"O Rio não precisa de intervenção. O Rio precisa de
uma Revolução".
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"Temos de começar a pensar numa intervenção mais
política no ambiente social, acabar com esse fetiche militarizado de
segurança pública para resolver problemas que têm que ser
resolvidos na esfera política"
(Orlando Zaccone, delegado de polícia e doutor em Ciência
política pela UFF)
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Não é necessário muito esforço para verificar o que
a atual intervenção do exército no Rio de Janeiro esconde.
Como em outros campos, o segredo está à mostra de todos: o rei
está nu
e ele não é o rei.
Existem duas chaves de compreensão importantes no raciocínio de
meu amigo e colega Orlando Zaccone que nos serve de epígrafe. Primeiro,
que o tema da segurança pública é um tema que só
pode ser resolvido na "esfera da política", e segundo que a
forma militarizada de enfrentamento da questão assume a forma de um
fetiche. Os dois aspectos estão associados em uma dimensão que,
talvez, não esteja tão visível e óbvia.
Senão, vejamos.
Afirmar que o problema da segurança pública é um problema
político é retomar a premissa de que as formas sociais se
articulam com uma configuração social do crime e que há
relações de determinação entre uma e outra.
Não há nenhuma novidade nessa premissa. Ela está na base
do pensamento funcionalista de Durkheim e de toda uma consolidada
reflexão sociológica sobre o tema. No campo da criminologia
crítica, principalmente de corte marxista, o que se agrega é que
não se trata da relação entre formas sociais e
criminalidade no abstrato, mas de uma determinada forma social fundada na
propriedade privada, na extração de mais-valor e de
acumulação privada de capitais, isto é, uma sociedade
capitalista em seu ponto mais desenvolvido do monopólio e do
imperialismo.
Ocorre que essa premissa, que ao que parece conta com a
corroboração e a seriedade de estudos desenvolvidos ao longo de
um grande período, foi primeiro desacreditada academicamente, depois
ridicularizada como "reducionista" e desconsiderada pelo poder
público. Dito isso, o que devemos perguntar é o seguinte: o que
se colocou no lugar desta constatação?
A criminalidade e a questão da segurança que dela deriva parecem
ter sido reduzidas a uma questão de anomia. Isolando o conceito
durkheimiano de alguns de seus argumentos incômodos, purgando de qualquer
resquício de análise científica, mesmo nos moldes
positivistas, a anomia é vista como uma espécie de anacronia, um
quisto em uma sociedade que se "moderniza" e se
"democratiza". Se a sociedade é compreendida como dotada de
oportunidades, caminhos e condições para o pleno desenvolvimento
dos indivíduos, aqueles que escolhem o caminho da criminalidade o fazem,
segundo esta visão, por um desvio pessoal, uma deformidade moral ou um
impulso instintivo. O controle de tal fenômeno só poderia ser,
então, a repressão policial e o encarceramento.
Anos de aplicação de políticas de segurança
fundadas nesta premissa mostram seu total fracasso em diminuir os
índices de criminalidade, aqui ou em qualquer parte do mundo. Aqui
começa a se apresentar o fetiche da militarização. Seria
um problema de intensidade das medidas e não um equívoco em sua
natureza. A resposta aparece portanto na forma de
mais
polícia,
mais
repressão,
mais
encarceramento
e tudo continua dando errado, até que se chama o
exército.
Mas o fetiche não é só isso. A mercadoria precisa oferecer
seu valor de uso somente por meio da realização de seu valor de
troca. No auge do fetichismo o valor de troca pode ser realizado subsumindo o
valor de uso. Você paga e toma a Coca-Cola, mas não mata sua sede,
pelo contrário ela aumenta a sede o que te leva a pedir outra Coca-Cola.
A política de segurança realiza seu valor de troca produzindo o
que apresenta como seu valor de uso fetichizado. Vejamos.
Vamos colocar a questão por pontos:
-
Os especialistas sérios concordam que qualquer enfrentamento deveria
começar pela legalização e controle da venda de drogas,
descriminalizando o consumo e retirando do tráfico seu protagonismo.
-
O tráfico só é o operador de um negócio
lucrativo. Em época de capital monopolista, nenhum mercado desse porte
pode existir sem duas pré-condições: financiamento e
estrutura. O volume de recursos necessários só pode ser
encontrado fora da área que a política de segurança
definiu como seu teatro de operações. Está no volumoso
caixa dois, seja da corrupção, seja da acumulação
de capital. Está nas mãos de quem tem dinheiro e precisa fazer
mais dinheiro e vê no tráfico taxas de lucro assombrosas. Pistas
publicadas em nossos jornais diários indicam o caminho: o Congresso
Nacional, os bancos, os fazendeiros e as máfias organizadas que
controlam grandes somas de recursos que poderiam financiar o tráfico.
-
Para tudo isso funcionar, como comprova a história de todas as
máfias, é necessária uma certa estrutura e um conjunto de
garantias daí a compra de pessoas em postos chaves nos governos,
no judiciário e no aparato policial capazes de acobertar e dar garantias
ao enorme esforço logístico que envolve portos, estradas
fronteiras, transporte, esquemas de lavagem de dinheiro, juízes
dispostos a dar
habeas corpus,
relações internacionais etc. Nada disso está na
área em que a política de segurança concentra seu foco.
