As eleições nos EUA e os impactos no Brasil
As eleições nos Estados Unidos ocorreram numa conjuntura em que o
império enfrenta um processo acelerado de decadência, combinado
com uma tripla crise: uma crise econômica, uma crise sanitária e
uma crise de hegemonia. Mesmo antes da emergência dramática desses
fenômenos, o sistema já tinha sido abalado pela crise
de 2008, da qual até agora o País ainda não se recuperou,
e cuja crise expôs com rudeza explícita os graves problemas
sociais longamente omitidos pela mídia corporativa. A
eleição de Donald Trump e seus quatro anos de governo
representaram uma espécie de tentativa desesperada das classes
dominantes de reverter a crise, retomar a hegemonia do império e colocar
o ônus na conta dos trabalhadores. Mas o governo Trump, com sua
agressividade e extravagância patológica, em vez de resolver os
problemas, acirrou todas as contradições, tanto do ponto de vista
interno quanto externo. Os impérios em decadência são assim
mesmo: naturalizam as bizarrices e nem percebem que essas bizarrices
representam seu esgotamento.
Durante os quatro anos de governo nos Estados Unidos, Trump colocou o sistema
de cabeça para baixo. Apoiou supremacistas brancos, barbarizou os
imigrantes, reprimiu os pretos e a juventude e renegou a ciência na crise
sanitária. Do ponto de vista internacional, rompeu todas as regras
constituídas pelo próprio sistema
desde o pós-guerra, brigou com velhos aliados da Europa, desencadeou uma
ofensiva contra a China, principal financiador de seu déficit, estimulou
golpes de Estado, impôs sanções selvagens contra
nações que não se curvaram aos seus pés,
além de uma agenda política abertamente agressiva e extravagante
que incluía o apoio a bandos fascistas em várias partes do mundo
tudo isso na vã perspectiva de que essas bravatas seriam
suficientes para resolver a crise. Quando a pandemia chegou, a economia
norte-americana já estava a caminho de uma nova onda da crise
sistêmica global e a doença apenas acelerou e potencializou os
problemas que já estavam inscritos num sistema fragilizado.
Portanto, para se compreender a confusão em torno da
eleição de Biden à presidência e a resistência
de Trump em reconhecer a derrota, além da crise institucional em curso,
é preciso atentar para o fato de que todo esse
imbróglio
imperial não é nada mais nada menos do que a expressão
política da decadência imperialista. Como escrevi em trabalho
anterior, por mais que os escribas a serviço de Wall Street propaguem
que tudo que está acontecendo é resultado da pandemia, a crise na
verdade é do próprio sistema capitalista. Trump e seus arroubos
patológicos significam apenas os rugidos de um bufão em final de
espetáculo, um arranjo das classes dominantes que não deu certo e
que agora o sistema procura corrigir apostando todas as fichas em Biden. Como
se pode imaginar, as classes dominantes também cometem erros e, em
muitos casos, esses erros abrem janelas de oportunidades para a
construção de alternativas populares.
O resultado das eleições nos Estados Unidos é muito mais
uma derrota de Trump do que uma vitória de Biden. Os setores populares
não devem ter nenhuma ilusão de que o novo governo significa uma
mudança de fundo no sistema imperialista. Evidente que Biden vai ter que
dar algum tipo de respostas aos setores populares que saíram as ruas, em
plena pandemia, nos últimos meses, contra o racismo, a misoginia, o
desemprego e a pobreza no império. Mas Biden é um homem do
sistema, um democrata de centro, que foi indicado como candidato à
presidência justamente para evitar que Bernie Sanders ganhasse a
convenção e, caso fosse indicado, como prometia, pudesse realizar
um conjunto de reformas muito além daquilo que o sistema estaria
disposto a aceitar. De qualquer forma, a derrota de Trump pode abrir
espaço para a emergência dos movimentos populares, especialmente
entre a juventude, os negros, os latinos e os trabalhadores sufocados pelo
desemprego e os baixos salários.
