Os três espelhos
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"A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse os meus ais,
Isto só e nada mais."
Edgar Allan Poe
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Não se deve culpar o espelho pelas inversões que ele nos mostra.
Como disse Marx, a religião e o Estado são uma consciência
invertida porque são a consciência de um mundo invertido.
Por três vezes o espelho nos mostrou, mas seguimos fazendo a mesma
pergunta que poetas e escritores ilustres já fizeram: quem é esse
estranho que me olha desde o espelho? Não se deve culpar o espelho pelas
inversões que ele nos mostra. Nos espelhos, assim como na
religião e na ideologia, o reflexo só pode ser construído
a partir daquilo que no real se apresenta. Como já disse Marx, a
religião e o Estado são uma consciência invertida porque
são a consciência de um mundo invertido.
Em 2016 o espelho mostrou, diante de um pais estarrecido, o Congresso cassando
o mandato da presidente eleita em 2014 nos marcos da normalidade
democrática isto é, em uma eleição marcada
pelo financiamento privado de campanha (naquele ano, ainda financiamento
empresarial), com distribuição desigual de recursos e
impedimentos ao acesso ao tempo de televisão, construído sobre
promessas e mentiras, com o descarado uso da máquina governamental e a
distribuição de cargos, favores e recursos. Vimos no espelho os
deputados envoltos na bandeira nacional pronunciarem irracionalidades e
preconceitos, elogiar torturadores e carrascos tudo embrulhado
grotescamente em saudações à família, à
moral e aos bons costumes.
Ali estava o poder judiciário, na figura do presidente do STF (lá
colocado por aqueles que seriam derrubados), garantindo que se cometeria o
casuísmo e a ilegalidade na forma correta do rito legal. Ali estavam os
poderosos meios de comunicação construindo narrativas sob a
ditadura editorial que apenas faz aquilo que seus proprietários ordenam,
filtrando a voz das ruas raivosas para que digam aquilo que a pauta determinava
calmamente.
Aquilo que aparecia na imagem grotesca foi, entretanto, pacientemente
construído. Foram anos de pactos e conciliações, acordos e
recuos: recuos para conciliar e conciliações para recuar ainda
mais. Agora as vítimas oravam no altar do Estado democrático de
direito que lhes respondia, como toda divindade que sai dos seres humanos e
depois volta de forma estranhada e hostil, exigindo o sacrifício de seus
criadores para salvar a incorpórea criatura.
Em 2018 o espelho mais uma vez nos mostrou um país fraturado, violento,
preconceituoso, irracional. Hordas marchavam pelas ruas com as camisas que um
dia foram de seleções de artistas, que construíram sonhos
e poemas com os pés, mas agora serviam à barbárie e ao
passado sangrento. Ali, também, estavam os juízes, tramando
ilegalidades, negando habeas corpus em nome da liberdade e rasgando a
Constituição enquanto a citavam tudo à maneira de
um fluir de doutos discursos infindáveis, fundamentados em juristas
famosos que citaram juristas famosos, na melhor tradição da
dogmática jurídica: conjurando a metafísica de uma
justiça inexistente, como sacerdotes egípcios que na sagrada
pirâmide kelseniana, oficiam a morte como fosse o portal da vida eterna.
Ali, também, as televisões exerciam seu ofício.
Matérias especiais, reportagens, debates de perguntas e respostas
vazias, assim como a cadeira de que já dizia o que pensava de debates.
Confundindo a nobre profissão de jornalistas com a da mera leitura de
teleprompter, de especialistas em análise política cuja
única especialidade é parasitar bastidores, como pulgas no
carpete do poder em busca de migalhas de mentiras com que esperam construir o
pão da verdade que apresentarão.
Foi ali que vi as pulgas do carpete do poder central, vivendo no centro do
Império nos EUA, perderem a compostura festejando aos gritos a
vitória do fascismo diante dos sorrisos débeis dos âncoras
de um navio encalhado na praia seca esperando a maré voltar.