-
Chegamos à distribuição. Para isso é
necessário controlar territórios, rotas, pontos, bocas
[1]
. Para isso é preciso armamento pesado. A estrutura corporativa e
monopolista do tráfico dá conta dos recursos humanos
necessários, mas o armamento, munições e outros recursos
não são fabricados e comercializados no território. Duas
outras instituições entram em simbiose: as polícias e o
exército.
-
Uma vez que a máquina estiver em funcionamento, o lucro deve ser
repartido entre seus sócios e deve-se garantir que os custos sejam
cobertos. O volume de dinheiro que, sabemos, não é pequeno, volta
a alimentar o enorme caixa dois do capital e os honrados e legais dividendos de
gente da nossa "melhor sociedade". Tudo isso não pode ser
feito somente às sombras, na ilegalidade: ele se mostra despudoradamente
à luz do dia e a vista de todos.
Pergunto: o trabalho de investigação percorre qual destes pontos
descritos? Helicópteros repletos de cocaína e pistas de pouso em
fazendas são ignorados, contas volumosas e malas de dinheiro não
são suficientes como prova, enriquecimentos sem nenhuma
relação com receitas declaradas não são
investigados, a contabilidade do grande capital não é verificada
por ninguém. No entanto, as favelas são atacadas todos os dias,
jovens pobres e pretos serão mortos, lógico, sem que atrapalhe os
negócios que continuarão.
É ridículo. Nenhuma operação no Rio de Janeiro que
termine sem prender o governador do estado e o presidente da Assembleia
Legislativa pode ser levada a sério. Muito menos uma
intervenção decretada pelo vampiro chefe da maior quadrilha deste
país, o PMDB, que governa o Rio a cinco mandatos e que é
responsável (junto com seus aliados e cúmplices) por roubar e
falir o estado e a cidade do Rio, com operações criminosas nas
quais se destacam a Copa e as Olimpíadas.
Não estamos falando de décadas de um problema que não
encontra solução, estamos falando de décadas de
imposição de soluções como UPPs
[2]
, Pronasci
[3]
, ocupações da força nacional e outras pirotecnias que
acabam como sempre com os pobres mortos e os ladrões mais ricos que
antes.
As políticas de segurança não enfrentam o problema, elas
são um outro meio de ganhar dinheiro com o problema. Vistas pelo lado da
violência urbana, elas são um fracasso. No entanto, empreiteiras
ganharam dinheiro, fábricas de armas ganharam dinheiro, o Viva Rio
[4]
e outros piratas sociais ganharam dinheiro, monopólios midiáticos
ganharam dinheiro, deputados, senadores, secretários, juízes,
policiais e militares corruptos ganharam dinheiro
Policiais com
salários baixos morrem, pobres pretos defendem com a vida a quebrada que
garante as fortunas de
playboys
e banqueiros com narizes dilatados de tanto cheirar pó e tomar
uísque importado e envelhecido doze anos, mais que alguns meninos mortos
por balas perdidas ou direcionadas.
Tudo isso gera insegurança
que precisa de mais
"segurança". Estamos prontos para mais um ciclo da vida do
valor de troca de um valor de uso fetichizado. Não será mais
chamada de UPP, ou tolerância zero, ou Operações de
garantia da Lei e da Ordem, mas terá um nome chamativo, um especialista
que a justifique, um especial na
Globo News
sobre a solução encontrada, um político que a represente
e empresários dispostos a vender o que for preciso para "salvar o
Rio" e governantes dispostos a sangrar os recursos públicos
mediante uma módica contribuição para seu caixa dois.
Uma relação social entre seres humanos assume a
fantasmagórica forma de uma relação entre coisas. Drogas,
armas, políticas sociais, políticas de segurança,
corrupção, lucro
coisas por trás das quais há
pessoas. De um lado as que ganham muito dinheiro, de outro as que fazem isso
tudo funcionar e morrem. No meio, uma porção de gente coisificada
capturada pela TV e torcendo contra eles mesmos.
Ao longe ecoa um samba na avenida embalando nossa alma enquanto nossos corpos
padecem. Um rio de sangue e lágrimas corre para o mar levando o lixo de
séculos. O Rio não precisa de intervenção. O Rio
precisa de uma Revolução.
21/Fevereiro/2018
NR
[1] bocas: locais onde se vendem drogas (gíria).
[2]
UPP
: Unidade de Polícia Pacificadora, um nome orwelliano.
[3]
Pronasci
: Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania
[4]
Viva Rio
: uma ONG inspirada na actuação da tropa brasileira enviada ao
Haiti pelo governo Lula a pedido do governo dos EUA
[*]
Professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do
NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e
membro do Comitê Central do PCB.
O original encontra-se em
pcb.org.br/portal2/18809/rio-violencia-e-fetiche
e em
blogdaboitempo.com.br/2018/02/20/rio-violencia-e-fetiche/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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