embaixador-brasileiro-que-enfrentou-salazar/
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