O deus democrático e de direito ungiria de legitimidade o vencedor,
oriundo dos esgotos de um passado grotesco e alimentado pelo ressentimento de
um presente incapaz de apresentar um futuro. O jogo de espelhos produziria
mentiras pelas mãos digitais de milhares de robôs tecendo os fios
de pulsos construindo realidade paralelas. Mas quem é o espelho para
dizer de realidades construídas que se impõem ao real,
sufocando-o e substituindo-o pela mentira? Alice, raivosa, sentencia que
não pode ser real uma lebre tomando chá à mesa do
chapeleiro justo ela, uma menina que cai pelo buraco atrás de
coelhos escravos de relógios, atravessa espelhos e divide o
narguilé com lagartas.
Agora, também, vemos juízes desconcertados escondidos sob suas
capas escuras como as suas almas vendidas, temerosos da vingança dos
fantasmas que ajudaram a conjurar. Apresentadores apresentando suas desculpas,
analistas analisando aquilo que suas análises ocultaram. Âncoras
atordoados procurando no teleprompter o que dizer, mas um funcionário
terceirizado digitou, como vingança, um poema de Edgar Alan Poe.
De nada adianta renegar o espelho, como o bêbado que tenta em vão
assentar o cabelo e lavar a noite insone que carrega nas lágrimas de
seus olhos injetados. O país segue olhando assustado para o espelho e
seu reflexo distorcido, não reconhece as cicatrizes e as rugas que
colecionou e culpa a imagem.
Enquanto isso, aqui do lado de fora do espelho, segue a macabra
construção. Feitores fazem estalar seus chicotes sobre os ombros
de milhares de escravos sem direitos e aposentadoria, que arrastam os enormes
blocos de pedra em suas bicicletas enquanto seus deuses de barro, aqueles nos
quais haviam exilado sua força coletiva, se transformam em poeira
impotente. As paredes continuam se erguendo cimentadas por corpos de mulheres
assassinadas, de índios queimados, crianças violadas e mortas por
balas perdidas, meninos e meninas que o amor e o sexo indefinido assombram e
precisaram ser purificadas e espancadas pela sagrada ira vingativa do Senhor,
de multidões de pessoas invisíveis e cinzas que perambulam pelas
ruas, dormem sob as pontes e se aglomeram na praça no escuro de uma
noite sem fim.
Agora o espelho nos mostra pela terceira vez o país. Ao fundo, a enorme
construção maligna toma suas formas quase finais. As paredes que
cobrem os alicerces de ossos são naturalmente negras: forradas com a
pele de ancestrais guerreiros, matéria prima barata do genocídio
diário e milenar. Suas torres, como minaretes, desafiam o céu de
um cinza chumbo e agourento.
No chão se vê pentagramas e rabiscos, mapas e planos, um
planisfério desenhado com giz de cera e uma ampulheta quebrada. Imagens
de santos aos pedaços, animais mortos e dependurados ao lado de
esqueletos humanos e árvores calcinadas. Pela janela ao fundo vemos
incêndios e numerosos exércitos que marcham. Os estandartes que
decoram as paredes trazem símbolos que lembram uma conhecida marca
roubada da tradição hinduísta, além de frases em
runas, sânscrito e hebraico. A bíblia sagrada descansa sobre a
mesa ao lado de um saco de moedas com um punhal de prata enterrado em sua capa
de couro de ovelha.
No centro da imagem, Belzebu, cercado por asseclas insanos, ri.
12/Junho/2020
[*]
Professor adjunto da Escola de Serviço Social da
UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do
NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro
O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo,
2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as
manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György
Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado
por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às
quartas. Na
TV Boitempo
, apresenta o Café Bolchevique, um encontro
mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a
partir de reflexões sobre a conjuntura.
O original encontra-se em
pcb.org.br/portal2/25689/os-tres-espelhos/
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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