Além disso, seria um erro crasso confundir as classes dominantes
imperialistas com os interesses dos trabalhadores, dos negros, dos latinos e da
juventude dos Estados Unidos. Lá também existe luta de classes e,
inclusive, a luta de classes no coração do império
deverá ser tão ou muito mais dura que nos outros países,
porque lá é o centro do imperialismo. Lá é que se
encontra o núcleo duro das classes dominantes mundiais. Portanto,
é lá onde a burguesia colocará toda a sua força
para derrotar o movimento popular. Como também é lá que
está ocorrendo uma crise de proporções inéditas e
onde podem ocorrer lutas tão intensas quanto na década de 60 do
século passado, como as manifestações contra a guerra do
Vietnã e pelos direitos civis. As contradições acumuladas
nas últimas seis décadas começam a chegar à
superfície e prometem grandes jornadas de lutas.
Porque acreditamos que haverá um acirramento da luta de classes nos
Estados Unidos? Porque, como dissemos, o País vive uma crise tripla, ou
seja, não se trata de uma crise conjuntural qualquer, mas de uma crise
sistêmica que requer mudanças estruturais que Biden não
pode fazer ou não quer fazer. Sem mudanças estruturais não
se pode resolver as principais reivindicações dos trabalhadores,
da juventude, dos negros, dos latinos, dos pobres, dos sem teto nos Estados
Unidos. É bem verdade que o sistema não está de
mãos atadas: como sempre vai tentar absorver e cooptar os movimentos
sociais e populares, mediante atendimento de algumas pautas
identitárias, mas se não conseguir seus objetivos pela via da
negociação, vai tentar derrotá-los de forma brutal como
aconteceu com os Panteras Negras na década de 60 do século
passado. Como a luta de classes é dinâmica, muita água
ainda vai rolar no teatro de operações da principal
nação imperialista do planeta.
Os impactos no Brasil e na América Latina
De qualquer forma, é importante compreendermos com frieza o que
está acontecendo no centro do império, seus impactos no mundo e,
especialmente, no Brasil, para podermos construir uma ação
política que favoreça os interesses populares. A vitória
de Joe Biden representa um duro golpe para a extrema-direita no mundo inteiro e
ao fascismo emergente. As políticas fascistas, supremacistas brancas,
misóginas, negacionistas da ciência e as bizarrices em geral
tendem a ficar na defensiva. Tendem por quê? Porque todo movimento quando
sofre uma derrota em que sua liderança é golpeada de maneira como
ocorreu nos EUA, ou seja, quando o movimento perde a cabeça, o corpo
tende a se desagregar. No caso específico, um Trump fora da
presidência, sem o poder presidencial, deixa o trumpismo com enorme
dificuldade para se reorganizar, para retomar o discurso, para empolgar
novamente as pessoas.
A extrema-direita e o fascismo emergente tenderão a ficar na defensiva,
inclusive porque Trump pode até futuramente ser preso em
função de suas falcatruas empresariais. O sistema já optou
por Biden e as estrepolias de Trump não passam daquilo que os advogados
costumam designar como
jus esperneandi.
Mesmo que Biden realize algumas mudanças heterodoxas para
alcançar algum tipo de retomada da economia, pouco mudará em
relação às políticas neoliberais nos países
da periferia. Afinal, essas políticas veem sendo desenvolvidas desde a
década de 80 (no Brasil, a partir do governo Collor e mais
especificamente no governo Fernando Henrique Cardoso) e enquanto a oligarquia
financeira ditar as regras em Washington a orientação
continuará sendo a mesma. Resta aos povos da periferia aproveitar esse
momento de crise do império para ampliar a organização e
mobilização dos trabalhadores, da juventude e do povo pobre e
derrotar em cada País a ofensiva neoliberal e abrir caminhos para
alternativas que representem os interesses populares.
Há ainda a possibilidade de uma distensão provisória na
política internacional, muito embora não se possa esquecer que os
governos democratas foram os mais belicistas da história dos Estados
Unidos. A grande incógnita é o que vai ocorrer em
relação à disputa com a China, ao acordo rompido com o
Irã, às sanções contra a Venezuela, Cuba e
Coréia do Norte. Pode ser que, em função da grave crise
interna, eles priorizem ou sejam obrigados a priorizar a cura das feridas
internas. Mas há ainda um grande perigo: que fará Trump
até a posse do novo presidente? Como uma pessoa imprevisível
não está descartada nenhuma maluquice típica de um animal
ferido. De qualquer forma, é importante lembrarmos que a luta de classes
também está acirrada na América Latina: as
manifestações que ocorreram no Equador antes da pandemia, a
derrota do golpe na Bolívia a partir da resistência do movimento
popular e a vitória do plebiscito do povo chileno por uma nova
constituição, após as maiores manifestações
desde os tempos da Unidade Popular, são processos que apontam
positivamente para o ressurgimento de vitórias populares na
região.
