Bolsonaro e o ocaso da teoria política moderna
A teoria política moderna fundamenta-se em algumas premissas que a crise
da sociedade burguesa plenamente desenvolvida se encarrega de solapar.
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"Outrora, o bem dos particulares produzia o tesouro público; agora,
porém, o tesouro público torna-se patrimônio dos
particulares. A República é uma presa; sua força
não passa do poder de alguns cidadãos e da licença de
todos."
Montesquieu
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A teoria política moderna se fundamenta em algumas premissas que a crise
da sociedade burguesa plenamente desenvolvida se encarrega de solapar. A ordem
burguesa nascente preocupava-se com o Estado considerado como
necessário e inevitável para a existência da vida em
sociedade , mais precisamente, com as maneiras de evitar que a forma
política torna-se um poder que se volta contra os cidadãos
controlando-os ao invés destes o controlarem.
A teoria política, desde Locke, Montesquieu e outros, buscava meios para
garantir que o poder político não se distanciasse dos
cidadãos, impedindo o despotismo. Naquele momento tratava-se da
crítica à Monarquia Absoluta. Com o desenvolvimento da sociedade
capitalista e da ordem burguesa, contudo, tais mecanismos deslocam-se para
evitar a "tirania das massas", tal como esta se apresenta de forma
nítida nas ideias defendidas pelo jornal
O Federalista
notadamente na pena de pensadores como John Jay, Alexander Hamilton e
James Madison, também chamados de "pais da
Constituição" estadunidense.
Resumidamente, podemos afirmar que o mecanismo essencial desse suposto controle
se funda na
divisão de poderes.
Ou seja, trata-se da premissa segundo a qual quem governa não pode
fazer a lei, quem faz a lei não governa e aquele que julga não
pode governar ou fazer leis. Nos clássicos como Locke e Montesquieu,
esta divisão assume uma forma funcional. Já os chamados
federalistas estadunidenses e seu pragmatismo, vão além e
estabelecem pesos e contrapesos de maneira que um poder possa ser limitado pelo
outro.
Os dirigentes dos recém-criados Estados Unidos da América, se
embasam, além de Montesquieu, numa velha máxima de Maquiavel
segundo a qual só o poder pode limitar o poder. Diferente da
tradição política clássica, os estadunidenses
compreendiam as facções (quer representem a minoria ou a maioria
da sociedade, impelidos por sentimentos e interesses contrários em
relação aos outros cidadãos e a coletividade social, como
pensava Madison) como fenômenos inevitáveis, uma vez que
derivariam da natureza humana (competitiva, cruel e brutal). Desta maneira,
defendem não o controle, mas a liberdade das facções, de
forma que a luta entre as muitas vontades fosse o meio pelo qual nenhuma delas
poderia se impor às demais. Como o próprio Madison afirmava, uma
vez que as causas não podem ser evitadas é necessário
controlar os efeitos.
O receio dos federalistas não era a usurpação
aristocrática, mas o risco de um governo popular, de maneira que uma
facção majoritária pudesse impor sua vontade aos grupos
isolados. O que está por trás dessa engenharia política
é o "direito à escravidão" das ex-colônias
do sul em relação aos Estados industrializados do Norte.
A forma encontrada para tanto é um aprofundamento da divisão de
poderes tal como descrita acima, acrescida de freios e contra freios a fim de
evitar que a chegada ao governo de uma facção não lhe
conferisse poder de impor seus interesses sobre os demais. Um presidente eleito
por uma maioria teria de governar com a representação parlamentar
das outras fações, existirá uma câmara alta o
Senado com outro critério de formação e, em
princípio, mais conservador. Mesmo em uma eventual
formação de maioria parlamentar, o executivo tem que se ater
à ordem legal expressa na Constituição e garantida por
juízes de uma corte suprema que não são eleitos, mas
indicados por outros presidentes e com mandato vitalício (no caso dos
EUA).
Para garantir-se que uma maioria popular nem sequer chegue à
Presidência, as eleições são indiretas, por um
complexo processo que filtra o voto popular na formação de um
colégio delegados que de fato escolhem o presidente.