No que se refere ao Brasil, a derrota de Trump significa também um duro
golpe ao governo Bolsonaro, porque esse construiu toda a política
governamental em subserviência vergonhosa ao governo Trump, chegando ao
nível de bater continência à bandeira norte-americana,
dizer que amava Trump e envergonhar a diplomacia brasileira em
votações bizarras. Como um capitãozinho do mato,
considerava-se um amigo de Trump, mas na verdade era apenas um amigo
imaginário, porque o governo dos EUA, ignorando a propalada
amizade, tomou uma série de medidas contra a economia brasileira.
É exatamente esse servilismo rasteiro que o constrange a reconhecer a
derrota de Trump, bem como é o fanatismo que leva seus apoiadores
lunáticos a continuar batendo na tecla de que Trump foi derrotado pela
fraude. Comportamentos típicos de quem está sem rumo.
Da mesma forma que o movimento fascista emergente sai enfraquecido desse
processo, toda a política negacionista de Bolsonaro em
relação à ciência, todas as suas estrepolias contra
o uso de máscaras e as lorotas contra a vacinação e a
cloroquina estão muito fragilizadas. Também ficará sem
chão a política externa brasileira, que se destacou por
envergonhar a longa tradição da diplomacia do País
e, se não mudar, transformará o Brasil num pária
internacional. Mas a área que sai mais enfraquecida é a
política ambiental, comandada por um inimigo declarado das
políticas de proteção ao meio ambiente. A pressão
internacional contra as queimadas e o desmatamento vai aumentar e não
adianta Bolsonaro vir agora querer bancar o nacionalista tardio, pois esse
governo não tem nenhuma moral nesse setor porque foi e está sendo
o governo mais entreguista e subserviente da história do Brasil.
Do ponto de vista mais ideológico, a turma bolsonarista em luta contra o
chamado marxismo cultural ficará na berlinda porque seus parceiros
internacionais estão reduzidos a peças folclóricas de
museus. Outro tema que chamará a atenção é se o
governo brasileiro continuará se comportando de maneira hostil em
relação à disputa em relação a Huawei
a vacina de origem chinesa e produzida no Instituto Butantã, mesmo
sabendo que a China é o maior parceiro comercial do Brasil. Mas
há ainda um assunto que viciou tanto os operadores do governo,
que tende a continuar na ordem do dia, muito embora com menos força,
que são as
fake news.
Um Bolsonaro sem fake news, sem espetáculos diários bizarros
para ofuscar os problemas reais, sem um guru tão grotesco quanto ele no
centro do império, é um governante com o trono enferrujado. As
pesquisas de opinião da última semana, bem como o fracasso dos
candidatos que ele está apoiando nas eleições municipais,
já começam a demonstrar isso.
Mas não se pode deixar de avaliar que a derrota de Trump deixou o
bolsonarismo sem norte, sem bússola e com a brocha na mão.
Inclusive esse processo fortalecerá o Ministério Público
nas investigações contra Flavio Bolsonaro e as milícias. O
depoimento da ex-funcionária do
Zero Um
indica nessa direção. Politicamente, Bolsonaro vai ficar
completamente nas mãos do Centrão que, como todos sabem, vai
cobrar muito mais caro o apoio a um governo agora mais fragilizado,
principalmente porque tudo leva a crer que esse setor sairá bastante
fortalecido nas eleições municipais. São esses elementos
da conjuntura que devem ser levados em conta na organização da
luta e elaboração de propostas alternativas ao governo Bolsonaro.
Mesmo assim, apesar de ferido, o bolsonarismo não está morto e
ainda precisa muita luta para derrotar esse governo e sua política de
terra arrasada.
As tarefas da nova conjuntura
Diante dessa nova conjuntura quais são as tarefas das forças
classistas, especialmente dos comunistas?
1) A hora é de mudar a tática e passar à ofensiva contra o
governo Bolsonaro e sua política de terra arrasada e realizar uma ampla
agitação e propaganda, tanto nas redes sociais, quanto nas ruas,
contra esse discurso que está sendo desmoralizado pela conjuntura. Ou
seja, é fundamental ampliar as denúncias contra o negacionismo,
em defesa da vida, das vacinas, contra a vassalagem do governo em
relação aos EUA, em defesa das políticas ambientais,
contra as queimadas e o desmatamento, em defesa da biodiversidade, das
comunidades indígenas e quilombolas.
2) Retomar as manifestações de ruas contra o desemprego e pelas
frentes de trabalho que garanta emprego para todos, contra o corte de direitos
e salários, contra a carestia, em defesa da saúde pública
e do SUS, em defesa da vida e da vacinação em massa da
população, da educação pública, gratuita e
de qualidade, das universidades e da ciência, da Petrobrás e das
empresas públicas. Como a grande maioria dos trabalhadores já sai
às ruas, de segunda a sábado, em defesa da sua
sobrevivência, é natural que também possa protestar aos
domingos nas ruas contra as péssimas condições de vida dos
trabalhadores e do povo.
3) É fundamental construir novas ferramentas para a
reorganização de nossa classe, uma vez que as
organizações sindicais do velho ciclo estão superadas e
não respondem mais às necessidades da luta de classe e perderam a
perspectiva em relação às transformações
sociais em nosso País. Entre as novas organizações que
emergem nessa conjuntura está o Forum por Direitos e Liberdades, uma
organização que reúne os principais sindicatos nacionais
dos trabalhadores e da juventude e várias entidades do movimento
popular. Portanto, é hora de consolidar sua estrutura nacional e
construir as organizações do Fórum nos Estados, de forma a
que possa se transformar num protagonista da luta de classes no Brasil a partir
de cada Estado. A consolidação dessa organização em
nível nacional é fator determinante para que os trabalhadores e a
juventude reúnam as condições para a
realização do Encontro Nacional da Classe Trabalhadora (Enclat),
a ser realizado no momento em que a luta de classes permitir a
construção de uma nova ferramenta sindical e popular
para unir e organizar os trabalhadores, a juventude e o povo pobre das
periferias.
4) Construir um programa estratégico que possibilite a disputa com a
burguesia e os conciliadores de classes sobre os novos rumos do País no
pós-pandemia, com medidas que apontem claramente na perspectiva
anticapitalista e antimperialistas. Aliado a essa medida, é fundamental
um programa de emergência, que responda concretamente as
reivindicações mais sentidas dos trabalhadores e da
população, como emprego, renda, habitação,
saúde, educação e segurança.
5) Todos os lutadores sociais e políticos devem estar preparados para
qualquer tipo de conjuntura em nosso País, pois é certo que
teremos um acirramento da luta de classes nos próximos meses em
função do desemprego, da miséria, da carestia e das
péssimas condições de vida a que está submetida a
maioria da população. Numa conjuntura dessa ordem, as classes
dominantes farão tudo para manter o seu domínio e sua
política de terra arrasada. Por isso, é fundamental construir
instrumentos para que as massas não sejam esmagadas nas suas
manifestações, nas greves ou nos seus locais de moradias.
Finalmente, acreditamos que mesmo diante dessa conjuntura difícil, a
luta política no Brasil se torna mais favorável para um discurso
contra o capitalismo, que desmoralize a política neoliberal e os
serviços privados e que ligue as dificuldades da vida cotidiana da
população ao poder e à truculência das classes
dominantes brasileiras. Acreditamos que existe uma reserva de força
social adormecida na sociedade brasileira que precisa ser despertada. Por isso,
é necessário ficar atento para orientar e dirigir essas
forças quando despertarem no processo de acirramento da luta de classes
em nosso país. É importante ainda tomarmos em conta que as
mudanças em nosso País não serão fáceis,
tanto em função da brutalidade das classes dominantes, quanto
pelo papel que o Brasil representa na geopolítica internacional. Uma
derrota do imperialismo no Brasil terá repercussões mundiais. Por
isso, a luta aqui será muito dura e difícil, mas quando as massas
estão dispostas a mudar a vida não tem força capaz de
derrotá-las.
11/Novembro/2020
[*]
Secretário-Geral do PCB.
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