É inegável que tal engenharia deu aos EUA uma estabilidade, isto
é, evitou a menor chance da formação de uma "tirania
popular". No entanto, toda forma política só pode ser a
expressão da materialidade na qual repousa, de maneira que a
estabilidade ou instabilidade não se produz unicamente pela virtude ou
coerência da formulação política, mas também
e fundamentalmente em função do bom andamento das formas
econômicas que a sustentam.
Diante do vendaval político que assola nosso país, o partido das
câmeras e seu maior representante insiste que o risco de autoritarismo
(que eles próprios ajudaram a criar e dar asas) não tem chance de
se estabelecer porque afinal "nossas instituições são
sólidas". Caso uma peça se desvie, como é o caso do
miliciano que atualmente ocupa a cadeira presidencial, os outros poderes lhes
imporiam o limite. É o mesmo argumento utilizado quando do afastamento
ilegal e casuístico da presidente Dilma Rousseff. Entretanto, o
bolsonarismo parece apresentar problemas à aplicação do
enredo normal do funcionamento das instituições.
O desqualificado na Presidência explicita um projeto que se choca com os
outros poderes e aponta para uma alternativa ditatorial, por atos, palavras e
convicções. A Rede Globo prefere caracterizar tal comportamento
como dúbio, seguindo as palavras do presidente do STF. Entretanto, o
comportamento do capitão expulso do exército é tudo menos
dúbio. É evidente que ele prepara uma ruptura institucional e que
não considera possível governar sob o limite dos poderes
constituídos, sejam parlamentares ou judiciários.
Então, por que os poderes que deveriam limitá-lo não agem?
Comecemos pelo Parlamento. A forma de operação da
relação entre o Executivo e o Legislativo deixou de funcionar
há muito tempo. Para governar é preciso maioria, ou uma bancada
de sustentação e alianças. A maneira de garantir essa
maioria é a distribuição de cargos e outras facilidades,
digamos assim. E isso vale para qualquer um direita, centro, com ou sem
pretensões populares e mesmo a extrema direita como agora a
despeito do prognóstico otimista de Merval Pereira, segundo o qual
Bolsonaro inauguraria uma saudável prática política de
não negociar com facções parlamentares.
O problema é que se tal engenharia, chamada de "presidencialismo de
coalisão" funcionou bem em tempos ditos normais, acabou por se
transformar em uma constante ameaça aos governantes uma vez que se
emancipou da legalidade e constitucionalidade para afastar um
mandatário. Quem deveria interferir aqui para zelar por tal suposta
constitucionalidade não o fez, pelo contrário entrou no acordo,
com o Supremo, com tudo,
dirigiu e ungiu de suposta legalidade o casuísmo.
Como os afastados compunham um governo de centro esquerda (para ser generoso na
classificação) comprometido com um pacto social que desarmou a
classe trabalhadora de sua autonomia necessária, preferindo apoiar-se na
mesma institucionalidade que se movia para derrubá-los, caíram
sem reação alguma. Tudo isso dava aos porta-vozes da ordem a
impressão segura de que as instituições estavam
funcionando. E estavam,
para aquilo que foram criadas:
evitar a menor possibilidade de um governo popular (ainda que aquele governo
que caia já não o fosse).
Mas, então, o que explica que esse mecanismo parece não funcionar
agora, em um governo de extrema direita? Neutralizado o parlamento, pelo menos
por enquanto, graças ao trabalho impecável da gelatina da
República, o homem sem esqueleto Rodrigo Maia e a boa e velha
prática da formação de maiorias no mercado de cargos,
verbas e aparelhos por onde se opera a corrupção e o favoritismo
eleitoral, restaria o caminho judicial. Considerando a quantidade e natureza
dos crimes de responsabilidade cometidos e mesmo os indícios de crimes
comuns, qualquer outro já teria caído. O que afinal mantém
o inominável miliciano em seu cargo?
Não é o poder que dispõe como chefe do Executivo, pois
como ele mesmo rosnou, parece que a Presidência dá menos poder do
que parece àqueles que a disputam. É aqui que a teoria
política burguesa encontra seu ocaso. Quando vemos o impasse entre os
poderes, cai a mascara e se revela que há poderes que não se
submetem nem aos pesos, nem aos contrapesos e que se movem sem freios.
O Judiciário afirma que vai investigar esquemas que podem chegar ao
presidente. O presidente e seus ministros dizem que não reconhecem e
não aceitaram o resultado de tal julgamento. Primeiro, é preciso
aclarar que esta crise só se estabelece por que um dos poderes
prevaricou: o Parlamento. É ele que por direito deveria fiscalizar e se
for o caso, como é evidente que é, julgar o presidente. Caso
houvesse um impasse, caberia ao Judiciário entrar em cena para dizer de
competências e procedimentos. Como o Parlamento estava à venda e
foi comprado, restou outro poder que diante do impasse não pode recorrer
a não ser a si mesmo.
O que revela a máscara que caiu? Se não é o próprio
poder executivo, quem é esse poder que cria o impasse diante do
Judiciário? É aquele que a teoria política moderna, em
certo sentido sem que tenha ouvido de fato as bases da teoria clássica,
resolveu deixar do lado de fora do fenômeno político: a
força.
O interessante é que a teoria política moderna inaugurada com
Maquiavel é aquela que exatamente chama a atenção para
esse fator. Este aspecto contudo foi sendo depurado até que chegamos em
Hannah Arendt e Jürgen Habermas que consideram a força como um
recurso extra-político, de maneira que
onde há política não há força e onde entra a
força cessa a política,
num claro recuo em direção a Aristóteles.
Ocorre que uma força, ainda que desconsiderada, existe. Os militares
não estão, a não ser formalmente, submetidos à
Constituição, pois a força pode impor um novo ordenamento
jurídico, no velho dilema já descrito por Maquiavel entre o
profeta armado e o desarmado. Bolsonaro se mantém porque alega ter apoio
dos militares e seus generais no governo parecem não desmenti-lo.
Segundo declarações recentes do fabricador de
fake news
no poder, estariamos perto da hora do acerto de contas. Seria mais um blefe?
Pode ser, e pode não ser. O blefe faz parte do jogo político, mas
a resolução do impasse não se realiza por blefes, e sim
quando as cartas são colocadas na mesa. O PT e seus aliados prometeram
parar o país ou incendiá-lo, mas nada parou e os próprios
derrubados se empenharam no papel de bombeiros.
O Judiciário está colocando suas cartas na mesa e começa a
fechar o cerco, principalmente com a prisão do Queiroz e com o que pode
vir daí até a família do presidente. Tudo isso alimentando
as investigações em curso poderia culminar na
cassação da chapa, o que não passa pelo Congresso. Os
militares governistas (não sabemos se com respaldo ou não dos
militares na ativa) dizem que não aceitaram um "julgamento
político" (como se o último não o fosse).
O problema é que Bolsonaro pode ou não ter o apoio das
Forças Armadas, mas certamente tem o respaldo de
corporações militares e da milícia, podendo portanto
reagir de alguma forma. O Supremo não pode impor sua decisão a
não ser pela força da lei, que diante da força das armas
vale tanto como o caráter de alguém contra a
munição de um fuzil ou a inocência diante da
convicção de um juiz corrupto.
A dúvida que persiste é a seguinte: se Bolsonaro não
está blefando e tem apoio militar, por que não desfecha seu
golpe? A meu ver este impasse se resolve fora do campo visível e remete
a um outro poder, este determinante:
o grande capital.
A divisão que agita a forma política é uma
expressão de uma outra, a grande burguesia ainda não se decidiu
pela continuidade ou retirada de seu mais recente serviçal, sobre a
oportunidade e possibilidade de substituí-lo e o que colocar em seu
lugar.
Pela primeira vez, concordo com Bolsonaro. Aproxima-se a hora que as cartas
serão colocadas na mesa. Nesta hora acaba a possibilidade de blefe e
quem tiver o maior jogo leva tudo.
22/Junho/2020
[*]
Professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ,
pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP
13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro
O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência
(Boitempo, 2002) e colabora com os livros
Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as
ruas do Brasil
e
György Lukács e a emancipação humana
(Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o
Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na TV Boitempo, apresenta o
Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da
tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.
O original encontra-se em
blogdaboitempo.com.br/2020/06/22/bolsonaro-e-o-ocaso-da-teoria-politica-moderna/
e em
pcb.org.br/portal2/25730/o-ocaso-da-teoria-politica-moderna/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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